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OPTHE
UNIVBRSifY
O ^"^ 1^
Google
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I
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^ Exerci f o
:.. 1
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HISTORIA
EXERCITO POETUGUEZ
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HISTORIA
ORGÂNICA E POLITICA
EXERCITO PORTUGUEZ
CHRISTOYAM lYRES DE MAGALHÃES SEPÚLVEDA
lajor de ciTiIUm. LeDle h Kuola do Eiereilo.
Smí« effBclir» da Academia leal dai Seieaciai de Lisboa, e correspoadeote da Real Icademia de Historia de ladríd
e do Inslilnto de Coinbra. Cri Cru de Isabel a Catbolica. Cooneadador das ordeis de S. Thiaf o,
da Coroa leal da Prossía, de lerito lilitar e de Ronero de Carlos 111, de Hespaba. Of ciai de Atíi.
Bepatado da Nasit
Volume III
INTRODUOÇÃO. — Inflnenola dos Árabes na Milícia portagueia.
O OONDADO DE PORTUGAL.
LISBOA
1902
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V,2>
OJlí cSCtn ^ãfjn
Ô Smhot (JnfatiU £). Jíffonòo Jítnthmé
CoDsap e dedica lespeitosamente.
^Google
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D'e8te8 Anríque
experimentado,
Fortngal houve em sorte, quo no mundo
Entam não era illnstre, nem prezado,
£ pêra roais sinal d*amor profundo,
Quis o Boi castelhano, que casado
Com Theresa sua fllha o Conde fosse ;
E com ella das terras tomou posse.
Este, depois que contra os descendentes
Da escrava Agar victorias grandes teve.
Ganhando muitas terras a^acentes,
Fasendo o que a seu forte peito deve :
Em premio destes feitos excellentes,
Deu-lhe o supremo Deus, em tempo breve.
Um fliho, que iUustrasse o nome ufano
Do belllcoso Reino lusitano.
CamÔéi. — Lusíadas, canto III.
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i
'1
e mais responsável é a sua situação.
Do consorcio do Senhor D. Luiz I, — cuja memoria o
tempo n&o faz mais do que avultar, pela lembrança de
quanto foi bom de coraçSo, e atilado de razíto e entendi-
A ninmlaim qae adorna eita pa^na é copiada do Livrada» Horas de D. Dnarte,
qne eati na Torre do Tombo. Representa um peão piqueiro.
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mento, no diflScil papel de reinar, — com a Senhora D. Ma-
ria Pia — cujas qualidades de espirito tâo admiravelmente
se casam com o seu porte de rainha por excellencia, —
nasceram dois príncipes que honram os seus progenitores,
porque são dignos herdeiros das suas qualidades de cora-
ção e caracter.
Á um d'esses príncipes está hoje confiado o destino
da nação, que elle, com pulso firme e superior luoidez, con-
duz entre os escarcéus de uma má politica e as restingas
da penúria publica, para as quaes se afigura difficil encon-
trar um piloto!
Ao outro coube, naturalmente, em sorte um papel mais
modesto, e por isso também de muito menor responsabili-
dade. Na sua elevada posição junto do thronO; é um cidadão
como qualquer outro, com a differença de se exigir d*elle
mais do que se pode exigir de qualquer individualidade
menos evidente.
A essa justa exigência, porem, tem o Senhor Infante
D. Affonso sabido corresponder tão galhardamente, que
hoje o seu nome é por todos considerado e respeitado como
o de um homem verdadeiramente útil á sua pátria.
Tudo que se conhece da influencia exercida por Sua Al-
teza junto de sua excelsa Mãe ou do seu augusto Irmão,
ou dos poderes públicos, redunda em seu favor e em seu
credito : — o seu fito é o bem fazer.
Não ha noticia de nenhuma ingerência sua nos negócios
públicos, como tem sido a veleidade, por vezes funesta, de
tantos príncipes; não ha memoría de nenhuma pressão
para o gozo de um capricho ou para a execução* de uma
vontade ruim. A estrada da sua vida está juncada de actos
de caridade, de protecção ao fraco, de amparo ao desva-
lido. Para prova de que é fundamentalmente bom, bas-
tante é dizer que tem amigos, cousa de que raros princi-
pe$ se podem gloriar, pelas condições especiaes em que
são nados e criados, numa atmosphera de conwnçíles e no
alheamento dos homens e das cousas.
Na vida publica é, principalmente, um soldado, que ama
a profissão das armas e tem por ella gosto e paixão.
No serviço, desde subalterno, ou como cora mandante do
grupo das baterias a cavallo, as praças mais humildes en-
contram no príncipe a lição mais salutar, a do exemplo,
quando o vêem occupar-se, com conhecimento e interesse,
tanto dos minimos assumptos como dos mais elevadoB,
numa camaradagem activa e sympathica a todos, e que dá
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a segurança no commando, criando ao mesmo tempo a
confiança e o affecto dos inferiores e subordinados.
A prova da estima que inspira áqaelles com quem tem
servido obteve-a Sua Alteza por occasiSo do seu restabe-
lecimento de uma grave doença em 1894. A missa campal
em acção de graças na parada do regimento de Campolide
nSo foi apenas a solemnídade de uma corporaçSo, mas a
festa da arma de artilharia, e pode dizer-se também que de
todo o exercito, pois que nella estiveram representadas
todas as armas, e em todas ellas o Senhor D. Affonso tem
dedicações e sympathias.
Mas na sua vida publica já Sua Alteza conta um bom
serviço ao pais. Beferímo-nos á sua ida á índia, onde um
desvario funesto, cuja responsabilidade não é esta a occa-
sião de apreciar, levara á rebelliSo uma vasta e impor-
tante provincia, trazendo em perigo todo aquelle Estado.
Mais com a sua presença do que com a sua espada,
concorreu Sua Alteza para a pacificação dos ânimos, tra-
zendo para Portugal a convicção de que a nossa casa rei-
nante e o prestigio do nome português teem naquellas
paragens um culto sincero, e de que é um grave erro que-
rer governar hoje colónias á laia dos capitães-mores do
século XVIII, com o desprezo pelos indígenas e com o des-
respeito pela lei, pelos compromissos adquiridos, pelos cos-
tumes e pelas tradições sempre respeitadas. O problema da
colonização portuguesa e da radicação do nome e dos in-
teresses portugueses no solo ultramarino, vira-o claramente
já no século xvi o génio de Aflbnso de Albuquerque, ho-
mem extraordinário, de cuja estatura de militar e de po-
litico ninguém em Portugal ainda se approximou sequer !
De quanto esse visionário ingente divisava, ha perto de
quatro séculos, com lucidez genial, teve a prova o Senhor
Infaot*) D. Aflfonso ao encontrar na índia, vivo e palpi-
tante, o affecto pelos portugueses, no meio das ruinas em
que o rigor do tempo tem convertido os monumentos do
passado, e a que a inépcia dos homens tem reduzido a
confiança, a boa fé, o affecto de muitos corações!
A acção do Senhor Infante D. Affonso, segundo Víso-
Rei da Casa de Bragança naquella longinqua e gloriosa pos-
sessão, foi toda de apaziguamen to, de carinho, de confiança
inspirada, de affectos conquistados. Foram essas as se-
mentes cujos frutos se colheram mais tarde.
Depois d'isto, o Augusto Príncipe não tem repousado da
sua tarefa do bem. Vêmo-lo em segnida empenhado de
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coração numa obra a que o seu nome ficará vinculado por
um modo perdurável e eminentemente sympathico. O Ins-
tituto para a educação das filhas dos ofiSciaes, orphãs ou
destituídas de meios, honra a iniciativa e a previdência de
Sua Aitezai que por essa forma se mostra digno da he-
rança de coração recebida de sua Augusta Mãe^ — a quem
Pia chamaram no berço, e que á piedade tem votado a sua
actividade e intelligencia.
Vendo reflorescer no filho essa sua primacial virtude, a
excelsa Senhora não podia encontrar na terra nenhuma tão
grande e tão viviíicadora consolação.
A muitas iniciativas de caridade e beneficência se tem
ligado o nome de Sua Alteza.
O Senhor Infante D. Affonso usa o nome do fundador
da monarchia portuguesa e chefe de uma grande dynas-
tia; este volume é consagrado aos factos militares que
abriram esse glorioso período da nossa historia e oielie fi-
gura já o nome de Afibnso Henriques, por uma forma de-
cisiva nos destinos da pátria.
Estava, pois, naturalmente indicada a consagração doeste
livro. Aquelle que na serie dos príncipes portugueses
guarda hoje o nome do criador da nossa nacionalidade.
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INTRODUGÇÂO
INFLUENCIA DOS ÁRABES
MILICIA PORTUGUEZA
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INTRODUGÇAO
INFLUENCIA DOS ÁRABES NA MILÍCIA PORTUGUEZA
CAPITULO I
O que devemos aos árabes
íellia o árabe,
abelha vae aos ca-
lores, pelo infinito
, sugar os néctares,
Tso sabor e distin-
com que fabrica o
o génio árabe foi Oenlo arabo.
caracter peculiar a
ação que conheceu,
s por onde passou
sentou, a feição, o
rma da sua civilisa-
ção, que acabou
por ser tão origi-
J nal e tão caracte-
rística; e como o
mel, que é manjar e panaceia, delicia e reconforto
a um tempo, aquella civilisação alimentou o espirito
de muitos povos e nutriu muitas gerações de fortes,
sendo ainda hoje um elemento vivo e resistente, no
seu caracter fundamental.
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ReiaçSetdaAra- Já Grecía 6 Ronia se utilisavam dos seus merca-
bia com o Occi- ^ i . i r% • . • • • •
dente e orien- dores para ooter do Oriente asjoias, as especiarias,
os tapetes, o oiro em pó, o marfim, os perfumes,
os escravos, as pedras preciosas ; e Carthago valia-
se dos seus soldados para engrossar os seus esqua-
drões conquistadores.
Antes mesmo de Mohamede*, as florescentes ci-
dades do lemem (Arábia Feliz) e mais tarde os
reinos de Hira (Caldeia) e de Grassam (Syria da-
mascena), representavam grandes centros do com-
mercio oriental e africano, em relações constantes
com o Mediterrâneo por um lado e com a índia por
outro. Durante dois mil annos as cidades do lemen
representaram o papel que depois passaria a ter
Veneza no seu máximo explendor; nos reinos de
Hira e de Gaçam os árabes estavam em intimo
contacto com os persas e com os romanos.
Papel dos ara- Observa Humboldt * que os árabes se achavam
admiravelmente preparados para representar o pa-
pel de mediadores e actuar sobre os povos com-
preheudidos desde o Euphrates até ao Guadalqui-
vir e na parte meridional da Africa média.
• Possuiam uma actividade sem exemplo, que
marca uma epocha distincta na historia do mundo ;
uma tendência, opposta ao espirito intolerante dos
israelitas, que os levava a fundirem-se com os po-
vos vencidos, sem comtudo abjurarem, a despeito
d'essa perpetua mudança de regiões, do seu cara-
cter nacional e das tradicionaes recordações da
sua pátria originaria.»
Ao passo que as raças germânicas € não começa-
1 Adoptamos n^este trabalho a transcripçSo do professor e nosso
amigo o 81'. David Lopes, que nos fez a fineza de uuiformisar a or-
thograpbia das palavras de origem árabe segundo o que deixou ex-
posto no seu livro Textos em aljamia portugueza, pag. 26 e seguin-
tes, 1897, publicação da serie do centenário da índia.
* Humboldt, Cosmos, t. ii. v.
bes.
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ram a polir-se senão depois das suas migrações, os
árabes traziam comsigo, não só a sua religião, mas
também uma lingua aperfeiçoada, e as flores deli-
cadas de uma poesia que se perpetuai-ia pelos tro-
vadores e pelos minnesinger».
Por intermédio .dos phenicios, primeiramente, e
depois por conta própria, era o árabe o corretor da
civilisação entre os povos europeus e asiáticos; en-
carregava-se da permuta dos productos de cada
região; e, n'essa convivência com as diversas, na-
ções, ia assimilando o que n'ellas havia de interes-
sante e de progressivo, e o transmittia logo.
O que o espirito mercador havia começado, cedo o espirito guer-
1 4 • • • :i reiro secunda
o completava o gemo guerreiro, ao serviço de uma o espirito mer-
fé ardente e inquebrantável, a fé porventura a **"*"'
maior que a idéa de Deus ainda encontrou para a
realisaçâo de altos destinos. «Nem que viessem
para mim trazendo n'uma das mãos o sol e n'outra
a lua, me fariam recuar!» Estas palavras do fun-
dador da religião são a synthese da firmeza d'essa
nova crença.
Nos confins da Arábia, um vidente, um revolu- Hohamede, e a
• • • j] 1 • A uai dade árabe.
cionario, um magico da palavra, tcommerciante,
propheta, orador, poeta, legislador, e debaixo de
todas estas formas, sempre fiel ao t j po árabe » , er-
guia o pendão de uma doutrina, que não era abso-
lutamente nova, porque tinha origem na Biblia,
mas que no pandemonio de mythos e idolos em
que a Arábia se dividia, representava uma neces-
sidade da unificação de um povo e de uma raça ;
doutrina cheia de promessas no futuro e de com-
pensações no presente ; doutrina baseada nas aspi-
rações mais vivas da natureza: a lucta e o prazer;
e animada pela esperança de se fruir alem tumulo,
engrandecido e multiplicado, aquillo que a vida
i ndicára como digno de ser gosado e fruido.
Os torneios poéticos entre os bardos das diver-
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sas tribus e povos nas feiras de Ocade, haviam
preparado a unidade moral e a da linguagem,
enaltecendo sentimentos que eram de todos, e com-
pondo-se os poemas n'uma linguagem que era por
todos entendida. A palavra inflammada do pro-
pheta, pregando a unidade divina, a união e con-
córdia entre os homens da mesma crença, a sim-
plicidade, a mansidão, a caridade como norma da
vida, destruia os Ídolos antigos, obliterava as su-
perstições, as nigromancias e os hábitos grosseiros
que embruteciam e escravisavam os povos.
Keiiguo. «Deus único, que não gerou nem foi gerado»,
era a fórmula concreta que arredava dos espiritos,
conturbados pelas ficções do paganismo, as confu-
sas creações do polytheismo idolatra, com o seu
cortejo de animaes e plantas sagradas, de astros
convertidos em divindades, e dos sacrifícios, dos
tormentos, das alcavalas do magismo. Abolindo es-
sas differentes formas do culto, que diíFerenciavam
e dividiam os povos e as raças, a concepção sym-
pathica de um Deus uno foi o primeiro grande
passo para a unificação da humanidade. O próprio
christianismo, cujo conteúdo moral era aliás mais
consentâneo com uma forma superior do espirito
e com as aspirações da liberdade humana, só con-
seguiu essa unificação mais tarde, com o progresso
das idéas.
Nenhuma religião creou maior numero de ade-
ptos do que o islamismo, que ainda hoje conta com
milhões de proselytos em todo o mundo, apesar de
. todos os propagandistas e missionários das outras
religiões. Na opinião de Max Muller ella pregou a
«moral mais elevada» que antes do christianismo
se ensinou á humanidade, independentemente de
Ídolos e de altares, e na de Baile produziu « os mais
excellentes preceitos que se podem dar ao homeni
para praticar a virtude e fugir do vicio».
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Mohamede (o Glorificado) era o homem que toda Tran«fonnaçao
uma sociedade desnorteada reclamava, e o desti-
nado, pela resultante de mil causas convergentes,
a iniciar uma transformação profunda no meio em
que dominasse. Representava uma necessidade.
<Como teria podido esse homem, pergunta um
escriptor hespanhol, levar atraz do seu verde estan-
darte 200:000 árabes, se não tivesse vindo melho-
rar a pátria oriental, derrubar milhares de idolos,
destruir os túmulos dos reis que se tinham feito
enterrar com os seus leaes servidores, matar o an-
tropomorphismo, salvar a vida do prisioneiro con-
demnado á morte, dar á mulher direito á vida e
aos bens da familia, e iniciar mil e mil liberdades
que hoje parecem mingoadas, porque vivemos a
vida de uma sociedade mais culta, resuscitada
pela philosophia sobre as ruinas da arbitrarieda-
de?.^
Mohamede realisava a aspiração que, pôde dizer-
se, existia de ha muito na consciência dos povos
semitas, os quaes na Caba de Meca, espécie de \2!'^^ ** "*'
pantheon sagrado da Arábia, haviam reunido 360
deuses diversissimos, como que indicando assim que
não passavam de puras formas de um mesmo inti-
mo culto. Para levar a eíFeito a obra da unificação
Mohamede desenvolvia esse gérmen de unidade
que ligava os variados cultos da Arábia, compre-
hendendo que chegara o momento de todos os ára-
bes se poderem reunir na mesma crença*. O templo
da Caba fundára-o Abrahão; a doutrina da uni-
dade divina era do mesmo venerável patriarcha
bíblico ; o apostolo d'essa doutrina,[transformadora
do mundo, sete voltas dera em redor d'esse san-
^ R. Contreras, Recuerdos de la dominadon de los árabes en Es-
pana, pag. Ô5.
2 Guetave le Bon, La civilisaíion dts árabes , liv. i, cap. in, § 3.®
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20
ctuario, como para affirmar a sua absoluta submis-
são ao legado que recebera de um tão sublime ini-
ciador da sua fé. O génio semita, ligando a tradição
do passado com a aspiração do futuro, encontrava
a consagração da sua grande obra, no sentido de
progresso da consciência humana. Na direcção da
Caba ficava, em todo o mundo musulmano, o ponto
de orientação de todo o templo, a Quibla, para o
qual todo o fiel tinha de estar voltado no acto da
oração *.
paretadomoDo- Supcríor ao budhismo na forma pratica da sua
mLT**"^' essência, e superior ao christianismo na subjectivi-
dade singela da sua concepção raonotheista, de
uma grande pureza, foi o mahometanismo a mais
absoluta das religiões monotheistas do mundo.
íÉ d'este monotheismo puro, diz Gustavo Le
Bon, que deriva a grandissima simplicidade do is-
lamismo, e é n'essa simplicidade que se deve ir
buscar o segredo da sua força. De fácil comprehen-
são, não offerece aos seus adeptos nenhum d^esses
mysterios, d'essas contradicções tão communs nos
outros cultos, que muitas vezes ofl^endem o bom
senso... Foi de certo esta extrema clareza do isla-
mismo, junta ao sentimento da caridade e da
justiça de que está impregnada, que em muito con-
tribuiu para a sua diffusão no mundo. Essas qua-
lidades explicam a rasão por que populações, de ha
muito christãs, como as egypcias na epocha do
dominio de Constantino, adoptaram os dogmas do
propheta, mal os conheceram, ao passo que senão
cita povo algum mahometano que, vencedor ou
vencido, se tenha tornado christão *. »
Um dos processos pelos quaes se realisou a uni-
ficação foi o admittir no mesmo culto os sectários
1 Alcorão, Sura ii, v. 139. Sigo a traducçSo de Kasimirski,
Idem, liv. ii, cap. ii, § 2.®
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21
do Velho Testamento. Além do Alcorão, eram crenças e costa-
Uj 17% ir T% A. j. mes estabcleci-
vros sagrados o Jiivangelno, o rentateuco e os dos. bua trana.
Psalmos; os Enviados de Deus eram, pela sua **^°''**
ordem chronologica: Moysés, David, Jesus e Mo-
hamede.
Alcorão representa a transigência com muitas
crenças e costumes existentes, e até com ceremo-
nias do culto; a concepção do paraizo musulmano
baseou- se nas ficções religiosas dos índios, dos per-
sas, dos judeus; também entre povos orientaes es-
tava perfeitamente justificada a immortalisação dos
gosos e delicias dos sentidos.
Segundo o Alcorão (aUcoran, a leitura), ca a guerra.
guerra é a chave do céo e do inferno, uma gota
de sangue vertida pela causa de Deus, uma noite
velada sobre as armas, valem mais que dois mezes
de jejum e de oração». Era a fé convertida em
estimulo á lucta e ao esforço pessoal ; o Alcorão e
o alfange!
Por isso o fundador da religião foi a um tempo
um apostolo e um cabo de guerra, e o Alcorão o
Livro da Espada; e é bem certo que se não fora a
guerra entre Medina e Meca talvez nunca o maho-
metanismo passasse de uma de tantas seitas que
desde tantos séculos se vinham pregando na Syria
e em toda a Ásia Menor *.
Inflammadas pela fé, as hostes musselimicas co- a expansão da
meçaram a conquista do mundo. A Syria e o Egy- *^°^'^'^*'
pto renderam-se desde logo ao poder das suas ar-
mas. A Syria, onde dominavam os gregos, era 'Um
alfobre de tradições clássicas e hebraicas ; o Egy-
pto era o laço de união, activo, entre o Oriente
e a Europa, e a reliquia de uina grande civilisa-
ção.
A pouco e pouco as expedições árabes faziam a
1 Bafael Contreras, Rec. de la dom, de los arab. en Eep,, pag. 48.
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22
quista da índia, representante e depositaria de um
opulento património scientifico e litterario do pas-
sado, e do Magrebe ou o Occidente, nome que el-
les deram á parte da Africa do Septentrião, até
defrontar com a Europa.
Começara a expansão guerreira ainda em tempo
do propheta, que conquistou os seus primeiros cré-
ditos de cabo de guerra no combate de Bedre, onde
com os seus 314 discipulos armados, dos quaes
apenas três a cavallo, derrotou 2:000 adversários
da tribu dos coreixitas*, aos gritos de ahadhum!
ahadhum! (oh Deus único!) Foi no segundo anno
da hégira: em Medina ficara estabelecido o centro
das operações activas (624 da era de Christo); tinha
Mohamede então 54 annos de idade. tO combate
de Bedre conseguiu mais a favor do islamismo que
as mais eloquentes prédicas; os crentes fortalece-
ram-se na fé; os que hesitavam pronunciaram-se,
os incrédulos ficaram abalados^ >
Começara o propheta por ter apenas o apoio de
duas tribus, a dos Aus e a dos Cazraje, que no sé-
culo V tinham arrancado Medina á posse de tribus
judaicas, e eram inimigas figadaes das de Meca.
Agora innumeros se tornavam os proselytos^.
Novas expedi- Scguiram-sc 37 expedições contra os mesmos
de*MecI*'°'**** adversários, todas commandadas pelo propheta,
que n'ellas contou nove victorias^. O seu exercito
foi augmentando, aos estímulos da fé e dos trium-
phos adquiridos; e dos próprios revezes, que ás
vezes sobrevinham ao maior numero de êxitos, sa-
bia o seu verbo inspirado tirar novos incitamentos
^ A mais importante das tribus da Arábia, que se dizia descen-
dente de Ismael.
2 L. A. Sedillot, HUt. gen. dea árabes, liv. ii, cap. ii,
3 R. Dozy, Hist. des mysul. d^Esp., tom. i-ii.
* Observai, hist et crit, sur le mahométismef por G. Sale, trad. do
inglez. Sec. ii« nos Liv. sacr. de VOrient de G. Pauthier.
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23
para a vindicta! Quatro annos depois da jornada
de Bedre, já Mohamede se apresentava com 4:000
homens em frente das muralhas de Meca, e a cidade
rendia-se-lhe sem combate.
Occupado este. principal objectivo militar e poli- convite pmr» a
- • • j 1 • .••«!. nova fé.
tico, cuja posse determmava a prompta sujeição
de muitas outras tribus, além dos coreixitas, que
eram os mais intransigentes, Mohamede tentava no
anno seguinte levar para além dos lindes da Ará-
bia o seu activo proselytismo. Embaixadores e
emissários foram enviados ao rei da Pérsia, Cos-
roés Parviz, ao imperador de Roma, Heraclito, ao
rei do lemem, tributário dos persas, aos da Ethio-
pia, do Gaçam e do Egypto, a todos os príncipes,
emfim, mais ou menos vizinhos, árabes ou nào,
que assim eram convidados a abraçar a nova fé.
Como em Meca, começava pelo convite amável,
disposto porém, como se viu mais tarde, a levar a
imposição das armas onde nao sortisse effeito o
convencimento.
Dois capitães famosos, que acabavam de se con-
verter ao mahometanismo, deram ao nascente im- conquinudasy-
perio, logo no anno seguinte, a posse de duas im- Jtô.'' ^'^ ^^^'
portantes provincias: Calede Benabulualide con-
quistava a Syria, e Amru Benalace parte do Egypto.
No entretanto Meca, sujeita mais pelo temor do
que pela crença, tentara um esforço de emancipa-
ção; Mohamede, á frente de 14:000 homens, entra-
va na cidade, destruia os idolos, subjugava de vez
08 coreixitas, e com elles as outras tribus, mais ou
menos afins, que se convertiam á nova fé.
O mahometanismo passava a imperar de facto unincnçâo da
em toda a Arábia, ainda em vida do seu fundador;
e quando este, por sua morte, deixou indicado Abú
Becre para seu successor no califado, que firmara
em tão vastas e solidas bases, já o crescente se al-
teava nos minaretes de uma grande parte da Ásia
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24
e do Egypto. Era o undécimo anno da hégira (632
Morto de Moba- da cra christã)^; Mohamede descia ao tumulo com
63 annos de idade.
Mas não se encerrava com elle, nas frias pedras
do sarcophago, a aua idéa, que já fructificava vigo-
rosa; e o povo árabe, cuja unificação politica se
acabava de fazer, ia em breve, animado pelas suas
crenças juvenis, e conduzido por hábeis chefes,
realisar a conquista do mundo.
Com o caracter de simples chefes de uma gran-
de democracia nascente, com um espirito eminen-
succesflores do tcmcntc rcligioso e politico, os primeiros successo-
prop cta. ^^^ ^^ Mohamede reputaram-se meros depositários
do thesouro da fé e da conquista, legados pelo pro-
pheta, comquanto as antigas rivalidades entre os
de Medina, os Defensores por excellencia da fé
pura, e os de Meca, seus rivaes, de onde provieram
os Omeiadas, representasse um permanente estado
de discórdia intima.
Foram Abú Becre, Omar, Otmam e Ali, n^um
periodo de vinte e oito annos. Abú Becre. o com-
mandante dos crentes (Emir al-muminin), limitou-
se, nos dois annos do seu caHfado, a fazer manter
a lei e as tradições.
Novas conquis- Com Omar começaram as conquistas, na Baby-
lonia que era dos persas, e na Syria, que era ro-
mana; Jerusalém e Alepo na Antioquia cederam ás
armas mahometanas (637), e o mesmo succedeu a
Farmaque, Memphis, Alexandria (641), onde os
* A hégira é fixada em 16 de julho de G22 da era de Christo. Foi
assim instituído pelo califa Omar, á imitação dos christâos, que con-
tavam a era dos martyres a partir da perseguição de Diocleciano,
284 da nossa era.
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25
soldados de Amru, como os antigos legionários de
Roma, executaram trabalhos de reparação e con-
strucção no canal sumptuoso, obra dos antigos egy-
pcios, que liga o Nilo ao Mar Vermelho, e ergue-
ram edificações novas *.
Foi este o período da infiltração das civilisações periorio de mm-
antigas ; o poder árabe defronta va-se com os dois '"^°'
grandes impérios, o persa e o bysantino, que, em-
bora roídos já pelo bacillo da decadência, eram
ainda uma grande força.
Na Mesopotâmia e na Pérsia, em dois mezes, foi
extincta a dynastia dos Sassanidas, com a victoria
alcançada em Cadécia, no Iraque babylonio; a Nú-
bia e o resto do Egypto eram também presa dos
árabes. Em dez annos (634 a 644) não se podia
fazer mais!
Com Otmam augmentam e consolidam-se as
conquistas na Syria, na Pérsia, na Arménia, na
Mesopotâmia; Rhodes é destruida; as gazivas mu-
sulmanas chegam ao Cáucaso e tomam os cami-
nhos da índia. Foram onze annos de affirmação
por um lado, e por outro de iniciação da obra que
Ali, o ultimo dos companheiros do propheta, não
conseguira em cinco annos (655-660) levar muito
longe.
Moauia, o primeiro Omeiada, e também o pri-
meiro califa com caracter de monarcha, faz durante
os vinte annos do seu governo a conquista da
Africa septentrional, funda, por intermédio do seu
general Ocba bem Nafi, a cidade de Cairám (670),
com o nome de Ifriquia, que havia, mais tarde, de
estender-se por toda a província; passeia numero-
sas esquadras pelo Mediterrâneo, onde toma posse
das ilhas e archipelagos que orlam a Europa;
* Girault de Prangey, Essai sur Varchit. des arab. et dea maures
en Espagne.
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26
além de Magrebe, que é agora propriamente a re-
gião que passaria a chamar-se Mauritânia, é a Sicí-
lia um dos pontos em que assenta a sua base
de operações contra o continente europeu; o vali
do Egypto Haçam bem Naam toma Oarthago;
Muça bem Noceir faz a conquista de Tanger (Tin-
gis) com o titulo de vali d'essa nova provincia;
Constantinopla é investida e assediada durante
oito annos ; transpõe-se o Oxus e chegam até Sa-
marcanda as algaras da temerosa invasão. Gigan-
tesca obra de menos de um século!
Estão de novo em presença a raça arica e a raça
semitica, como no tempo dos romanos contra os
carthaginezes. Na Ásia as conquistas são levadas
até á China, e do mar da China ao Atlântico só
havia um dominio real e duradouro: o dos Omeia-
das*.
ApeniiLuiaibe- Clicgára a vez á península ibérica de soflFrer o
rigor das armas mussulmanas, mas também de re-
ceber o influxo fecundo de uma civili sacão por tan-
tas maneiras notável. Dos factos militares nos
occupuremos adiante ; aqui procuraremos apenas
indicar os sulcos profundos que essa civilisação
imprimiu em toda a organisação social dos pe-
ninsulares, num dominio de séculos, sulcos que
ainda hoje o tempo não conseguiu apagar.
Oimrabesnape- Eui qualqucr ramo da actividade social que es-
tudemos as nacionalidades que se formaram na
idade média, sobre as ruínas do império musulma-
no, na península, encontrámos logo a irrecusável
prova da influencia exercida pelos árabes nos usos,
1 G. le Bon, La civil, dea arcUf., liv. ii, cap. ii, § 4.<»
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27
nos costumes, nos gostos, no caracter dos nossos
antepassados. Para o demonstrar não é necessário
o exaggero a que alguns escriptores têem levado o
seu arabismo, ao ponto de encontrar em quasi tudo
a imitação do árabe; basta examinar, serenamente,
as influencias que mutuamente exerceram, um so-
bre o outro, o elemento oriental e o elemento euro-
peu, sempre que se acharam em contacto, resal-
vando porém as suas qualidades fundamentaes de
raça e civilisação.
Ao contrario dos visigodos, que nunca se haviam
consubstanciado com a raça nativa, nem deixado
do seu dominio, a nao ser nas leis e na religião,
grandes vestígios, no que representa a acção supe-
rior do espirito, em manifestação de cultura e de
progresso, os árabes amoldavam aos seus gostos e á
sua civilisação as populações onde dominavam, e ao
mesmo tempo accommodavam-se aos gostos e cos-
tumes locaes. N^sto se pareciam com os romanos.
Quando entraram na peninsula vinham já im-A.uacuitora.
pregnados do perfume e nutridos da essência das
grandes civilisações que conheceram na Ásia, no
Egypto, no Mediterrâneo. Em contacto com os
greco-romanos na Syria, e tendo ao mesmo tempo
bebido na Mesopotâmia, na índia, no Egypto, na
Phenicia, na Judéa, as bellas tradições do mundo
oriental e do mundo clássico, dotadas de um espi-
rito de assimilação verdadeiramente assombroso e
de um génio essencialmente progressivo, nenhum -
povo estava mais apto do que o árabe para a mis-
são de conquistar e civilisar o mundo, que se ia
afundando n'uma decadência profunda.
A Europa, que a dissolução do império romano Renovação da
e o dominio dos bárbaros haviam feito retrogradar ^"^p*-
no caminho dos seus antigos progressos, passava a
dever aos árabes o seu primeiro renascimento.
Com a cultura da mathematica, da chimica, da
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28
astronomia, da medicina, que haviam aprendido no
Oriente ; da philosophia e da musica, que guardava
as tradições gregas ; da geographia, que proveitosa-
mente haviam estudado e desenvolvido ; da archi-
tectura, que denotava inspirações diversas, mas que
ao influxo do seu génio assumia formas caprichosas
e encantadoras, como também o mosaico e as pin-
turas muraes; com a introducção na Europa do
estudo das hnguas orientaes, como o árabe, o tár-
taro, o arménio, e da bússola, da pólvora e das ar-
mas de fogo ; com a traducção de innumeros livros
clássicos e a formação de soberbas bibliothecas, co-
mo as de Constantinopla e de Córdova, os árabes
eram a personificação da mais alta cultura do seu
tempo. Ao mesmo passo novas plantas, novas se-
mentes, novas culturas vinham alentar o envelhe-
cido solo europeu: era o linho, o arroz, o café, o
limão, a laranja, o damasco, o algodão, a canna
doce ; a fauna domestica era acrescida com novas
espécies curiosas e úteis ; nos mercados scintilla-
vam as jóias de preço e luziam os mais ricos pro-
ductos de todo o mundo industrial e artístico:
crystaes, tecidos, perfumes, os xaropes, o papel, as
drogas odorosas e salutiferas.
Era o resultado, não só do estabelecimento e in-
fluencia dos árabes na Europa, mas do movimento
das cruzadas, tão fecundo para a civilisação, com-
quanto falho no ideal que se tinha proposto.
Os povos, que o feudalismo dividira e procurara
encerrar dentro dos ameiados adarves dos castellos,
eram attrahidos ás festas publicas nos arraiaes, nas
feiras, nos bazares; á religião soturna das cata-
cumbas e dos concilies era dado o espectáculo fes-
tivo de uma religião alegre, cheia de luz, de cantos,
de guzlas tangidas e adufes rufados ! A pertinácia
na perseguição, na tortura, na conversão á força
de supplicios e ameaças, era substituída pelo prin-
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29
cipio da tolerância e da caridade. Na sua rudeza
primitiva, pelas próprias condições da natureza
onde se creára sem peias, o árabe realisára pelo
instincto o principio da liberdade, igualdade e fra-
ternidade, que só muito mais tarde seria procla-
mado pela revolução franceza *.
Dozy, citando Burckhardt, que assevera não ha-
ver na Ásia povo mais tolerante que o árabe, ob-
serva que essa tolerância data de longe, porque um
povo tão cioso da sua liberdade difficilmente ad-
mitte a tyrannia, em matéria de fé, e já no século iv,
Marta, rei do Yemem^ costumava dizer: t Reino so-
bre os corpos e não sobre as opiniões; exijo dos
meus súbditos obediência ao meu governo, pois
quanto ás suas doutrinas ao Deus creador com-
pete julgal-as^. >
É verdade que na polygamia e na escravidão a p«i7gamia
estavam dois grandes germens do mal que de fu- *'*^*'
turo havia de enfraquecer e tomar incompativel
com os progressos da consciência humana o isla-
mismo. É porém necessário considerar qual a con-
dição da mulher antes de Mohamede^, que pro-
curou tornar policiado e legal, em determinadas
condições, o que era um verdadeiro arbitrio escan-
daloso, até entre christãos, como succedia com os
godos na Hespanha. O Alcorão tornou as filhas
herdeiras dos pães, e acabou com o bárbaro cos-
tume d'estes as poderem enterrar vivas; impoz ao
marido o respeito e o amparo ás mulheres ; regulou
o dote e a situação das viuvas perante a lei ; res-
tringiu a quatro o numero de esposas; sujeitou o
^ K. Dozy, Hiãt des mussul. de Esp., tom. ii.
* R. Dozy, idem, tom. i-ii.
3. . .«partout on voyait le triste aacrifice d'an sexe àPautre, Tes-
clavage de Ia femme, Ia polygamie autorisée, les filies enterrées vi-
ves par le père pauvrc qui craignait de voir un jour son nom des-
honoré. . .», Sédillot, op. cit., liy. i, cap. ii.
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30
divorcio a formalidades; prohibiu casamentos em
determinadas condições de parentesco ; puniu seve-
ramente o adultério. Ainda hoje, como affirmam os
viajantes e os escriptores, a polygamia «não só
não é tão comnium entre os árabes, como se ima-
gina na Europa, mas é rara», e a nSo ser em algu-
mas cidades, «as mulheres árabes gosam de uma
grande liberdade e sobretudo de um grande poder
nas suas casas ^).
Tudo isto representa ura grande progresso em
relação ao anterior estado social.
Também a accusação de ter Mohamede decretado
o fatalismo. Q futalisuio como doutriua religiosa, e ser essa a
causa do estacionamento da civilisação árabe, é
exagerada, apesar de ter passado em julgado ;
Elsner pretende que se lhe agradeça o haver esta-
belecido, embora á sua maneira, a crença da im-
mortalidade da alma; Sedillot observa que em todo
o seu livro, ao contrario do fatalismo, elle admitte
a «liberdade do homem e a acçno omnipotente da
sua vontade para o bem e para o mal*. » A princi-
pal rasão da intransigência doutrinaria do islamis-
mo está na própria essência da sua fé, na pureza
absoluta do seu monotheismo, creação do deserto.
Fallando do caracter das religiões semitas, diz Re-
nan que a rasão por que a Arábia foi sempre «le
boulevard du monothéisme le plus exalte», é por-
que o deserto é monotheista: «sublime na sua im-
mensa uniformidade, revelou desde logo ao homem
a idéa do infinito, mas não o sentimento d'esta vida
incessantemente creadora que uma natureza mais
fecunda inspirou ás outras raças. O monotheismo
explica todos os caracteres da raça semitica, onde
a consciência é clara, mas pouco extensa, compre-
* Adolpbe d'Avril, VArahie contemporaine, p. ii-2.
2 Sédillotj op. cit., liv. II, cap. iii.
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31
hendendo maravilhosamente a unidade, mas uao
conseguindo alcançar a multiplicidade'.»
A causa fundamental dos progressos do christia-
nismo em paralello com o islamismo, não nol-a ex-
plica apenas o critério religioso, mas o critério
geographico e também o ethnico. A civilisação
musulmana foi difterente na Hespanha como o foi
na Berbéria, e o christianismo na peninsula ibérica
foi, é, e continuará a ser difíerente do christianismo
nos paizes do norte. E uma questão que se prende
com o que Buckle denomina t aspectos da natu-
reza».
Quanto á escravidão, que subsistiu, bastante será Ae.cr»vid*o.
lembrar que era essa uma das condições da exis-
tência das sociedades n'esse tempo, e que povos
christãos, até aos nossos dias, continuaram no uso
e no commercio da escravatura. A abolição doesse
trafico odioso foi obra do progresso das idéas, e só
se realisou, ainda assim, n'este século; note-se,
todavia, que no Alcorão se impõem obrigações ao
senhor em relação ao escravo, e que se estabe-
lece que a alforria é das coisas mais agradáveis a
Deus.
Não só durante o seu dominio na peninsula, mas civiíiiaçio me.
em todo o período da Reconquista, e muito depois, «*»•
a sciencia e a arte dos árabes imperaram entre nós.
A sua influencia foi profunda.
N'uma informação enviada ao conde de Raczins-
ki, dizia Alexandre Herculano que «nos primeiros
tempos da nossa monarchia éramos obrigados a
recorrer aos architectos mouros e mesmo a artistas
^ £. Kenan, HiH gén. et st/ethme compare des langues semiliques,
liy. I, cap. I, lS6d.
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32
cl'essa raça para a construcção das igrejas chris-
tasi. Os prisioneiros das Navas de Tolosa foram
empregados na construcção dos templos christãos.
O mesmo succedeu com as fortalezas e com os en-
genhos de guerra, em toda a península.
Kaczinski observa que não 6 isso de admirar,
porquanto n'essa remota epocha os moiros de Hes-
panba cultivavam com grandíssimo êxito as artes
e as sciencias, o que é attestado pelos monumentos
e pela forma dos minaretes, que prolongaram a sua
existência em JPortugal até aos nossos dias *. E o
que está comprovado pela infinidade de estudos
feitos principalmente em Hespanlia.
Não foi o território portuguez aquelle onde os
árabes deixaram mais grandiosos vestígios da sua
passagem, havendo mesmo regiões onde nao assen-
taram ; mas ao sul do Douro, e muito particular-
mente no Ribatejo, no Alemtejo e no Algarve, ainda
hoje podemos reconhecer a influencia poderosa que
teve entre nós aquelle povo, na forma das casas,
com os seus pateos, mirantes, varandas caracterís-
ticas, grades de tijolo, chaminés redondas; nos res-
tos de antigas construcçôes; no systema da aboba-
dilha; nos representantes de antigas industrias,
como o fabrico dos tecidos em Arrayollos; nos
azulejos em relevos; nas diversas formas e nomes da
cerâmica, como a de Extremoz*; na variedade dos
doces ; nas palavras ainda em uso ; na designação
de muitas ruas, logares e objectos'; em certos cos-
tumes e tradições; e até no typo dos habitantes.
^ Raczinski, Les arU tn Portugal, pag. 831.
2 86 em nomes de vasos temos, por exemplo^ albarrada, alcadefe,
alcatruz, almoíía, almotolia, bacia, barranha, bátega, botija, jarra,
garrafa, alguidar, etc.
3 Só no Alemtejo, temos os seguintes nomes de rios e ribeiras :
Odejebe, Xarrama, Almanzor, Odecexe, Odiana, Odivellas, Oriola,
Odiaxere, Odoloca ; de povoações : Bensafrim, Benalifé, Bencafede,
Macbede, Manizola. Entre oatros nomes de povoações do Alemtejo
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33
Referíndo-se ás tradições mouriscas de que está
embebido o meio em que foi nado e educado, diz
um escriptor portuguez, n^um seu recente livro,
que foi «nascido no campo, no meio dos encantos
da natureza, n'uma terra pittoresca, onde tudo,
até o próprio nome d'ella*, as designações das
localidades, dos instrumentos agrários e dos obje-
ctos de uso commum, são ainda vocábulos da lin-
gua dos habitantes de ha oito séculos ; costumado
a ouvir fallar a toda hora no Castello dos mouros, no
Lago dos mouros, na nora mourisca, no telhado á
mourisca, em Al-farim, em Al-cerbe, em Az-zoya,
em Al-queidão, ligando esses testemunhos da rea-
lidade e da historia aos encantos da lenda e da
phantasia^.»
Foi a architectura uma das bellas manifestações Architeciura.
do génio árabe na península; Córdova, Sevilha,
Granada, Toledo, lá estão para o attestar. Em
Portugal, se não existem monumentos de igual
grandeza, muito ha ainda que nos faça admirar a
actividade e a originalidade esthetica d'aquelle po-
vo: — Cintra (Xintara), guardando na cinta den-
tada das muralhas que ornam o altivo cabeço, restos
sagrados de uma mesquita; no valle os banhos do
antigo alcaçar, e, sentinellas do passado, arrogan-
tes no espaço, as gigantescas chaminés mouriscas ;
Lisboa (UlixbonaJ, conservando ainda nos pannos
da muralha da antiga Medina a porta que Maitim
temos: Alcanede, Alcalya, AlvitOi Divor, Alcouchel, Motain, Alcá-
çovas, Cuba (de Alcube), Alcácer, Alpedriche, Almodovar, Albu-
feira, Bencatel, Benamorique ; sâo ínnumeras as palavras em lodos
os géneros, que entre nós mostram ainda a grande influencia do povo
árabe nos diversos ramos da activididade. Veremos como essa in-
fluencia foi particularmente notável na milicia. Sobre a origem árabe
d'es8as palavras vejam-se os trabalhos de frei João de Sousa e
frei José de Santo António Moura, Pihan, Dozy e Engelmann,
Eguilaz 7 languas, Littré, etc.
^ Azeitão. Azeitam em árabe, olivedo.
* Oliveira Parreira, Os Iwo-arabes, vol. i.
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34
Moniz tornou veneranda ; em Évora as janellas que
ainda se vêem rasgadas nos adarves romanos do
castello ; S. Thiago do Cacem, com as duas cercas
primitivas e a cisterna ; Silves {Xilh), com as suas
muralhas de taipa, e povoada de lendas e de ruinas
suggestivas ; em Lamego a porta primitiva da mes-
quita sobre que se fundou Santa Maria de Alma-
cave, etc.
Seria em extremo curioso o estudo que se fizesse
sobre o que ainda hoje se conserva com evidente
marca d^aquella civilisaçâo.
Nas suas edificações maiis notáveis na peninsula,
ArtistM orien- OS arabes começaram de recorrer aos artistas gre-
tMs e gregoB. ^^^ ^ oricutacs, até se assenhorearem dos segredos
das artes, e serem depois, na Reconquista, os edi-
ficadores das melhores obras christãs.
Foi assim que na edificação do maravilhoso al-
caçar de Córdova, a Meca do Occidente, typo da
primeira maneira da arte architectonica árabe na
peninsula, Abdarramão mandou vir os mais há-
beis architectos de Bagdade, de Constantinopla e
de outros pontos, que trabalharam sob a direcção
de Abdallah Beniunas*. Era uma obra cosmopo-
lita; porque, do mesmo modo que os artistas, de
diversas partes do mundo vieram os materiaes:
de Almeria o mármore branco, de Tunis o már-
more verde e côr de rosa; de Constantinopla ou da
Syria, como outros referem, veiu, trazida pelo
grego Ahmada, a monumental fonte onde se collo-
caram as doze figuras de aniraaes em oiro, fundi-
das na real manufactura de Córdova ^.
Como toda a civilisaçâo árabe, principalmente
n'essa epocha, os seus monumentos representavam
um consorcio harmónico de inspirações, estylos e
* Girault de Prangey. 01, cit., pag. 55.
2 Idem.
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35
materiaes de outros povos e civilisações, do mesmo
modo que a sua língua conserva, na infinita varie-
dade dos seus dialectos, uma absoluta homogenei-
dade *. Nos conhecimentos adquiridos sobre as di-
versas partes da construcção e decoração dos edi-
fícios; na riqueza dos materiaes; na adopção de
certas formas de arcos, de cupolas, tectos doira-
dos, columnas, pilastras e ornamentações, mais
tarde modificados e aperfeiçoados, imprimindo-se-
Ihe um cunho original, seguiam as inspirações e
processos persas, gregos, romanos e bysantinos;
os mesmos motivos eram desenvolvidos em-sym-
phonias de mármore, de agatha, de porphiro, de
oiro, crystal, pedras preciosas, cedro aromático,
estuques esculpidos, mosaicos polychromos (feci
feqá), em Bagdade, Cairo, Damasco, Cairúm, Pa-
lermo, Kavena, Amalfi, Veneza, Constantinopla,
Córdova, Granada, Palma de Maiorca, Cintra; e
ii'esta concorrência de aptidões e de talentos os
artistas árabes tornaram-se rivaes dos artistas by-
santinos da Europa e da Asia^, representantes da
fusão da arte clássica com a do oriente. Crearam
uma arte original ^.
Um escriptor superficial no assumpto, e que evi- opinuo errad».
dentemente não aprofundou os estudos sobre a arte
' Burckhardt, eit. por G. le Boií. Ob. cit., pag. '273.
2 G. le Bon. Idem, pag. 49.
' «A verdadeira originalidade, diz Gustavo le Bon, revela-se na
rapidez com que sabe transformar os materiaes que tem á mão
para os adaptar ás suas necessidades, crear assim uma arte nova,
onde os elementos antigos se transformam em novas combinações. *
O caracteristico d^ess i arte é a imaginação, o brilho, a scintillnção,
a exuberância no ornato, a phantasia nos minimos pormenores. «Uma
raça de poetas e escriptores, — e qual é o poeta que d&o ó ao mesmo
tempo um artista, — que se tornasse bastante rica para realisar to-
dos os seus sonhos, devia conceber aquelles palácios phantasticos
que parecem rendas de mármore incrustadas de oiro e pedras pre-
ciosas, ^eubum povo possuirá taes maravilhas, nenhum as possuirá
mais. Corresponde a uma idade de juventude e de illusão que se
desfez para sempre.» Civ. des arab.
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36
aràbe, Daniel Ramée, diz, na sua Historia da Ar-
chitectura^yQTíirQ outras as seguintes barbaridades:
íA sombra das artes da Grécia projectada por
meio dos romanos na peninsula ibérica não deixou
Testigios, porque foi apagada pela acção dos ma-
hometanos. A grandeza, a elegância e a graça ar-
chitectonicas faltaram aos edifícios hespanhoes du-
rante a idade media. Vê-se ali reinar o arbitrário,
o extravagante mesmo, acompanhados de uma so-
brecarga prodigiosa de ornamentação, que raras
vezes é de um gosto elevado. Sente-se em toda a
parte e sempre a influencia maliometana, que natu-
ralmente perpetuou o espirito selvagem do deserto
nas bellas e ridentes regiões do sul e do leste da
Hespanhai. Como se vê, este historiador de arte
suppõe que os árabes de Córdova com os Abdar-
ramães, e os de Granada com os emires almoha-
das, eram selvagens do deserto, e o que é mais, attri-
bue-lhes a superstição e o phanatismo que reina
em Hespanha ! E o inconveniente de tratar da arte
de um povo sem lhe conhecer a historia; do mes-
mo modo que é impossivel tratar da sua historia
sem lhe conhecer a arte !
Temos, porém, para contraste, o parecer de ou-
opiniio de *^^ escriptor que mais particularmente estudou o
^^^9^7' assumpto:
«Por estas asserções tão positivas de um auctor
tão estimado como Bem Saíd, diz Girault de Pran-
gey*, parece que a Andaluzia era ainda, nos séculos
XII e XIII, o paiz por excellencia, como no tempo
•do esplendor de Córdova no tempo dos Abderra-
mães. A tradição vem, pois, como o exame dos
monumentos da Hespanha mussulmana, dar tes-
temunho de um desenvolvimento extraordinaido
* Daniel Ramé, Hist. généralt de Varchittcture.
2 Girault de^Prangey. Ob. cit, pag. 117.
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37
das artes, das sciencias e das lettras na Andalu-
zia, mesmo depois da queda do califado de Cór-
dova.»
Prangey refere-se também aos azulejos < peças Asni^yos.
de faiança de cores brilhantes, que uma arte nova
dispõe symetricamente em desenhos maravilho-
sos», e n'este particular não é Portugal das regiões
menos ricas da peninsula; basta citar os soberbos
azulejos árabes, com relevos geométricos, da Sé
velha de Coimbra, antiga mesquita, os do alcazar
e do palácio da Pena em Cintra, os de Alcochete e
os que se encontram em abundância em Évora.
cOs azulejos, diz Raczinski, constituem em parte
a physionomia de Portugal», e mesmo que o seu
nome nao provenha do árabe (azulaj ou azulec)
como alguns pretendem*, entre outros o nosso vis-
conde de Jorumenha, a verdade é que os mais anti-
gos que entre nós se encontram têem analogia com
os de Alhambra *, e os azulejos relevados do século
XVI denotam evidente influencia árabe'.
A arte árabe tem um caracter inconfundivel, e o ca«cter da ar^
seu estudo, como o da litteratura, legislação, arte j^l**'^*'^» »'»•
da guerra, e outras manifestações do seu génio,
são absolutamente indispensáveis para a compre-
hensão exacta do seu papel na historia. Expressão
das idéas e dos sentimentos de um povo, bastam
só por si os productos artisticos para nos fazerem
comprehcnder a forma e o caracter de um deter-
minado estado social. cA mesquita, a um tempo
escola, templo, estalagem e hospital, revela-nos a
fusão completa da vida civil e religiosa entre os
discipulos do propheta; um palácio árabe, como o
* Caiai, de algun. vocês castel. puramente arábigas, 6 derivadas de
la lengtta griéga, y de los idiomas orientales, pêro introducidas en
JBêpana por los árabes. Mem. da acad. de la hist. de Madrid, tom. iy.
í Kaczinski. Ob. cit, 2á« lettre.
* Gabriel Pereira, Est. eborenses
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38
de Alhambra; com o seu exterior sem decoraçiío, o
seu interior brilhante, mas frágil, dizem-nos da
existência de um povo engenhoso e superficial, que
ama a vida exterior, só pensa na hora presente e
abandona a Deus o futuro. >
Distingue-se em três períodos bem característi-
cos a architectura árabe: o periodo dos Abdarra-
maes, de directa influencia bysantina, cuja sede
foi Córdova e Toledo antes do século x; o periodo
arabe-mourisco, de transição, depois da queda do
califado de Córdova, mais elegante de formas, e
tendo por sede principal Sevilha; e o terceiro, in-
teiramente mourisco, caprichoso nos pormenores
ornamentaes (como a escripta nesqui, cursiva, de
formas angulares, substituindo os caracteres cufi-
cos), periodo que tem por empório Granada, e
Alhambra por jóia de inestimável preço.
Influencia em D'este8 pcriodos liavia de certo de ter feito sen-
tir entre nós a sua influencia o primeiro, e em
parte o segundo, em cidades tao importantes como
eram Silves, Lisboa, Alcácer, Évora, Condeixa a
Velha, e outros centros populosos; o terceiro, po-
rém, floresce já quando o dominio portuguez poe
fora da influencia da Andaluzia musulmana o novo
reino christao. Nao nos pertence esse estudo, que
se prende com interessantes questões da origem e
epocha de florescimento na peninsula das arcarías
árabes em forma ogival e de ferradura, dos mina-
retes de forma quadrangular, da columna, tão ca-
racterística, nas suas proporções e forma, e ou-
tros pontos curiosos. Um facto apenas deixaremos
apontado, e é que quanto mais periclitante e res-
tricto se torna o dominio árabe na peninsula, mais
o génio d'esse povo recorre ás suas tradições e
origens. A situação da Andaluzia, e as antigas re-
lações com o Oriente e o Egypto, facilitaram essa
reflorescencia oriental.
Portugal.
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39
Os árabes e os mouros tinham creado escola, e Artimag penin
o que Herculano affirma com relação aos archite-
ctos árabes em Portugal encontra-se confirmado
em toda a península. E assim que desejando o rei
de Castella, D. Pedro o Cruel, reconstituir em Se-
vilha os alcaçares, árabes, mandou vir de toda a
parte operários mudéjares *. Era já no meiado do
século XIV.
Fora Toledo uma creadora de bons artistas ára-
bes, e segundo uma inscripçao do mencionado ai-
caçar de Sevilha, o rei mouro Nazur mandou vir
d'iiquella cidade o architecto e mestre principal na
construcção dos palácios, e de Toledo eram tam-
bém os outros artistas^. Diz o escriptor árabe
Bemsaíde: tfoi da Andaluzia, então reunida ao im-
pério de Magrebe, que os emires almohadas, luçufe
e lacube Almançor, mandaram ir architectos para
todas as edificações que se levantaram em Marro-
cos, em Rabate, em Fez, em Mançoria; e é um
facto muito conhecido que em epocha alguma a
capital do Magrebe foi tão florescente como sob o
domínio dos descendentes de Abdalmúmem. Por
outro lado é igualmente notório que hoje (1257)
esse esplendor, essa prosperidade de Marrocos, pa-
rece ter-se transportado para Tunis, cujo actual
sultão constroe monumentos, edifica palácios,
planta jardins e vinhas á maneira dos andaluzes.
Todos esses architectos são naturaes d'este paiz,
como também os pedreiros, os carpinteiros, os fa-
bricantes de mosaicos, os pintores e os jardineiros.
As plantas dos edifícios são delineadas pelos anda-
luzes, ou copiadas dos monumentos do seu paiz ^ »
São conhecidas as intimas relações dos nossos o Aigarvo.
* Cean Bermudez, NoUcias^ tom. i, pag. G6.
2 Idem, pag. 238.
3 Cit por G. de Prangey.
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miliUrea.
40
Algarves com a Andaluzia, n' esses tempos; e é li-
sonjeiro para a peninsula ter sido definitivamenta
com os árabes a civilisadora da Africa do norte,
desde Ceuta a Tunis.
coDstrucçset Vcrcmos n'outro capitulo como o mesmo facto
se dá em construcções militares, fabrico de enge-
nhos de guerra, e também no reflexo da organisa-
ção militar da peninsula no norte da Africa.
Mesmo depois da reconquista, como durante
ella, os christãos continuaram a edificar á maneira
mourisca. E também o que militarmente succedia
nas formações, modos de combater, armas e outros
instrumentos, que continuaram a ser mouriscos,
ou á laia mourisca, entre os christãos.
A tomada de Toledo por Affonso VI, para Cas-
tella e Leão, a acção persistente dos Berenguer na
fundação do reino de Aragão e Catalunha, a inte-
gração do reino portuguez até Affonso III, a ren-
dição de Granada pelos reis cathoHcos, realisaram
na peninsula a mesma obra de approximação e
fusão dos dois elementos antagonistas, do mesmo
modo que ella se produzia na Secilia^ pela con*
quista dos normandos. D'ahi a origem do estylo
architectonico denominado mudéjar, que não é
mais do que o consorcio auspicio da arte mussul-
mana com a arte christã ^
Isto nos mostra, mais uma vez, que não é possi-
yel fazer-se a historia isolada de qualquer ramo da
actividade de um povo, sem lhe conhecer-mos as
relações com outras formas d'essa actividade. A
arte da guerra, n'um determinado meio social, é o
producto e o reflexo do que n'esse meio se produziu
em matéria de artes, litteratura, industrias, leis, e
até de religião. Em nenhum povo está isso melhor
^ Portada de uma casa de Toledo. Arte de D, Manuel de Âssas^
no Musea Espan. de Antig., tom. ui.
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41
demonstrado que no povo árabe, que deveu tudo á
sua actividade guerreira, animada pela fé religiosa,
e engrandecida e embellezada pelas variadas e bri-
lhantes manifestações do espirito.
Nos outros ramos das bellas artes não foram os
árabes tâo notáveis como na architectura ; em todo
o caso deixaram vestígios luminosos no tocante á
pintura, á escultura, á musica e ás artes indus-
triaes.
A pintura e a esculptura tiveram o caracter deB*cuiptara.
simples tributarias da architectura, sem individua-
lidade e desenvolvimento próprios ; comtudo, mes-
mo antes da arte se ir emancipando, como os cos-
tumes, das severas prescripções religiosas que pro-
hibiam a representação de seres creados, a pintura
e a esculptura procuravam na phantasia e no ca-
pncbo remediar a deficiência que lhes provinha de
não puderem ir buscar modelos á natureza; com-
binavam os themas mais irriquietos e graciosos so-
bre o motivo constante das figuras geométricas, da
linha e do polygono, que em variações geniaes se
desenvolvem nos mais formosos arabescos, nos
mais complicados esfusiamentos de traços, de fitas,
de curvas, de laços, de circules, de triângulos, de
elypses, de espiraes, — como uma symphonia que
fixasse em relevos de pedra, ou em lavores de es-
taques polychromos, o (caminho aéreo das suas
escalas chromaticas; mas esculpindo-se de facto,
em caracteres angulosos e firmes, inscripções e
dísticos, destinados a entoar, através dos séculos,
graças e louvores á divindade! Formosa idealisa-
çâo da arte!
Alguns chronistas árabes referem-se a estatuas
existentes nos palácios de Hespanha e do Egypto,
mas não ficaram vestígios 'd^essas producções artís-
ticas, não se podendo por isso avaliar o grau de
perfeição que haviam attingido.
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42
Pintura. O mesmo succede com relação á pintura, pois
nào se encontram provas reaes da existência dos
quadros muraes representando scenas de caça e
figuras de mulheres, a que alguns escriptores se
referem, com informações sobre escolas de pintu-
ras ; Macrizí, fazendo a biographia dos pintores
musulmanos, refere se a estofos pintados a primor
pelos árabes do Cairo; na peninsula raros espéci-
mens, alguns de authenticidade duvidosa, como as
pinturas do tecto da sala de justiça em Alhambra,
e algumas illustrações em manuscriptos antigos, não
fornecem elementos para uma apreciação segura.
Musica. A musica não se elevou a altas concepções entre
os musulmanos; mas a paixão dominante dos ára-
bes da peninsula como em toda a parte foi a mu-
sica e a dança. Como ainda hoje entre os beduinos,
era para os árabes do deserto uma consolação e
um deleite. Começando por serem cultivadas e
exercidas por classes inferiores, sobretudo pelas
mulheres, a musica passou nno só a interessar su-
periormente a gente culta, mas a constituir-se em
matéria de estudo para gente grave e erudita que
fse esforçaram por dar a esta arte uma theoria
racional»; como n'outros ramos da arte, fora a
Pérsia a mestra e inspiradora *.
O persa Alfarabi, primeiro commentador da Poé-
tica de Aristoles, deixou estudos sobre a musica,
entre elles o códice do Escurial, Elementos de mu-
sica, que foi examinado por Casiri, e Munk é de
opinião que elle fez adiantar muito entre os árabes
a theoria da musica^. São innumeros os tratados
de musica 'que possue o archivo do Escurial, e no
tempo dos Omeiadas a musica mereceu culto en-
* HÍ8t, Gen. de la musique, por F. J. Fetis, tom. ii e Almanak da
Dyn. Mahomet, em Hesp.^ trad. de Gftyangos.
2 Menendez Felayo, Hist. de las idéas esiét. en Esp., tom. i-iii.
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43
thusiastico em Córdova, Toledo e Granada. — De
origem ou de adopção árabe temos o adufey o mafil^
a aravia, o oi^ahUy os atalaies, a rabeca, etc.
• Não ha cacida (poesia narrativa), conto ou
bailada, sem músicos e tocadores, tomando parte
nos prazeres de familia e nos negócios de Estado.
Assim, pois, de todos os povos da idade media, foi
o árabe aquelle que mais se occupou da arte e
o que maior numero de instrumentos exercitou,
poique todos os que se transmittiram da Grécia
ao império de Bysancio, e os que usavam as an-
tiquissimas tribus da Pérsia, foram conhecidos na
peninsula durante o dominio bárbaro e romano, e
desde os tempos da invasão houve orchestras har-
mónicas que se compunham de sete ou oito instru-
mentos. Eram estes: o mizmar, espécie de Hauta
sem chaves ; o zolami, como o oboé ; o zemer, trom-
pa de metal ligeiramente aberta n'um extremo ; o
bok, cano de metal que se alongava por meio de tu-
bos ; o herbat e o rebal, guitarra e violino, e o canom,
tympano ou psalterio*. Foi commum o uso da harpa
ou cithara entre as mulheres, e uma espécie de gui-
tarra redonda que soava como a bandurra. O tam-
bor e 08 pitos serviam apenas pai'a marcar o passo
ás tropas. Os cantores principiavam com uma es-
pécie de cantochão, que servia para a leitura do
Alcorão, e d'este género passavam ás cadencias
mais doces, com as quaes recitavam as suas poe-
sias.
• Havia orchestas nas justas e torneios, nos co-
lumpios, cavallinhos de pau (kewedj), e nas danças
de mulheres que acompanhavam com xms pausitos,
entoando coros. Tal era a affeiçao á musica que.
' Aliipins doestes iDstrumentos indica-08 Felio com a fórina La-
non, rébahf zarrir; Gayangos n'uma nota ao cap. iii, tom. i, Hv. i,
cita rabáb, dámin, zalémi, miamar, bok, e outros.
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44
quando Ziryal veiu de Irac para Hespanha, prece-
dido da sua immensa reputação, Abdelramão II
saiu de Córdova para receber o artista, o encheu
de presentes, o sentou diariamente á sua mesa e lhe
arbitrou uma avultada pensão. Todos os músicos
árabes desde então acommodavam as suas compo-
sições ás regras d*este celebre maestro ^»
DaoçM monris- Em Portugal impcrou por muitos séculos o uso
cu em porta-^ gQsto dos cautos c dauças á maneira dos árabes;
as tradicionaes danças mouriscas, com o seu rei
mouro e alfaqui, encontramol-aS; em grande afifei-
ção, desde os primeiros tempos da monarchia.
Herculano, no seu conto Arrhas por foro de Hes-
panha, apresenta-nos danças judengas, folias mou-
riscas e trebelhos ou jogos», a esperar no Porto
el-rei D, Fernando I quando fugiu de Lisboa com
D. Leonor Telles. • Adiante d'el-rei, as danças dos
mouros e judeus volteavam rápidas, ao som da
viola ou alaúde árabe. >
São as mesmas danças a que se referem os em-
baixadores de Frederico III da AUemanha que em
Lisboa vieram (1451) buscar-lhe a noiva, a infanta
D. Leonor, filha de el-rei D. Duarte e irmã de Af-
fonso Y; as mesmas do tempo de D. João 11, a que
se refere Garcia de Rezende :
Vimos grandes judiarias,
judeus, guinolas e touras,
também mouras, mourarias,
seus bailes, galantarias
de muitas formosas mouras.
D. Manuel tinha ao seu serviço c músicos mou-
riscos que cantavam e tangiam com alaúdes e pan-
deiros >•
Na corte de D. João III, tendo a rainha D. Ca-
tharina os seus bailadores e tangedores de Mouris-
^ R. Contreras. Ob. cit.
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45
ca, em 1551 mandava-lhes dar 2(21000 réis pelo
corregimento da casa em que se agasalhavam junto
do paço real de Almeirim ; d^esses artistas ficaram
os nomes de Francisco Teixeira, Rodrigo Teixeira
e António Fernandes, que assignaram o recibo, e
que eram portanto os legitimos representantes da
tradicção musulmana no tocante á arte da dança,
como do século xvii nos ficou, entre outros, o de
Francisco Ferreira, mestre de dança moirisca *. E
assim até aos nossos tempos^.
Nas artes iudustriaes o cunho deixado pelo génio
árabe na sua estação na peninsula denuncia desde
logo um povo de um fino gosto artístico, de uma
esthetica levantada e pura, de um encanto raro no
seu viver domestico e social. Não ha objecto de
uso, por mais vulgar que seja, — uma bilha de bar-
ro, uma faca, uma taça, — que não tenha uma for-
ma graciosa e um typo inconfundível. Seria longa
a lista dos objectos que enriquecem os museus do
mundo, provenientes da industria peninsular : me-
dalhas, moedas, jóias cravejadas de pedras precio-
sas ou encrustadas de metaes finos, mosaicos aper-
feiçoados dos romanos e dos orientaes ^; armas tau-
xiadas de oiro ou prata, damasquinadas, objectos
de crystal, de marfim, de vidro ; a louça esmalta-
da, os tecidos tintos em cores vivas e formosas, os
tapetes e estofos de uma grande riqueza de tons e
de desenhos, productos que têem excellentes repre-
sentantes ainda] hoje em toda a peninsula, mesmo
em Portugal, etc.
* Freire de Oliveira, Elementos para a historia do muniàpio de
Lisboa, vol. V.
2 É curioso, sobre este assumpto, o capitulo consagrado ás dan-
ças portuguezas pelo nosso amifi^o dr. Sousa Viterbo no seu livro
Artes e artistas em Portugal, 1892.
5 Mosaicos, aliceres, azulejos árabes y mondejares, por D. Ro-
drigo Amador de los Rios y Villalt.— Mus, Esp, de Ânt., tomo iv.
8
Art«i indas-
triMB.
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46
Diífeitmiei oíft. Eram os luouros e os judeus os que especial-
*'"*** mente exerciam as industrias mais caseiras e tri-
viaes, do mesmo modo que eram, por excellencia,
os cultores das letras e das sciencias ; em moura--
rias, como a que em Lisboa legou o nome a um
bairro, ou pelos campos, exerciam os misteres de
alfagemes, serigueiros, chapineiros, pantufeiros,
tecelões, oleiros, entalhadores, lavrantes de oiro e
prata, douradores, malagueiros» gibeteiros, agricul-
tores. De tudo havia na cidade de Évora no sé-
culo XIV, como informa o nosso amigo sr. Gabriel
Pereira, pelos estudos feitos em documentos his-
tóricos d^aquella cidade, principalmente do livro
de Acenheiro, do archivo da Misericórdia.
«Na turba enxameara judeus e mouros ; estes na
maioria cultivadores de hortas, ferregeaes e vinhas;
alguns sapateiros, ferreiros, oleiros ; os judeus ne-
gociantes, mercadores, curandeiros e astrólogos,
rabis ; bastantes em officios, filtreiros, tecelões, es-
maltadores, alfaiates, gibeteiros, especieiros. Mou-
ros e judeus occupavam bairros especiaes, geral-
mente, e tinham suas communas organisadas, com
seus alcaides ou arrabis, mesquita ou esnoga (sy-
nagoga), com seus talhos e albergarias. Um do-
cumento municipal mostra-nos que ainda em tempo
de D. João I, na mesquita da mouraria, o almuad-
den fazia a invocação exterior. . . Pela sua indole
de raça o hebraico conservava-se isolado do iX)vo ;
quando o mourisco, ferreiro, sapateiro, curtidoí',
oleiro, hortelão ou vinhateiro, vivia perfeitamente
misturado com as camadas populares».
F«]eo«iroi. São muito iuteressantcs estas informações para a
comprovação da nossa tliese; na resenha d'aquelles
oííicios falta o do falcoeiro, ou dos que t fazer aves
tinham cuidado». Era natural que os houvesse em
Évora como os havia em outras terras, por exem-
plo, em Santarém, como informa Fernão Lopes:
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47
«Elle (el-rei D. Fernando) trazia quarenta e
cinco falcoeiros de besta, afora de pé, e moços de
caça, e dizia que não havia de folgar até que po-
voasse em Santarém uma rua em que houvesse cem
falcoeiros. Quando mandava fora da terra por aves,
não lhe traziam menos de cincoenta, entre açores
e falcões nevris e girefaltas, todos primas. Com
elle andavam mouros que apresavam garças e ou-
tras aveS; e estes nadavam os pegos e paúes se os
falcões caíam n'elles))^
Nas sciencias e lettras foi realmente grande o sciendu e let-
movimento produzido em o mundo árabe, que *'^*"*
passou a ser o depositário da sciencia greco-ro-
mana e o seu propagador. Bemsaide dá-nos noti-
cias de muitos escriptores que deixaram renome na
Peninsula *.
Em Hespanha era a academia de Córdova, no Aoademu de
tempo dos Omeiadas, um foco de luz, e ali se en- ^'*'*^**
sinava, segundo as tradições greco-orientaes, a
theologia, o direito, a philosophia, a rhetorica e a
philologia. Não se contentavam, porém, os sábios
peninsulares com a elaboração propría ; iam bus-
car a toda a parte onde floresciam a sciencia e as
letras árabes, a renovação e a afirmação dos co- vugem de em-
nhecimentos adquiridos. Almakarí dá noticia de ***^''
3U4 eruditos da peninsula que foram em viagem
de instrucção aos principaes centros da sabedoria
árabe: Alexandria, Cairo, Damieta, Bagdade, Da-
masco, Alepo, Jerusalém, Hama, Mossul, Meca,
Medina, Bácora, Cufa, Sana, Samarcanda, Balac,
Ispahan, etc. D' esses 304 sábios, 194 eram juris-
consultos, tradicionalistas, 54 leitores e commen-
tadores do Alcorão, pregadores, muftis, 30 eram
philosophos, sofis, ascetas, santos; 53 poetas,
^ Fernão Lopes, Chronica de el-rei D, Fernando,
^ P. Gayangos, Hiêt. of the Moharnmedan dyn. in Spain bj. Al-
Makkari, tomo ii, liv. ii.
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o direito.
48
grammaticos, litteratos; 12 médicos, naturalistas,
mathematicos, etc. Comprehende-se a importância
enorme que isto teria para o progresso scientifico
e litterario em toda a Peninsula *, porquanto esses
homens eram naturaes ou habitantes das cidades
de Córdova, Valência, Xatiba, Tortosa, Denia, Al-
meria, Jaen, Beja, Toledo, Xerez, Maiorca, etc. ^
O direito nasceu logo nos primeiros voos da dou-
trina do Alcorão, que era, além de um código reli-
gioso, um código civil, um código penal e um có-
digo militar. Os que combatiam longe do propheta
pela sua fé e pelos seus princípios, tiveram de se
constituir em interpretes da nova lei, e d'ahi a ori-
gem dos imames ou doutores. Formou-se assim a
escola; fixou-se a doutrina; foi a soniia a segunda
fonte da theologia e jurisprudência musulmana,
como mais tarde seriam as leis conhecidas pelo
nome de concordância e analogia^. Foi Isa bem
Dinar um dos maiores, senão o maior jurisconsulto
natural da peninsula. No território hoje portuguez
indica Almacarí o jurisconsulto e poeta celebre
Abulualide Albagí e Mohamede bem Baxir, natu-
raes de Beja *. Casiri dá noticia, entre outros, de
Bemalaki Alelique Benanes, doutor em direito ca-
nónico ; de Ahmede bem Saíde, jurisconsulto ; de
Abdallá bem Mohamede e Solimao bem Mohamede
bem Batal, ambos professores de direito e poetas,
e todos naturaes de Beja.
Como ramo do direito, mas intimamente ligado
com a arithmetica e a álgebra, estava (ca mais
elevada das scienclas, e a segunda na nobreza»,
como dizia o propheta: a de repartir as heranças,
1 Al-Makkari, Analecfes sur Vhistoire tt la litt. des arab. en Esp.^
intr. V.
2 D. Julian Ribera Tarrago, Orig. deljvsticia de Aragon, pag. 36,
3 L. A. Sedillot, Hiatoire des arabesy liv. vi,
4 Al-Makkari, Analectes, intr. v.
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49
faraidy que demandava conhecimentos sobre a me-
dição das terras, repartição dos impostos, etc.»*.
Os que ficaram de posse de todos os seus segre-
dos eram os sábios, os ulemas, verdadeiros juriscon-
sultos, e theologos a um tempo; a theologia e a ju-
risprudência eram sciencias consorciadas.
A sciencia da grammatica foi também das que ^ grMnmauc».
desde logo se desenvolveu, pela própria necessi-
dade da interpretação dos textos sagrados; foram
os persas, foi principalmente Ez-Zejadji quem
começou de iniciar o povo árabe n'essa sciencia
que lhes abriu os horizontes para outras, não me-
nos illustres, como a philosophia e a historia. Per-
sas foram os mais antigos grammaticos e theologos;
nomes dos mais celebres lexicographos e gramma-
ticos, scolasticoB e rhetoricoS; figuram na impor-
tante bibliographia árabe.
Com o estudo da theologia desenvolvem-se as Atheoiogiâ.
diversas formas da litteratura ; foi a linguagem do
Alcorão a que se fixou e se adoptou, ao ponto de
ainda hoje ser comprehendida por todos, do Indico
ao Mediterrâneo. Ainda mais: dava-se com a lin-
guagem um phenomeno idêntico ao que se deu
com as crenças e cultos, phenomeno «absoluta-
mente único em philologia», isto é, existindo na
epocha da conquista musulmana apenas duas lin-
guas semiticas, o arámeo e o árabe, este absorve
todos os dialectos da Arániea e fica sendo o único
representante do semitismo^.
Fora a poesia o laço espiritual dos povos da a po«ri».
Arábia, mesmo antes de Mohamede, N^esses po-
vos, diz Herder, a analogia de situação e de senti-
mento inspirava a todos os mesmos pontos de
honra; a espada, a hospitalidade, a eloquência
* R. Coutreras. Op, ciL^ pag. 20.
2 E. Renan, Hist gen, et ayat. des langues semitiquca,, liv. v, cap. i.
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60
eram a sua glória; a espada representava a ga-
rantia única dos seus direitos; a hospitalidade era
para elles o código da humanidade, e a eloquên-
cia, á falta de escripta que a todos chegasse, ser-
via para pôr termo ás dissensões que se não re-
solviam por meio das armas. N'esta8 condições, a
poesia realizou uma das grandes aspirações da
raça árabe: a unidade da linguagem, como laço
concreto da unidade dos espiritos, do mesmo modo
que o ideal da unidade divina realizada pela raça
semitica foi <ca pedra fundamental da unidade e
progresso humano*».
Lf MaembióM Nas fciras ou assembléas de Ocade, em Macjna
de Ooade. e -n i * ) * j * i *
a vnifieaçfto 6 em Dulmejaz, n uma espécie dos jogos olympicos
da (Jrecia, se reuniam os poetas das diversas tri-
bus, com as suas armas de guerra, deante do embio-
cado auditório, recitavam poemas eloquentes sobre
as lendas guerreiras, as tradições do povo árabe,
os heroes, os sentimentos nobres, a hospitalidade,
a bravura, a honra, os encantos da natureza, as as-
pirações á conquista e á gloria. Como ao fogo se
fundem os metaes, ao calor d'aquella inspiração se
fundiam os sentimentos e se unificavam os cora-
ções ; mantinham a ligação do passado com o pre-
sente e indicavam o caminho do futuro ; a voz dos
bardos era ouvida com desvanecimento e respeito;
n'ella se agitavam as paizões e se vivificavam as
esperanças. Os vencedores no torneio recebiam
no fim de um anno, durante o qual tinham de dar
provas de bravura e de bondade, os seus diplomas
de honra, os seus poemas escriptos em letras de
oiro, sobre telas preciosas, que eram suspensas nas
paredes da Gaba. Se eram dois ou mais os que obti-
nham a palma, ficavam ligados para sempre n'uma
^ E. Renan, HisL gtn. et syst. comp, des langues semittques, liv. i,
cap. I.
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51
espécie de alliança de triumpho. Foi a origem dos
moallacas, poemas dourados, que faziam parte do
thesouro real, entre cujos auctores mais celebres
sobresahiu Antara, na transição do século vi para
o VII, o brilhante período anti-islamico. Todos estes
germens de idealidade, de generosidade, de heróis*
mo, dourados pela poesia, haviam de florescer mais
tarde na Europa, no periodo cavalheiresco, e tao
bello, da Meia Idade.
A prohibição das assembléas de Ocade por Mo-
hamede, naturalmente por motivos de ordem publi-
ca, atrazou nos primeiros tempos do islamismo o
desenvolvimento da poesia e da litteratura, tendo-
se perdido muitas composições que só se conserva-
vam de memoria ; a preoccupação principal era a
guerra*. Com a paz, porém, começou a poesia a
reflorir ; em cada região onde os árabes assentaram
os seus arraiaes surgiram poetas de grande nomea-
da, que, como nos primeiros tempos, e. sobre tudo
porque á veia lyrica costumavam de juntar a veia
satyrica, representavam a elite e tinham logar nos
régios paços. Principalmente os que se dedicavam
á carreira das armas, encontravam no seu estro
poético um grande prestigio com que se impu-
nham aos seus companheiros da guerra.
Em toda a península se distinguiram poetas ara- a poeiu n«pe-
bes, que eram também soldados. Os emires, mor- °*"*'
mente os omeiades, foram homens cultos, dou-
tos muitos d'elles, verdadeiros chefes pela sua
superioridade de gerarchia e cultura. Cita-se um
chefe guerreiro, Ocailida, que nas suas violentas
algaradas escrevia versos nas muralhas dos castel-
los conquistados:
«Meu é o cavallo impaciente, que na sua car-
reira alcança quanto quer ; minha é a espada que
^ G. Sale. 0b8,hÍ9t, et crit. mr le makometanisme, traducçâo do inglez.
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52
despede relâmpagos ondeantes; minha a dura lança,
cuja ponta parece que foi aguçada pela morte;
com estes dons adquiro riquezas, e outhorgo á libe-
ralidade das minhas mãos pleno poder para gastar».
int<««^w» Antes dos almiravidas a cultura chegara a um
alto grau ; de 44 volumes era, segundo Almacari,
só o catalogo da bibliotheca de Córdova no tempo
de Alaquem; essa bibliotheca foi destruida pelos
almoravidas, espécimen da obra de destruição que
os christãos haviam de levar a cabo, como o arce-
bispo Ximenes em Granada; Sevilha, Córdova,
Granada, eram grandes centros litterarios e scien-
tificos, do mesmo modo que, fora da peninsula,
Bagdade, Jerusalém, Ispahan, Damasco, Alexan-
dria, Bruza, Stambul, Medina e tantas outras ci-
dades ; havia na peninsula 70 bibliothecas publicas
que, com as universidades e laboratórios scienti-
ficos, representavam fontes perennes de illustração
e progresso ; em Almeria, capital de um pequeno
estado, existia no^ tempo de Alotacem uma escola
de poetas e litteratos, de grande fama ; a corte de
Almançor foi muito reputada pelo brilho e excel-
lencia dos seus homens de lettras, sábios, e mú-
sicos; mesmo depois da expulsão dos mouros, os
poemas e versos árabes continuaram a ser ouvidos
entre christãos, traduzidos, paraphraseados, mes-
clados e deturpados; e continuou a influencia da
poesia árabe nos poetas christãos da peninsula
ainda na Renascença e nos trovadores da Pro-
vença, porque não só a peninsula, mas a Europa,
deve aos árabes a arte da rima*. Hugo Manrique
imitou Abulbeca, de Ronda; Perez Hita imitou os
1 «II parait démontrc aajourd'hui que la rime a été empruntée
par les européens aux árabes. Les dissertations de Viardot et de
divers auteiirs me semblent avoir fixe ropinion sur ce point enon-
cé d^ailleurs depuis longtemps et notamment par Tévêque Huet».
Le Bon. op. cií., liv. y.
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53
romances árabes e compoz versos com metrifica-
ção árabe, para as mouriscas; as muvaschahá de
origem árabe, com metrificação nova S foram imi- .
tadas por Galderon, Roja e outros escriptores*. «E
tão profunda tinha sido a influencia da lingua e da
raça árabe, com a qual o povo peninsular se con-
substanciara, que, no século ix, que foi o tempo
dos melhores triumphos para o catholocismo, disse
o bispo de Córdova, D. Álvaro, que os mais dou-
tos dos seus correlegionarios estudavam as obras
dos philosophos e legisladores mahometanos, para
dar correcção e elegância aos seus escriptos; e
quando se esqueceu o latim e os próprios chris-
taos desprezaram a lingua christã, foram os Câno-
nes da Igreja traduzidos em árabe «^
O sol vivificador, que enchia de flores os jar- inflaeocu a©
dins, de cachos as videiras, de fructos os pomares;
as noites de luar tépidas e bellas, o temperado do
clima, a fertilidade do solo, a frescura das aguas,
a fauna abundante, a riqueza dos jazigos metali-
feros, tudo fazia da península um paraizo ideal,
como que a terra da promissão, para os que aca-
bavam de transpor em luta armada os climas mais
inhospitos. A terra da Peninsula «só tinha um de-
feito: o de fazer esquecer a pátria»*; os rios pare-
ciam cícaudaes de vinho, e as casas taças para os
receber» ^ Como é que a poesia deixaria de flores-
cer n'estas condições? Almacari, fallando da poe-
sia entre os andaluzes, refere factos que provam a
natural propensão entre elles para o verso, que as
* Vide o que a respeito doesta nova metrificação e forma de ver-
sos de origem peninsular transcreve Almacari das informações de
Bem Galib, e a nota respectiva de P. Gayangos, HisU of the moham.
dyn. in Spain,^ tomo ii, liv. ii, cap. i.
* K. Contreras, Recuerdo de la dom. de los arab. en Eap., pag. 138.
3 Idem, pag. 84.
* Palavras de Açaracci.
^ Versos de BemaUbana, citado por Almacari.
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b4
mulheres, e até as creanças, cultivavam e improvi-
savam *,
Poeta* nas ter. Seria longo eiiumerar aqui todos os poetas que,
gai. nos diversos géneros, se distmguiram por toda essa
Peninsula*; só Almacari, como vimos, se refere a
53 que floresceram no tempo dos Omeiadas. Basta,
porém; citar alguns que foram filhos do torrão hoje
portuguez, por exemplo : Benammar, natural de Es-
tombar, afamado poeta e politico da corte de Mola-
mide, rival do Zaidum de Córdova ; alem de poeta,
philosopho e sábio muito notável, aos seus talentos
deveu ser nomeado gran-vizir de Córdova'. Be-
nabdum, poeta do Balsameiro ou Collar da rosa,
nascido e fallecido em Évora, e elevado a cargos
altos pelos seus merecimentos e vasta erudição,
notável principalmente pela sua elegia á queda
dos Aftasidas; Bem Badrúm de Silves, que còm-
poz o Cálice de flores ou Concha de pérolas;
Alállam, de Faro, mestre do eborense Benabdum ;
Bem Mocania, de Lisboa ; Abul Valid e Abu Ab-
dallá Mohamede, de Beja; Bem Salame, de Silves,
como de Silves eram também as poetisas Mareamí
e a Xelbia, ou a Silvense, e tantos outros, pois Sil-
ves foi um centro luminoso das artes e das lettras
musulmanas, etc, etc.
Nos trabalhos de Casiri sobre os códices ára-
bes do Escurial, nos de Codera, nas referencias de
Almacari, de Hooguliet, de Dozy, innumeros da-
dos se encontram para este estudo*.
Entre outros ramos da litteratura árabe avulta
o conto, a novella de imaginação, narrativa de amo-
res, de proezas, de aventuras, na maior parte em
o conto o a no*
yella.
1 Pascual GayangOB, op. cit., tomo i, liv. ii, cap. iii.
2 B. Contreras. Hecutrdos de la dom. de los arah. ea Esp.
5 Contreras. Op. ctí., pag. 127.
* Entre nós ha os trabalhos dos srs. David Lopes, Gabriel Pe-
reira, Oliveira Parreira, que se occupam do assumpto.
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66
verso. As Mil e uma noites, repositório da phanta-
sia de umas poucas de gerações, constituem um
modelo no género ; as Sessões de Harirí e os tra-
balhos de Hamadani, tomaram-se celebres ; na pe-
nínsula avulta o nome de Mohamede Bem Tufaíl,
de Cadiz, cujo notável romance philosophico foi
traduzido pelo orientalista Pocock.
«Em Hespanha, a imaginação dos poetas exer-
ciase em noveUas e romances ; os sectários de Mo-
hamede foram sempre grandes contistas; reuniam-
se á noite, sob as suas tendas, para ouvir alguma
narrativa maravilhosa, á qual se misturava, como
em Granada, o canto e a musica; o romancero,
composto de peças tradazidas ou imitadas do árabe,
traça com exactidão as festas do tempo, o jogo dos
anneis, as corridas de toiros, os combates dos chris-
tãos com os mouros, os altos feitos e as danças dos
cavalleiros, e essa galanteria delicada e requintada
que tomou os mouros hespanhoes famosos em toda
a Europa*».
Celebres foram tambein as fabulas árabes, e o a fabnía.
lendário Locmam, o Esopo da Arábia, foi apresen-
tado por Mohamede como o typo da sabedoria ; e
como Esopo ou Calidasa, é elle o mythico represen-
tante de tradições communs em toda a humanidade.
Os provérbios de origem árabe constituem hoje
um opulento thesouro na tradição peninsular : uma
grande parte dos que representam o fundo inesgo-
tável da sabedoria de Sancho Pança, é de origem
muBulmana^.
Foi a historia um dos ramos mais fecundos da AUstori».
litteratura árabe, e n'elle sobresairam homens do
valor de Atabari, que escreveu no século x uma
historia universal ; Maçudí, do mesmo século, que
^ SediUot, HÍ9Í, dei arahea.
2 G. le Bon, La civ. des araòcê, lir, t, cap. ii-3.
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56
mostrou uma extraordinária erudição, não só sobre
a historia dos árabes, mas no que respeita aos co-
nhecimentos clássicos e orientaes, na sua Historia
do tempo, Os prados de oiro, etc; Abulfarage no
século xm, Bem Caldiim, Abulfeda e Nosirí no sé-
culo XIV. Haji Califa, que morreu em 1658, indica
na sua Bibliotheca oriental 18:500 obras e 1:200
historiadores ^ Entre simples naiTadores ou chro-
nistas, na maior parte, como nao podia deixar de
succeder n'aquella epocha, são dignos de menção o
espirito critico e a alta concepção que tem da his-
toria Bem Caldum «africano de nascença, peninsu-
lar de espirito»*. No prefacio dos seus Prologome-
nos (1374 a 1378) diz o seguinte:
Bcmoaidom. «Eucaremos a historia na sua forma exterior :
serve para relatar os acontecimentos que marcaram
o curso dos séculos e das dynastias, e que tiveram
por testemunhas as gerações passadas. Foi por
causa d'ella que se cultivou o estylo ornado e se
empregaram as expressões figuradas; ella fez o
encanto das assembléas litterarias, onde os inte-
ressados accorrem a flux ; é ella que nos ensina a
conhecer as revoluções porque passaram todos os
seres creados. Offerece-nos um campo onde se vêem
os impeHos acabar a sua carreira; mostra-nos como
todos 08 diversos povos encheram a terra até lhes
ser annunciada a hora da partida e lhes ter che-
gado o momento da abandonar a existência.
«Vejamos agora os caracteres externos da scien-
cia histórica : são o exame e verificação dos factos,
a investigação attenta das causas que os produzi-
ram, o conhecimento profundo da maneira por que
os acontecimentos se deram e de que se tomou co-
nhecimento. A historia, portanto, forma um ramo
* G. le Bon.' Op. cit.
* David Lopes, Textos fim aljamia portuguesa, no seu muito inte-
ressante Prefacio.
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57
importante da philosophia e merece ser contado no
numero das sciencias».
Não se dirá que é um eâcriptor moderno?
Na península, Benalfarade escreveu no começo
do século XI, em Córdova, uma historia dos sábios
hespanlioes; Humardi de Mayorca, em lOtíO, apro-
fundava este assumpto; Abu Bohu Mohammede,
filho de uma mulher goda (Benalcutia)^ e o profes-
sor de historia em Sevilha, Azubaidi, foram histo-
riadores; em historia e geographia se distinguiram
Bem Haiane, Benalabar, Benalcatibe, Bem Saide;
mas entre todos estes sobresae Bem Bassame, na-
tural de Santarém, que floresceu no século xii,
deixando três volumes de ura diccionario bibliogra-
phico de muito valor para a historia da peninsula;
e em território hoje portuguez ha a notar Bem Sa-
hibacalá, natural de Beja, do século xii também,
auctor de uma historia dos Almohadas, e Bem Mo-
zaim, de Silves ^
Como nos rendilhados arabescos e graciosíssi-
mas formas da sua architectura, e na elegância e
cunho artístico que requeria em todo o objecto das
suas artes e industrias, assim também na forma da
sua litteratura era o árabe muito exigente. A elo-
quência era um dom altamente apreciado entre os
árabes, desde os primitivos tempos; a eloquência,
como vimos já, e o conhecimento perfeito da lin-
gua, a dextreza no manejo das armas e do cavallo,
e a hospitalidade eram considerados os dons por ex-
cellencia^. Das primeiras arengas, de uma eloquên-
cia espontânea e nativa, se passou para a oração
em forma ; a eloquência sagrada veio a ter como
rival a eloquência tribunicia. D'ahi a rhetorica e
Bistorladorei
da penin>
sul a.
Litteratura.
* Dozy, Ilist. des mus. é Becherches; e David Lopes, Textos em
aljamia portuguesa, prefacio.
2 G. Sale, Oò*. hist. et crit. sur le mahomelanisme.
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68
08 tratados de estyliBtica, dos quaes só na biblio-
theca do Escurial se encontravam trezentos.
AphuoiopLi* Depositários da sciencia greco-romana, os ára-
bes não podiam deixar de ser os representantes
das idéas philosophicas do seu tempo. A própria
fé religiosa os levou a isso, principalmente quando
começaram de apparecer protestantes contra a or-
thodoxia absoluta do Alcorão, por vezes reputado
contrario ao progresso. A noção de Deus era um the-
ma vasto e seductor que fatalmente havia de con-
duzir ás controvei*sia8 de todos os tempos. Houve
mesmo entre os árabes, constituindo escola á par-
te, 08 philosophos puros, que abstrahiam a religião
da pliilosophia.
Comquauto faltasse ao árabe, como a todos os se-
mitas, que tinham a vontade divina como a suprema
rasão das coisas, a curiosidade da investigação das
grandes causas e eífeitos, e, como observa Renan,
aquella raça não tivesse na sua philosophia e na
sua sciencia a extensão e a variedade, e portanto o
espirito analytico ; comquanto se possa acceitar a
opinião do mesmo escriptor de que a philosophia
árabe era a philosophia grega' «escripta em ára-
be», e uma «reacção do espirito indo-europeu con-
tra o islamismo», a verdade é que o árabe conti-
nuou a manter vivo. durante a idade media, o fogo
sagrado dos estudos philosophicos.
DiverMf ewo- Em muitas escolas e seitas philosophicas se divi-
diram; mas o racionalismo de Aristóteles e os di-
versos ramos em que se diflferençava a sua dou-
trina tiveram a primazia.
O grande philosopho grego fora profundamente
estudado e traduzido, desde Honain e lahia, um
chefe de escola, que teve grande influencia pelo
seu exemplo. Al Farabi pôz n'um livro de Aristo-
^ £. Renan, Ht9t. ffen. des langues êemitiqueê, liy. i, cap. i.
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59
toteles a seguinte nota: tli-o duzentas vezes». Pla-
tão e Pythagoras lhes eram também muito familia-
res, bem assim todo o movimento scientiíico e o das
idéas clássicas; «foram elles o élo que ligou a es-
cholastica á pUilosophia antiga»*, elles e os judeus.
A longa controvérsia entre os realistas e os no-
minalistas teve entre elles os seus representantes ,
€ as doutrinas de Alberto o Grande podiam ser rei-
vindicadas pelos árabes, cuja influencia se fez sen-
tir até sobre os mysticos da idade media, como S.
Boaventura»*. Houve entre elles, e em toda a Hes-
panha, precursores dos mais ousados e revolucio-
nários philosophicos dos tempos modernos.
Ia travada a disputa entre os partidários da es-
senda e os dos attributos de Deus. Por outro lado
havia os partidários da fé absoluta, sem a menor
intervenção da rasâo (os sufis); os que acceitavam
a rasão, mas tendo por base a religião (os motaca-
limes); e finalmente os que reputavam a rasão su-
perior á fé (os nwtazitas). Cada uma d'estas esco-
las teve proselytos illustres.
Entre os philosophos de maior nomeada basta
citar Avicena (Bem Sina) que, com o persa Alfa- "'imoViToV.*
rabi, systematisou o estudo daphilosophia; Avem-
pace (Bem Beja) natural de Beja^, racionalista e
evolucionista, um dos mais importantes philoso-
phos árabes da peninsula; e Averroes, o maior de
todos, (Bem Roxede), partidário do aristotelismo na
sua essência, e a cujos commentarios sobre Aristó-
teles cse reduzem os ideaes litterarios dos hespa-
nhoes de raça e cultui'a semitica» *.
i SedUlot. Op» cíí., liv. vi, cap. iii.
* Idem.
3 Alguns dizem que de Saragoça, outros de Córdova. Gayangos
aparou que «o texto de duas copias por elle consultadas dizem dis-
tinctamente filho de Bfja no Andaluz».
* Menendez Pelayo, Hist. de leu idéoê estet. en Esp,, tom. i. É in-
teressante o estudo feito por este escriptor sobre as «idéas estheti-
cas entre os árabes e judeus hespanhoes».
Os «raodes phl-
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60
puiMopiKM pe- Entre os philosophos peninsulares estão, alem
nlnanlares.
dos já citados Avempace e Averroes, Bem Tufáil,
de Cadiz (seu discípulo) * e o medico Avenzoar (Bem
Zor), de Sevilha, e Bem Hazme Azahiri, de Córdova,
«um dos mais nobres caracteres produzidos pela
dominação árabe em Hespanha», e auctor de nu-
merosos volumes de philosopliia, legislação e scien-
cias; uma familia, a dos Avenzoar, da qual Aver-
roes era intimo, «reunia todo o movimento scien-
tifico da Hespanha musulmana no século xii»^.
Estes philosophos, perseguidos e renegados pelos
que na peninsula passaram a combater por todas
as formas a philosophia, como contraria á ortho-
doxia religiosa, são mais philosophos europeus do
que propriamente árabes; «acoçados pelo fana-
tismo, diz Renan, Avempace, Abubacer, Avenzoar,
Averroes, viram o seu nome e as suas obras en-
trar na corrente da vida europeia, isto é, da ver-
dadeira vida da humanidade»^.
MoTim«Dto phi. Até ao século x vieram da Ásia á peninsula tra-
oMp CO. (JuctQres dos livros clássicos, e desde então passou
a haver um grande numero de indivíduos, árabes
e christãos, que professavam a philosophia. Abri-
ram-se escolas onde alem da philosophia se ensi-
nava o Talmud e os Evangelhos, a medicina, as
sciencias naturaes. As mazanas, ou universidades,
representavam o lustre e a gloria de muitas cida-
des ; Toledo, sobretudo, antes da invasão dos almo-
hades, era o refugio e o imporio dos philosophos e
dos sábios. Foi o fundador da dynastia dos Omeia-
^ Falando da original issiin a novella philosophica de Tufáil, que
tem o titulo Hay hem Jokdam, diz Mejiendez Pelayo que «não ha
obra mais original e mais profunda em toda a litteratura arábica; é
mais do que isso : poucas concepções do engenho humano têem um
yalor táo synthetico e profundo ; é, por assim dizer, uma phantaaia
psychologica, um discurso sobre o methodo desenvolvido em fórma
poética». Ob. cit.
2 E. Renan, Averroes et Vaverrotsme, part. i, cap. i.
3 E. Renan, idem.
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61
das quem deu maior impulso ás traducções das
obras antigas, contra a opinião radical dos ortho-
doxos, produzindo assim «uma verdadeira revo-
lução philosophica no maliometanismo ' » .
Resta-nos ver o que aos árabes devem as scien- scienoias.
cias, principalmente na peninsula. Nâo ha ramo
nenhum d'ellas em que não caiba a primazia aos
árabes, na fecunda elaboração da Idade Media, tão
calumniada. Foi Bagdade o primeiro grande im-
porio.
No século IX as scíencias mathematicas tiveram Mathematica.
notável incremento pelo conhecimento dos traba-
lhos da sabedoria grega e indiana. Foram tradu-
zidos Euclides, Archimedes, Ptolomeu e outros au-
ctores gi^egos. Com uma individuahdade própria,
cedo os árabes trouxeram acquisiçÕes novas e de-
ram poderoso impulso a esse grande ramo dos co-
nhecimentos, que haviam adquirido principalmente
por intermédio dos sábios da escola de Alexandria,
e iniciado pelo Âlmagesto de Ptolomeu. Por meio de Aitroaomia.
observações directas, a astronomia começa logo de
progredir a passos gigantescos ; multiplicam-se os
observatórios ; nomes illustres de astrónomos ára-
bes se inscrevem no kalendario dos beneméritos da
sciencia. A Taboa verijicadaj producto das obser-
vações feitas nos observatórios de Bagdade e Da-
masco, dão a determinação precisa da obliquidade
da ecliptica; fixou-se a duração do anno pela ob-
servação dos equinoxios ; ensaiou-se mesmo medir
um arco do meridiano terrestre, etc. A escola de
Bagdade era uma verdadeira escola scientifica, nos
seus rigorosos processos; o periodo do califa Al-
mamum, o Mecenas e o Augusto dos árabes, é um
periodo fecundo; os seus successores proseguem
activamente, mas passo a passo, no caminho dos
1 Vid. o cap. Movimiento filosófico de los árabes, em R. Contre-
ras. Op. cit,
4
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62
progressos iniciados; e mesmo quando o grande
império se retalha, núcleos de actividade scientifica
continuam, ou se formam de novo, em diversos
pontos do globo. Caíam as dynastias . e ficava de
pé o principio da solidariedade scientifica ; os prín-
cipes Buidas continuavam a obra de Almamum e
seus des^ndentes. É assim que nos séculos ix e x
appareceram homens de alto valor: Albatequi, o
Ptolomeu dos árabes; os Amadjur, pae e filho, au-
ctores de notáveis taboas astronómicas; os três fi-
lhos de Muçabem Xaquer, que determinaram os
equinoxios com a máxima precisão e as ephemeri-
des dos logares dos planetas ; Abú Isaac, um ma-
thematico profundo; al-Sagani, que na sciencia
da meclianica se tornou eximio; e Abulefa, o pre-
cursor de Ticho Brahé, e inventor de foiínulas im-
portantes, chegando-se com elle, na opiniâo'de Se-
diliot, cao limite extremo a que se podiam levar
os conhecimentos astronómicos».
No século XI, como consequência de guerras e
invasões, Bagdade tem de ceder o sceptro da so-
berania intellectual, o qual passa para o Cairo na
Africa, e Córdova, Sevilha, Granada, e por fim
Toledo, na peninsula ibérica. Comtudo, quanto á
astronomia, a escola de Bagdade leva a sua activi-
dade até meiados do século xv.
Na escola do Cairo, com o seu celebre observa-
tório no alto de Mokatam, e a bibliotheca onde se
contavam 6:000 obras de astronomia e mathe-
matica, sobresae Beniones que t fixou a obliquidade
da ecliptica, a excentricidade da terra na sua or-
bita e as desigualdades maiores dos astros * .
Napenimnia. Na pcniusula ibcrica foi grande a attenção dada
ao estudo da astronomia, e na plêiade brilhante
dos cultores d'esta sciencia, que tinham n'es8e
tempo um prestigio muito grande, sobresaem Azra-
chel (século xi), auctor das Taboas toledanas, que
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63
teve observações muito notáveis para determinar o
apogeu do sol e o movimento de precessão dos equi-
noxioa; Jabre Benoflá, de Sevilha, auctor de um
tratado traduzido em latira; e Averroes que, alem
de medico e philosopho, era astrónomo. O museu
archeologico nacional de Madrid possue ura pre-
cioso astrolábio toledano *.
Em Hespanlia, como em outros pontos onde do-
minaram ou influenciaram, deram os árabes a co-
nhecer, antes de ninguém, to diâmetro da terra, a
duração do anno solar, o pêndulo, a photometria
dos astros, a refracção atmospherica, a altura da
matéria gazosa que respirámos, taboas de cálculos
aperfeiçoadas, o raio, a regularidade dos ventos, e
muito mais; o que tudo traduziram nos seus li-
vros com denodada applicação, fundando o pri-
meiro observatório de que ha noticia na Idade
Media. Sedillot é de opinião que na descoberta do
movimento da elliptica dos planetas e da theoria da
mobilidade da terra, os árabes antecederam Kepler
e Cupernico.
Gustavo Le Bon resume assim as descobertas Descobertas ai
astronómicas dos árabes: introducção, desde o se- *'*'°''°***'"-
culo X, das tangentes nos cálculos astronómicos ;
construcção das taboas de movimento dos astros ;
determinação rigorosa da obliquidade da ecliptica
e da sua diminuição progressiva; calculo exacto da
precessão dos equinoxios; primeira detenninação
exacta da duração do anno ; e, finalmente, o conhe-
cimento das irregularidades da maior latitude da
lua e a descoberta da terceira desigualdade lunar
designada hoje com o nome de variação, que se
julgava ter sido apenas determinada pela primeira
vez em 1601 por Tycho Brahé *.
1 Astrolahioê aràbca, por D. Eduardo Saavedra, Mus. Esp. de
Ant,, tomo vi.
« G. Le Bon. Op. cit. pag. 501.
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Arte de adivi- Ao conhccimento da astronomia estava ligada
°^*'^' n'esse tempo uma arte muito estimada, e a que
recorriam todos, desde o soberano até ao mais hu-
milde vassallo: a arte de ler no futuro, parte char-
lata da sciencia, mas que tinha, pelo menos na
crendice do tempo, foros de sabedoria, e que na
Europa chegou até Kepler. Mesmo depois da re-
conquista ficaram os árabes com essa especialidade.
É assim que encontrámos no nosso Fernão Lopes
a informação de que, andando o rei de Castella
D. Pedro em guerra com D. Henrique, quizera estar
ao facto do que lhe esperava, e como «fazia muito
por saber de seus astrólogos a certidão das cousas
que lhe haviam de vir, e não somente pelos letra-
dos de sua terra, mas ainda a Granada, mandava
perguntar a Abenahalim, mouro, gi-ande sabedor
e philosopho, que lhe escrevesse a certidão das cou-
sas que lhe podiam aquecer». Respondeu-lhe o
mouro que seria cercado pelo inimigo n'um logar
que tinha uma torre chamada Estrella; suppoz <>
rei ser Carmona, que tinha realmente uma torre
doesse nome e tratou de bem se fortificar n'ella.
Mas o inimigo não foi lá ter; e pôz cerco a Montei.
Indagado o caso. Montei também tinha uma torre
com o mesmo nome. A culpa não fora do mouro,
que adivinhara certo *.
Astrologia. Lougos scculos coutínuou consorciada a astrolo-
gia com a arte de prever o futuro. E assim que,
segundo o nosso Fernão Lopes, o pae de Nuno Al-
vares Pereira, que «era astrólogo e sabedor, e quan-
do lhe alguns filhos nasciam trabalhava-se de ver
a sua nascença, e por sua sciencia entendeu que
havia de haver um filho, o qual seria sempre ven-
cedor em todos os feitos de armas em que se acer-
tasse, e que nunca havia de ser vencido». Ou fosse
* Fernão Lopes, Chronica d*d-re% D, Fernando, cap. xlyi.
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o próprio pae quem fizesse a observação, ou cum
grande letrado e muito profundo astrólogo, que
chamavam mestre Thomaz», que em sua casa an-
dava, o facto é que ao nascimento de Nuno Alva-
res se ligou a idéa de uma devinação astronómica *.
Evidentemente, com a sciencia astronómica ha-
viam de progredir as mathematicas puras, como
instrumento indispensável ao methodo de observa-
ção e experiência com que os árabes, desde o sé-
culo IX, anteciparam os modernos processos scien-
tificos desconhecidos aos outros povos da Idade
Media, methodo que consistia em «caminhar do
conhecido para o desconhecido, tomando conta exa-
cta dos phenomeuos para em seguida remontar ás
causas, acceitando apenas o que era demonstrado
pela experiência i.
Nos ramos das sciencias naturaes, o estudo dos scienciu nata-
metaes, de que era tão abundante e rica a penin-
sula ibérica, mereceu particular attençâo aos ára-
bes ; foi grande a exploração das minas de cobre,
de ferro, de mercúrio, de oiro ; a tempera do aço
chegou á máxima perfeição, como em Toledo, onde
o fabrico das armas brancas é ainda hoje modelar.
Â8 plantas, muitas das quaes foram por elles intro-
duzidas na Europa, e enriqueceram os jardins e os
herbarios, mais sumptuosos, a pharmacopeia e a
culinária da epocha, e a introducção também
do assucar, do rhuibarbo, das folhas de sene, da
camphora, de muitos xaropes, electuarios e con-
servas da Ásia e da Africa, representam um
capitulo vasto da actividade árabe; foi isso um
grande subsidio da medicina, e deu origem a jar-
dins botânicos, como o de Abderramão em Cór-
dova.
4 Fernão Lopes, Chronica d'el-rei D. João I, cap. xxzit.
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cOs árabes, diz Sedillot, deram-nos a conhecer
a noz moscada e o crava da índia. Correia da Ser-
ra, auctoridade muito completa, notou que, culti-
vando muitas arvores de fructos dióicos, elles ti-
nham tido idéas muito claras acerca da fecundação
sexual. Na sua excellente apreciação da obra de
Abú-Zacharia, demonstrou com clareza a vasta ins-
trucção dos árabes em economia rural. Embora
n'isso se mixturasse a superstição, tinham proces-
sos que merecem a attenção dos agricultores ; a
Hespanha deve-lhes as ríoras, rodas em rosário a
que são adaptados os alcatruzes. Levaram a agri-
cultura ao mais alto grau de perfeição, e occupa-
ram-se também de geologia ; a obra de Lyell faz-
Ihes o este respeito a justiça que merecem. O sr. de
Sacy publicou muitas partes intei-essantes da obra
de Cazwini, com rasão appellidado o Plínio dos
Orientaes; devemos mencionar também o nome de
Aldemiri, o Buffon dos árabes, cuja historia dos
animaes é justamente celebre. Póde-se portanto
afiirmar que todos os ramos das sciencias naturaes
eram conscienciosamente estudados ^ •
Sciencias phy Nas scicncias physicas, apesar das principaes
obras se terem perdido, as que ficaram dão idéa
do desenvolvimento por elles adquirido; Humboldt
considera os árabes como verdadeiros fundadores
d'essas sciencias.
Na physica, a obra do Alhazen, na qual Ke-
pler baseou os seus estudos, é reputada a origem
dos nossos conhecimentos em óptica. As suas luzes
sobre mechanica são comprovadas por muitos ins-
trumentos que chegaram até nós, ou cujas descri-
pções se encontram nos tratados da epocha. Na
chimica, cujas suas melhores obras se perderam
também, ficaram ainda assim as de Rhasis e de 6e-
* L. A. SediUot. Hist des árabes, liv. rv, cap. ii.
•iças.
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67
ber, sendo a doeste um verdadeiro repogitorio que
dá idéa do grau de adiantamento a que os árabes
haviam conduzido esta sciencia. Desenvolvendo
muito os conhecimentos summaríos que haviam re-
cebido dos gregos, descobriram o álcool, o acido
nitrico, o acido sulfúrico, e outros corpos; conhece-
ram a distillação, as propriedades do gaz, da po-
tassa, do nitrato de prata, do sal ammoniaco, do
sublimado corrosivo, etc; tiveram importantes la-
boratórios ; na arte da guerra os preparados explo-
sivos alcaçaram grande e poderosa applicação. E
não só na arte da guerra, mas em todos os ramos
da industria, as sciencias naturaes, embora em em-
brião, prestaram serviços, como na industria mi-
neira, na da tinturaria, na do fabrico do papel,
aprendida dós chinezes, mas com a substituição da
seda pelo algodão, etc.
Um dos conhecimentos em que os árabes foram Navegação,
exímios, e em que se valeram também dos seus aper-
feiçoamentos e applicações scientificas, como a da
bússola, foi o da navegação ; n'este particular, são
os antecessores e os emulos dos portuguezes. Foi
pela navegação e pela conquista que se tomaram
os verdadeiros mestres de uma sciencia antes d'el-
les desconhecida na Europa, onde Ptolomeu era
ainda o oráculo : a geographia. Foi um árabe pe-
ninsular, Edrici, quem deu a conhecer os novos ho-
risontes abertos a esta sciencia. Innumeros foram os
livros de geogi*aphia e os mappas publicados pelos
árabes; muitos são os nomes dos viajantes e geo-
graphos que se tornaram celebres e deram a conhe-
cer as diversas partes do mundo, desde Nadar de
Bassora, no século viii, até Abulfeda, e Ben Ba-
tuta.
Aos conhecimentos anteriormente accumulados
pelos árabes, e até a informações directas doestes
se pôde dizer que deveram em parte os portugue-
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68
zes a sua iniciativa nos descobrimentos. Sabe-se
que o nosso infante D. Henrique recebeu de viajan-
tes e geographos árabes em Ceuta, quando por nós
foi tomada aquella praça, informações que o leva-
ram a encetar as suas explorações no Atlântico,
como reconhecimentos indispensáveis para a grande
campanha épica através dos mares.
veBMgiot pro- Foi um povo n'e8ta8 condições de cultura o nosso
fllTencu \rt cducador durante sete séculos, e foi tão grande a
be entre nós. • n • 1 1 • j i
influencia por elle exercida nos usos, nos costumes,
na maneira de ser, de pensar, de proceder dos po-
vos peninsulai^es, nas regiões onde dominaram, que
não ha ramo algum da nossa actividade onde se
nao encontrem profundos vestígios d'essa influen-
cia. '
Póde-se applicar a toda a península, com pe-
quena differença de nomes, no que respeita, por
exemplo, ás artes e officios, o que um distincto
arabista hespanhol diz n'um bello estudo sobre as
influencias árabes em Aragão:
EmArftgio. «En las iudustrias e oflicios, la huella aiin se
percibe en los nombres árabes de tahoneros, guada-
macileros, olfareroSy cdbarderosy albaniles, alarifes,
albéitares^ algeceros, etc, con una multitud de vo-
cábulos e denominaciones que denotan de quién se
recebian por entonces estas enseftanzas: aldabasy
andamioSy azoteas, zaguanes, alcohas, algibes, algor-
fas, etc, etc, un sin numero que llenarian varias
cuartillas; en matéria de tintorería muchos colo-
res : azul, anil, amarillo, escarlata, carmesi, etc. ; en
tecidos' ó prendas de vestir una larguísima pro-
cession: zaragilelles, almohadas, alfombras^ alama-
resj etc.»
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69
E o que se deu na península ibérica, dá-se, EmPr»nça.
nos paióis de Auvergne e do Limousin^ e p6de-se
dizer em todos os paizes banhados pelo Mediter-
râneo:
til était tout naturel que les árabes, maítres de
la Méditerranée depuis le huitièrae siècle, diz Sedil-
lot, donnassent à la France et à Tltalie la plupart
des termes de marine: amiralj escadre, floite, fréga-
te, corvette, caravelle, felonque^ chàloupe, aloop, bar-
que, chiourme, darse, calfat, estacada, et, en première
ligne la houssole, improprement attribuée aux chi-
nois; que dans la formation des armées perma-
nents on adoptat les titres donnés aux officiers des
aiinées musulmanes, le cri de guerre des árabes,
Temploi de la poudre à canon^ des bambes, des gra-
nades, des obus ; que dans Tadministration, les ter-
mes de syndic, aides, gaòelle, taille, tarif, duane, ba-
zar, etc, fussent empruntés aux gouvernements de
Bagdad et de Cordoue. Les róis de France de la troi-
sième race les imitaient en tout; c'est ainsi que la
plupart des termes de grandes chasses sont árabes:
chúÃse, meute, laisse, curée, hallali, cor de chasse,
fanfarre, etc. ; que le mot toumoi, que les lexico-
graphes modernes font venir de torneamentium,
est bien Tarabe toumou, espectacle militaire; mais
c'est principalement à la nomenclature scientifique
que nous devons nous attacher. Nôtre astronomie
est peuplée d'expres8Íons árabes: azimut, zenith,
nadir, les pièces de Vastrolabe, alidade, alancahuih;
les noms d'étoiles: Aldébaran, Rigel, Althair, Wé-
ga. Acamar, Aghol, etc; chimie: alchimie, álcool,
alcali, alambic, etc; pour Thistoire naturelle et la
médecine: boi, elixir, 8Írops,juleps, sorbet, mirolans,
etc, et ce haschich d'oú nous est venu le terme as-
sassins > .
Nem em todas estas palavras se pôde dar por
apurada a sua procedência árabe; é fora de du-
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raçaa.
70
vida*, porém, que a grande maioria d'ellas tem essa
filiação.
FuíiodasdMs Apesar da differença de religião e de raça, por
tal forma se aproximaram os povos, conquistado-
res e conquistados, que em muitos pontos se fun-
diram. O mosarabe e o mudéjar sao os typos ca-
racterísticos d*essa fusão, que não se deu apenas
nas classes populares, mas nas mais preponderan-
tes da sociedade, chegando a cpnfundir-se até nos
, trajos, nos nomes e appellidos, que sendo mouros
figuraram entre muitas famílias christãs, e vice-
versa *. Príncipes árabes esposavam mulheres chris-
tãs, sendo muitos os exemplos d^esses consórcios em
Castella, Aragão e Navarra, como também de
príncipes christãos com musulmanas, o que foi
ainda mais frequente, havendo portanto grande
parcella de sangue rausulmano nas veias dos mo-
narchas e principal nobreza peninsular^.
Em Portugal basta citar o casamento de D. Luiz
de Lencastre, primeiro commendador-mór da or-
dem de Aviz, oitavo filho do infante D. Jorge, du-
que de Coimbra, filho amado de D. João lí, com
1). Magdalena de Granada, filha de D. João de Gra-
nada, governador da Galiza, irmão de Mahunad
Abandalim (Bpabdil), ultimo rei de Granada, e fi-
lho do rei de Granada Muley Abul Caiem. D. Ma-
gdalena de Granada se chamou por isso a quarta
filha de D. Luiz de Lencastre, casada com D. João
de Silveira, filho herdeiro do conde de Sortelha, que
não chegou a succeder a seu pae por ter morrido
na batalha de Alcácer Quibir, mas que deixou des-
cendência, onde se entroncam muitas famílias das
mais illustradas de Portugal; e igualmente de no-
bre sangue mourisco descendem todos os que tive-
1 L. A. Sedillot, Híst des árabes, liv. vr, cap. ii.
2 Herculano, Hist. de Port,, D. J. Ribera Tarrago, Orig, deljus-
ticia de Aragon, pag. 10.
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71
ram por progenitores os outros filhos da princeza
granadina, esposada pelo commendador-mór de
Aviz*. Náo só a lingiia árabe foi familiar a esses intimidado cn-
monarchas, tal como a D. Pedro I de Aragão, que e^hrLSoir'
em árabe assignava os documentos, e se suppoz que
só sabia escrever n'essa lingua, mas também a cul-
tura árabe deu realce ás suas cortes onde eram
musulmanos, por vezes, os ministros, os médicos, os
thesoureiros, os professores. Em toda a epocha da
reconquista, tão estreitas e intimas eram as relações
dos príncipes christãos com os musulmanos, que
mutuamente se associavam, muitas vezes contra
inimigos da sua própria religião, enviando-lhes tro- r
pas e auxilio de toda a natureza. Ha aventureiros
^ D. Luiz de Lencastre, cotnmendador mór da ordem de Aviz,
•casou no anno de 1540 com D. Magdalena de Granada, dama da
rainha D. Cathaiina, que a estimava muito, a quem os reis casaram
com o commendador mór, fazendo-lbe muitas mercês, segnrando-Ihe
as suas arrhas. Era filba do infante D. João de Granada, governa- .
dor de Galiza, e de D. Brites de Sandoval sua primeira mulher. £ra
o infante D. João de Granada irmão de Mahunad Bandalin, cha-
mado o Chico, ultimo rei de Granada, filho de Muley Abul-Hayen,
rei de Granada; porém D. Joào, da segunda mulher (que tendo sido
christã, EI-Kei seu marido a fez tornar moura) chamada Zoraya, de
quem também foi filho D. Fernando, infante de Granada, que com
seu irmão antes se chamava Cad, e sou irmão Nncre, tomaram os
nomes, o primeiro de £Í-Rci D. Fernando o Catholico, e o segundo
do príncipe D. João seu filho ; e a rainha Zoraya sua mãe reconci-
liando-se á Santa Fé, se chamou D. Isabel de Solir ; e eram des-
cendentes legitimos do primeiro rei de Granada por linha feminina
e por varonia de Arraez de Málaga Farrachem, valeroso, e mui es-
timado, em quem muito antes tinha entrado o sangue real dos reis
de (jrranada; porque Muley Abul-Hayen, pae dos ditos infantes, que
morreu no tempo de El- Rei D. Henrique I V , foi filho de EI-Rei Aben
Ismael, que succedeu no reino no fim do reinado de El-Rei D. João II
de CasteUa».
Do casamento de D. Luiz de Lencastre, com D. Magdalena de
Granada, nasceram os seguintes filhos :
D. Luiz de Lencastre, segundo commendador-mór de Aviz, que
herdou a casa de seu pae.
D. João de Lencastre, commendador de Coruche.
D. Brites de Lencastre, duqueza de Bragança, por ter casado
com o duque D. Theodoro I, de quem foi segunda mulher.
D. Maria de Lencastre, casada com D. João Gonçalves, segundo
conde de Calheta.
D. Anna de Lencastre, commendadeira de Santos. — Hist. Gen,
da Casa Heal, tom. xi, liv. zi, pag. 197 e 203.
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72
de alta nomeada, como Rodrigo de Vivar, cogno-
minado o Cid, figura que passa a representar a
encarnação do ideal da revindicta chrlstâ e neogoda,
mas que fora, durante muito tempo, um bravo cam-
peador ao serviço dos musulmanos de Aragão con-
tra 08 estados christaos dos Pyrinéus. Os arraiacs
christãos enchem-se de desertores musulmanos e
vice-versa; mouras criam os filhos dos christãos; na
rua as duas religiões confundem os seus trajos, ritos,
danças, jogos, costumes ; em frente do minarete de
uma mesquita, de onde a voz do almoédano chama
os crentes á oração, ergue-se a torre da igreja onde
^o repique do sino convoca á missa; os christãos
guardam o domingo, o sabbado os musulmanos ;
às formas exteriores do culto, amplamente per-
mittidas, não se aff^rontam, antes se respeitam mu-
tuamente; os diversos mesteres liberaes são exer-
cidos por todos, consoante as suas aptidões, sem
exclusão nem vexames para ninguém; os bairros
são communs, commum o viver quotidiano, em
todas as suas manifestações.
consequenciM. D'esta conviveucia, que prolonga o estado das
relações durante o dominio mourisco, provém a
imitação, a adopção de inúmeros usos, hábitos,
funcções publicas, e diversos meios de regular e
harmonisar a economia social; e com essas formas
e funcções se adoptam os nomes árabes que lhes
correspondem, e os quaes persistem através' os
tempos, mesmo muitas vezes quando as respectivas
funcções desappareciam ou se modificavam. E assim
que enchem o vocabulário da peninsula nomes de
vestuário, de indumentária, de medidas e pesos, de
ofíicios, de industrias, de cargos públicos, de mi-
licia, etc, etc*.
^ Citaremos alguns nomes, dos quaes alguns correspondem a
funcções ou objectos já em desuso, outros que representam objectos
e funcções modificadas ou diifereutes, e outros que dcsappareceram
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73
Depois de concluída a obra da reconquista ainda
por muito tempo permaneceram em equilíbrio as
boas relações entre mouros e christãos; os reis
tomaram, por solemries capitulações, debaixo da
sua tutela os mouros, estabelecendo-se penalidades
grandes aos que os desrespeitassem e molestassem;
eram aquelles collocados em igualdade de condi-
ções com os christãos. Nas leis das Seté^ Partidas
que vigoravam em toda a península, mesmo divi-
da em vários reinos cUristãos, estava estipulado o
seguinte: cE como quier que los Moros non ten-
gan buena Ley, pêro mientra uiuieren entre los
Christianos dellos, non les deuen tomar, nin robar
lo suyo, por fuerça; e qualquier que contra esto
fiziere, mandamos que lo peche doblado, todo lo
que assi les tomare*f.
O consorcio do espirito chrístão com o árabe a «ne ia mu-
encontra-se até nas obras mais características da
arte mndejar; é assim que, por exemplo, noTripti-
co Relicário procedente do Mosteiro de Pedra de
Aragão, e que estava na academia de historia de
Madrid; nos nimbos e nas túnicas dos anjos se
lêem inscripções em árabe, e árabes são também
alguns disticos e legendas dos frontaes pintados nas
miniaturas que illustram o celebre códice das Can-
do vocabulário em uso com o desappareci mento do que significa-
ram. Assim temos :
No vestuário e roupas : Albornoz, gabão, alamar, almofada, al-
fombra^ alcatifa.
Nos pesos e medidas : Alqueire, adarme^ arroba, salamim,fanga
Nos cargos : Alcaide, mustaçaf, aguaail, alfaqueque, adail, ar-
raes.
Nas moedas : MorábHino,
Nos officios : AlbardeiroSf algibebes, (dfageme, alvestar, afafonei
roa, arraes, alfaiate, alfeireiro.
Nas plantHs e fructos : Alfavaes, alfarroba, alfazema, alfena,
alforva^ algodão, alface, albricoque, cUperce, alcachofra, alcaçuz, al-
cali, alcaparra, alamaque.
* Partida vu, lei i, tit. 25.
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74
tigas do Hei Sahioy do século xm *. O Libro dei
Juego de las iablas, escripto em Sevilha em 1321,
e que se acha no Escurial, é um preciosiswmo re-
positório de pinturas representando os trajos, a
architectura, as armas, os utensílios d'aquelle sé-
culo, e n'elle figuram christãos e árabes, em intimo
convívio, e encontram-se pormenores da civilisa-
çâo e costumes de uns e outros, em encantadoras
illuminuras^.
Vemos já como artistas mudejares foram de pre-
ferencia encarregados da construcção dos templos
christãos. Continuava o espirito de tolerância, de
que os árabes haviam dado um tão grande exem-
plo. Parecia até que permanecia o mesmo estado de
cousas, tendo apenas mudado a religião dominante
do estado.
«Um rei christão, observa um escriptor do vi-
zinho reino, cujos dependentes, no que toca á mi-
lícia, são os alcaides, os almotacés, os adaís, os
almogavares, um rei christão com auctoridades
amovíveis, como as jícstiças, zalmedinas, mostafa-
ses, almoxarifes, etc, em que se differença de um
sultão, a não ser na religião e no nome? E no
nome nem sempre, porque algumas vezes ao rei de
Castella lhe chamaram Emir alcatoliquim^ á simi-
Ihança dos reis almoravidas^».
Modificaçses A pouco B pouco, porém, as cousas foram-se mo-
d^inírt" diíicando; veiu a intransigência religiosa, o despo-
reH^Ma* tismo do vcnccdor, o capricho do mais forte; de
igual ao christão no trato social, passou o mouro
ti ser inferior, e acabou por ser excluído. Foram-lhe
prohibidas as manifestações do culto externo; a
1 Códice de las cantigas dei Ruy sábio, art. de D. José Amador
de Sevrin. Mns. esp. de anfig,, tomo ni.
2 Los libros dei ajedrez, de los dados y de las Ublas^ art. de
D. Florêncio Janer. Mus. esp, de Anteg., tomo iii.
3 D. Julían Ribero Tarrago, Oríg, ddjttsticia de Aragon^ vi.
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75
sua fé foi violentada, primeiramente pela interven-
ção dos sacerdotes christãos que iam ás mesquitas
increpar os que pregavam as doutrinas do Alcorão,
perturbar as suas cerimonias religiosas, estabelecer
a inquietação e a desordem, e por fim destruiudo-
Ihes os templos, e christianisando-os á viva força.
Da tolerante harmonia entre as duas fés, passou-se
á imposição ao mouro, para que se descobrisse e
ajoelhasse na passagem das procissões christãs, as-
sistisse ás cerimonias do culto catholico e guar-
dasse o domingo. Nas feiras, nos mercados, nos di-
vertimentos públicos, onde todos d' antes bailavam,
cantavam, folgavam juntos, ordenou-se a mais abso-
luta differença e separação entre as duas religiões,
que não raças, pois essas estavam bem mescladas ;
pois, se já o mosarabe não era godo ou romano, o
mudejar tão pouco era árabe. Extremaram-se os
trajos, prohibiu-se o estado servil dos christãos na
casa do mouro, mesmo ás amas de leite; castiga-
ram-se as mesclas carnaes, e acabou-se por os pôr
á margem, em bairros separados, as mourarias, nos
arrabaldes dos povoados, como animaes em pateos .
distantes das habitações christãs. Aqui mesmo porém
os não deixaram em paz; ali foi ter com elles a
mesma intransigência religiosa, a perseguição sys-
tematica, o ódio fomentado em nome de uma crença
que aliás assenta na base da igualdade e da justiça.
Houve por vezes tentativas de reacção; elles Tontatiy» de
eram porém os mais iracos ; já estavam muito di-
zimados e divididos; a voz dos seus caudilhos er-
guia-se em vão, supplice e humilde, a impetrar mi-
sericórdia e generosidade. Acabaram por ceder de
todo o terreno á intransigência perseguidora e
cruel, e uns deixaram-se christianisar para evi-
tar os tormentos, outros passaram para a Africa,
onde prolongaram a civilisação andaluza, cujos
vestígios ainda hoje lá se encontram.
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76
infioeiíeu na Um tSo cxtraordinario povo, por tal fórm^a radi-
cado ao solo da península que foi necessário, du-
rante séculos, a acção do ferro e do fogo para os
arrancar de lá, deixando comtudo esse solo tao
profundamente removido, transformado, fecundado
pela sua acção, um povo de tão singulares quali-
dades não podia deixar de ter uma influencia deci-
siva no instrumento com que foram quasi sempre
combatidos, e por vezes auxiliados: a milícia
christã.
E esse o objecto do capitulo que se segue, onde
estudámos a organísaçào militar dos árabes e a
]joderosa influencia que ella teve na organisação mi-
litar medieva na peninsula, muito particularmente
em Portugal.
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CAPITULO II
Organisação militar
«Comtndo, pelo qae se escreve nas Histo-
rias e oom bom jnizo se pôde entender delias,
eu oreo que da Milícia dos Mouros (contra
qnem oato séculos earapeario as armas de
Espanha) recebemos a mayor parte dos insti-
tutos mllirares. . . Esta dontrina, sobre barba-
ra, proveitosa, se estendeu mais especialmente
o uso da eauallaria, em que os Africanos mos-
trio major destreza ; e a nós passou c5 seus
termos, armas e nomes. Inteiramente».
D. FiiAKCisco Makuel. — Spanaphoraê de
Varia HMoria.
ONSTiTUiA a guerra para ò o musnimano
musulmano uma necessi- **«^®"*-
dade, um dever, uma reli-
gião.
Era a guerra o instru-
mento mais poderoso da sua
fé; pela guerra dilatara o
seu domínio pelo mundo in-
teiro, e com elle um novo
credo religioso dimanado,
^ como a fé christa, dos pre-
ceitos fundamentaes da Bi-
blia.
Foi inspirando o espirito de proselytismo, diz
Sedillot, que Mobamede se propoz desenvolver o
génio militar dos árabes «persuadindo-os de que
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Deus lhes dava o mundo em partilha»*; redobrava-
Ihes as forças; uma exaltação religiosa se apo-
derava de todas as almas ; com estas simples pa-
lavras «na vossa frente está o paraíso, atraz o
inferno», os chefes arrastavam os seus soldados
ao meio de uma furiosa refrega; e esse delirio
supersticioso, essa vehemencia de sentimento e de
acção destruia os maiores obstáculos*.
Preceitos roíi- Scguudo O Prophcta, tres cousas garantiam ao
f ^wrl?^'* musulmano o paraiso ; ura bom golpe de espada,
um bom acolhimento feito ao hospede, e a oração
nas horas prescriptas ; e todos os divertimentos de-
viam ser considerados como frivolos «menos o
exercicio do arco, o manejo do cavallo e os praze-
res em familia».*
Nos versiculos do Alcorão e nos preceitos do
Sonnay recolhidos das boccas do propheta e dos
seus companheiros, se encontram os mais salutares
incentivos para o sacrifício da vida, em holocausto
ao dever e á fé^. Aquellas palavras «na vossa
frente está o paraiso, atrás o inferno», queriam di-
zer que era sempre para a frente o caminho da
bemaventurança e da gloria; recuar era caírnades-
honra; morrer combatendo era o supremo triumpho !
O destino tinha as suas leis irrevogáveis e fa-
taes; não havia maneira de lhe fugir; jogar a
vida não era mais do que proporcionar ao des-
tino um meio d'elle se realisar ; e a vida era uma
cousa que se valorisava quando com ella se po-
diam comprar as delicias do alem-tumulo.
Já na terra, para os que combatiam, estava as-
segurado um largo quinhão dos espólios da gueiTa
* L. A. Sedillot, Hist. dea árabes^ liv. iii, cap. n.
2 Na chronica árabe de Zinadim, sobre a conquista da índia pe-
los portaguezes, traduzida pelo sr. David Lopes, está todo um ca-
pitulo dedicado aos yersiculos e tradições referentes ás excellen-
cias da guerra santa. HisL dos portug, no Malabar, P. i. 1898.
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79
(quatro quintas partes). Todo o musulmano era
um soldado ao serviço da fé e da pátria* ; o manejo
das armas um acto de religião que não era bem
cumprido senão dedicando-se a elle absolutamente ;
estando enr armas, ninguém poderia recusar-se a
bater-se, nem mesmo em duello, se pelo chefe lhe
era ordenado; um dos crimes mais odiosos era a
deserção, outro a recusa da contribuição para as
despezas da guerra ; dispensados de combater eram
apenas as creanças, os loucos ou doidos furiosos,
todos os mais tinham de accorrer, até á distancia de
30 léguas, ao ponto ameaçado ou atacado pelos in-
fiéis, abandonando todas as suas occupações parti-
culares e sem necessidade de ordem especial; todos,
livres ou escravos, homens ou mulheres, sãos ou
doentes, estropiados ou fortes, todos eram obrigados
a concorrer, quanto possivel, em commum ou in-
dividualmente, até ao ultimo extremo, a repellir
o inimigo; culpada era a mulher que não pre-
ferisse a morte ao sacrifício da sua honra *.
Esta comprehensão do sacrifício dada á mulher a mniher guer-
árabe enche a historia de exemplos brilhantes.
Yemol-a combater nas batalhas, como em Campo
de Ourique e em Silves, ao lado dos pães, dos fí-
Ihos, dos maridos, com um heroismo notável. São
ellas até as encarregadas de trespassar com os seus
dardos, dando lhes morte prompta, os que tentas-
sem fugir. Assim o fez um troço de amazonas na
batalha de Bosra (633); e na batalha de lermu-
que foram as mulheres que lograram congregar e
levar três vezes ao ataque, até decisiva victoria,
os árabes, que três vezes haviam sido repellidos.
Em Ourique (1139), diz Herculano, fundado na
^ Sâo innumeras as paesagens do Alcorão a este respeito. Vejam-
«e também os manuscriptos cit. por Beynaad. De Vart mH. chez lee
arab* au moyen age. Paris, 1848, pag. 16.
í A. Herc, Hist, de Port,, tit. i, liv. ii.
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80
chronica dos godos, «as mulheres almoravides,
vestindo as armas, vieram pelejar ao lado dos seus
maridos e irmãos em defeza da terra que as tribus
de Lamtuna olhavam como nova pátria, depois da
conquista do Andaluz*». Guardavam através dos
tempos as suas virtudes primitivas, e ainda hoje,
como vem narrado no livro de Adolphe d'Avril,
UArabie contemporaine, essas qualidades persistem
no mais alto grau *•
Preceito! Biiii- Scguudo O Alcorão ((OS fieis que se deixassem
urw do A- g^^^ ^^ ^^^ ^^^ guerra contra os infiéis) sem que
absoluta necessidade a isso os obrigasse, seriam
tratados difierentemente d'aquelles que combatiam
na senda de Deus com sacrifício dos seus bens e
das suas pessoas. Para estes estava guardado um
logar mais elevado».
É um appello a todas as forças de um povo e
de uma raça ; é um recrutameneo geral, impellido
pela fé. Não bastava a ambição dos espólios da
guerra, era mister alguma cousa que fallasse á ima-
ginação, que acendrasse os sentimentos da resis-
tência contra o inimigo. Foi essa força interior que
levou o musulmano á conquista do mundo.
O Alcorão está cheio de incentivos para a guerra
e de preceitos militares :
<(A guerra é como que a chave do céu e do in-
ferno. O que morre n'uma batalha obtém o per-
dão dos seus peccados, e no dia do juizo as suas
feridas apparecem vivas como o camiim, perfu-
madas como o almiscar, e os membros que tiver
perdido serão substituidos por azas de anjos e
cheinibins. Uma gotta de sangue vertida pela causa
de Deus, uma noite passada sobre as armas vale
mais que dois mezes de jejuns e orações. A guerra
* A. Herculano, Hiet dt Port^ tit. i, liy. ii.
^ L*Arabie eontemporainef avec la descrip, dupderinagt de la 3fe-
ejt/e, par Adolpbe d'AyriL Paris, 1868.
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81
aos infiéis tinha de ser feita até todos elles pa-
garem tributo e ficarem subjugados. Morrer com-
batendo na senda de Deus é ganhar a sua indul-
cia e misericórdia, que valem mais que todas as
riquezas.»
Estas palavras constituíam o grande estimulo
para a lucta, onde o menor perígo era a morte!
«OhPropheta! estimulae os crentes ao combate;
vinte homens firmes de entre elles derrubarão du-
zentos; cem porão em fuga dois mil!»
Ao mesmo tempo, quantos preceitos para a boa .
ordem no combate, para a vigilância contra as sur-
prezas do inimigo, para se evitar a deserção e o
abandono do posto de combate: «sempre que fa-
çaes cumprir ás tropas o preceito da oração, pro-
curae que uma parte d'ellas pegue n£is armas e
reze; quando estes tenham concluido as orações,
que se retirem para a retaguarda, e que outra parte
do exercito os substitua. Tomae todas as precau-
ções de segurança, e que se esteja sempre sobre as
armas, porque os infiéis quereriam que abandonás-
seis as armas e as bagagens para cair sobre vós de
improviso. O' crentes I sede cautelosos na guerra, e
avançae, quer por fracções quer em massa! Quando
encontrardes o exercito inimigo marchando em or-
dem, não fujaesl O' crentes, quando tiverdes na
vossa frente uma tropa armada, sede inabaláveis,
e repeti sem cessar o nome do Senhor: assim sereis
abençoados».
Para fazer do musulmano um soldado soflfredor, virtude, miu-
moderado nos seus hábitos e instinctos, o Pro- *""'
pheta prescreveu a sobriedade na comida, a absti-
nência no vinho, a prohibição dos jogos de azar e
da ociosidade, o uso da oração, a pratica do bem,
o estudo e meditação dos livros sagrados; sobre
esta base de disciplina social, não se converteram
em perigos, antes se tornaram forças impulsivas,
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82
poderosas, os estímulos á guerra e á destruição do
inimigo !
Os filhos eram educados na idéa de serem o
valor e a destreza as condições essenciaes n'um
povo, que devia á lucta de cada dia os seus pro-
gressos.
Bem Máam, filho de Zaida (790) tinha maior
predilecção pelo seu sobrinho lacide, do que pelos
seus três filhos, Caças, Zaida e Abdallah. Como
sua naulher se lamentasse muito d'essa desigual-
dade, Bem Máam respondeu uma manhã :
— Pois bem, vaes ter já uma prova das rasões
em que baseio a minha preferencia.
E voltando-se para o pagem :
— Vae chamar os meus filhos.
D'ahi a pouco entravam os três filhos, vestidos
de perfumadas zangaias e sapatos de sindia, porque
em danças e prazeres haviam passado a noite.
Cumprimentaram e sentaram- se.
— Agora, pagem, vae chamar meu sobrinho.
Não tardou que lacide se apresentasse trazendo
vestida a sua armadura; entrou, deixando á porta
da sala a sua lança.
— Para que vens n'este apparato ? lhe pergun-
tou o tio.
— Emir, respondeu lacide, como um mensa-
geiro me fosse chamar da vossa parte, cuidei que
de alguma cousa importante se tratava.
Tão frisante contraste entre a viril galhai-dia do
sobrinho e a molle e perfumada inutilidade dos fi-
lhos, calou no espirito da mãe *.
proceiíoa huma- Ao par da paixão pela guerra cultivava-se no
espirito de todo o musulmano a generosidade e a
magnanimidade para o vencido, para o fraco, para
o inerme, poupando as mulheres, as creanças, os
^ R. ContreraS; Rez. de la dom, de los árabes en Esp., pag. 9é.
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83
velhos, 08 sacerdotes, de qualquer religião que elles
fossem; estabelecia- se, como nas relações com o
adversário, a lealdade nos contratos e o respeito á
palavra dada. Nao só o Alcorão, que era um có-
digo a um tempo religioso, civil, criminal, militar,
mas os commentadores á sua doutrina tinham tido
necessidade de explicar e^accentuar o ideal de tole-
rância e justiça que as palavras inspiradas do
Propheta haviam proclamado. Essa necessidade
tomava-se tanto maior, quanto eram de origens
diversas, de sentimentos violentos e de instinctos
primitivos as tribus, os povos que vinham, de todos
os lados, engrossar os exércitos muslimicos.
Ao investir lezide no commando do exercito que Leu da guem.
ia conquistar a Syria, dizia Abu Becre, immediato
successor de Mohamede, na sua allocução ás tro-
pas: .
tf Não abuseis da victoria ; não mancheis as vos-
sas espadas no sangue dos vencidos, nem no das
creanças, mulheres ou velhos. Quando vos achar-
des em território inimigo, não corteis as suas arvo-
res, nem destruaes as suas palmeiras ou os seus
finictos; não saqueies os seus campos nem as suas
casas. Tomae dos seus bens e do seu gado aquillo
de que tenhaes falta ; mas não destruaes cousa al-
guma sem necessidade. Occupae as cidades e for-
talezas e derribae as que possam servir de refugio
ao inimigo. Tratae com compaixão os que se ren-
dam e se humilhem, e Deus vos tratará com mise-
ricórdia. Opprimi os rebeldes e os soberbos, e os
que faltam aos tratados. Nos vossos convénios com
o inimigo, não haja dolo ou ambiguidade. Sede
fieis e leaes com todo o mundo, mantendo sempre
a vossa fé e as vossas promessas. Não perturbeis o
repouso dos monges e dos solitários, nem destruaes
as suas moradas; mas feri de morte o inimigo que
vos resistir.»
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84
Tinham, pois, os árabes, por norma e ideal, mui-
tos dos princípios que o direito internacional só
conseguiu fixar em adiantados quartéis d'este sé-
culo. Sao elles a explicação melhor da tolerância
com que a politica dos árabes tornou facilmente
acceitavel o seu dominio, e assimilável a sua civi-
lisação. É o mozarabe peninsular o producto doesse
systema de administração, baseado o principio da
justiça. Abusos houve-os, como em todos os po-
vos e em todos os credos ; nenhum principio reli-
gioso foi mais longe que o christianismo no ideal
da caridade, e nenhum povo como o christão abu-
sou mais da força e empregou maior crueza na
conquista de outros povos e na christianisaçao a
ferro e a fogo.
A litteratara e Na litteratura eram os assumptos da guerra os
predilectos ; poeta e guerreiro eram qualidades que
frequentes vezes se ligavam ; a poesia que unificara
08 povos árabes, n'uma grande communhSo espiri-
tual, continuou sendo o estimulo e o premio d'es-
ses conquistadores do mundo.
Ocailida, que Já citámos, escrevia nas muralhas
das fortalezas os seus versos, infiammados de ardor
guerreiro ; o seu cavallo impaciente, que tudo ven-
cia na sua carreira vei*tiginosa, a sua espada que
despedia ondulantes relâmpagos, a sua dura lança
que parecia aguçada pela morte, eram os dons com
que adquiria riquezas, para as poder prodigalisar
á vontade *.
Até na poesia lyrica as imagens eram buscadas
nas alfaias guerreiras :
«Do coração do arco, escrevia Abú-Alaquim,
parte a flecha, que é sua filha ; o arco geme, tal
como chora a mãe ao separar-se do filho*.»
a gnerra.
* Contreraa, Op. cit. pag. 131.
^ Contreraa, Op. cit., pag. 98.
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85
Ainda hoje um escriptor, que observou os ára-
bes no seu próprio paiz de origem, diz que «a re-
ligião, a guerra, a caça, o amor e os cavallos, são
entre elles assumptos inexgotaveis das conversa-
ções ao ar livre, e representam verdadeiras escolas
onde se formam os guerreiros e onde se desenvolve
a sua intelligencia, colhendo uma multidão de fa-
ctos, de preceitos, de provérbios e de sentenças, a
que frequentes vezes encontrarão applicação no de-
curso de uma vida cheia de perigos*». Persistentes
qualidades de raça !
Desde o combate de Bedre (624), logo nos ini-mioioigtterrei-
cios da sua propaganda militante, Mohamede dera
aos seus proselytos uma organisação militar ; elle
próprio era um guerreiro de raça, e comprehen-
dera que o instincto da gueiTa era qualidade fun-
damental nos árabes.
De trezentos e quatorze homens, dos quaes ape-
nas três de cavallo, com que se aventurara n'esse
combate, passava no fim de seis annos (630) a
apresentar em frente de Meca dez mil homens, e
no assedio de Tabuque, n'esse mesmo anno, vinte
mil. Com a rendição d'esta ultima cidade submet-
tia a Arábia inteira.
Tudo nos leva a acreditar que essas primeiras primeira» lo-
luctas dos árabes entre si, para a unificação da
raça e para um commum objectivo religioso e poli-
tico, não passassem de sangrentos prélios, pelos mais
simples e primitivos processos de guerra: luctas
corpo a corpo, mesnadas de homeYis a pé, a esmo,
mal armados de sabres, dardos, piques, lanças,
1 Le general Daumas, Le8 chevaux du Scíhara, pag. 37.
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86
clavas; troços de cavallos e camellos, entrecho-
cando-se, em ordem unida, ou envolvendo-se em
escaramuças, em phantasias, em que o natural
animo guerreiro, o enthusiasmo pela victoria, a
absoluta indifferença pela morte, a frugalidade, a
resistência tenaz e soffredora, davam aos árabes,
como ainda hoje, os créditos de serem dos melho-
res soldados do mundo. Essas qualidades pessoaes,
todavia, que podiam supprir a falta de conhecimen-
tos tácticos e de instrumentos polyorceticos, em-
quanto as luctas foram entre tribus ou povos des-
tituidos também dos conhecimentos da arte militar,
não lhes bastaram quando tiveram de defrontar-se
com povos que haviam herdado essa arte da Pérsia
e das duas civilisações clássicas da Europa. Foi o
que succedeu na Syria, nos primeiros descalabros
soíFridos (633), e que oa levaram a aperfeiçoar-se
na sciencia de combater. N'isto se pareciam com
os romanos, pois de cada desastre tiravam uma li-
ção profícua, no sentido da melhoria das suas insti-
tuições.
Rapidoí progreB. No iuvestimcnto dc Damasco, n'esse mesmo
anno de 633, e na batalha dada ao exercito de He-
raclio, três vezes mais numeroso, que vinha em au-
xilio da cidade, os árabes mostraram-se, não só
mais temerários, mais aguerridos e com uma
gi^ande superioridade no chefe que os comman-
dava, mas já conhecedores da táctica dos adversá-
rios, e munidos de poderosos engenhos de guerra.
Generaes illustres, convertidos expontaneamente
ao islamismo, vinham pôr-se á frente das ardidas
hostes, que desfraldavam ao vento das batalhas o
estandarte verde do Propheta. Os árabes, em con-
tacto com os romanos e bysantinos, e familiares
da sabedoria oriental pelo conducto dos persas e
dos egypcios, soffriam na sciencia da guerra as
mesmas influencias que deram, como vimos, um
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87
cunho tão original á sua litteratura, á sua arte, a
todos os ramos, emfim, da sua actividade intelle-
ctual.
Nas successivas conquistas, — depois de sujeita Enorme activi-
toda a Arábia — , daSyria, da Palestina, daMeso- ríf®*^"""*'
potomia, do Egypto, da Arménia, e mais tarde de
Constantinopla, como ameaça á Europa central,
da Pérsia, como base de operações para o extremo
oriente, e da Africa, até ao Magrebe, como ponto
de apoio para um salto sobre a peninsula ibérica,
n'uma serie de assédios, de gazivas, de algaradas,
de batalhas campaes, de cidades e fortalezas to-
madas pelo ardil ou pelo esforço das armas, que
enorme somma de actividade e de sabedoria mili-
tar, adquirida e applicada !
Era o povo árabe, guerreiro por excellencia, o
que vinha substituir o povo romano nas suas ma-
ravilhosas enterpresas militares, na vassallagem do
mundo !
Eram já eximios na arte de atacar e derruir progressos
j • j» j A / • 1 crescentes.
impenos, quando, invadmdo a Africa, no alvorecer
do século VIII, conseguiram plantar as suas tendas
de guerra sobre as praias do Mediterrâneo, frontei-
ras ás apetecidas ribas da Hespanha, de onde as
auras traziam os echos das surdas dissenções entre
os visigodos.
Essas dissenções franqueavam as portas da pe-
ninsula ás naturaes ambições dos árabes, attrahi-
dos pela noticia das suas riquezas mineiras e da
fertilidade do seu solo.
A investida venturosa de Tárique, um berbere, invasRo da Pe-
com um exercito composto, na maior parte, de gente
da sua raça, que sob o dominio árabe seguia os
seus processos de guerra ; em seguida, com a che-
gada dos reforços com que Musa vinha colher as
palmas das victorias tão brilhantemente iniciadas,
a invasão do território peninsular, por três linhas,
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Reconquiit*.
88
e com objectivos habilmente escolhidos, provam
conhecimentos estratégicos, que se auxiliaram das
condições a que a politica dos visigodos havia
reduzido as populações, umas indiflferentes, outras
favoráveis ao novo dominio, e põem em evidencia
uma organisação militar solida.
No período d» Na lucta cruenta com os christãos, durante o
bellicoso periodo da Reconquista, o árabe continua
a mostrar as mesmas qualidades de bravura e os
mesmos conhecimentos da guerra. Não pôde ser
n'e8te particular suspeito o parecer de um homem
illustre, que entre o século xni e xiv floresceu pe-
las armas e pelas letras, e que os conheceu de
perto, porque com elles batalhou. D. Juan Manuel,
filho de São Fernando e de D. Beatriz, de Saboya,
diz d'elles no Livro dos Estados :
«Et en verdad os digo, sefior infante, que tan
buenos homes de armas son, et tanto saben de
guerra, et tan bien lo facen, que si non porque de-
ben hacer et han á Dios contra si, et porque no
andan armados et encabalgados en guisa que pue-
den sofrir feridas como caballeros, que yo diria que
en el mundo non ha tan buenos homes de armas,
nin tan sabidores de guerra, nin tan aparejados
para tantas conquistas ...»
Mas como era essa organisação ?
Seria diíficil, senão impossivel, determinar bem
os diversos estádios, porque a arte da guerra foi
entre elles passando desde a invasão ; mas basta-
nos estudar, nos seus traços geraes, a organisação
militar daquelle povo ou povos, que durante sete
séculos exerceram dominio no território que é hoje
portuguez, deixando por tal forma impressa a sua
influencia na organisação militar do nosso paiz,
que a sua doutrina, como bem observa D. Fran-
cisco Manuel, a nós passou «com seus termos, ar-
mas e nomes».
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89
Os cuidados que a arte militar mereceu aos ara- Bibuographia
bes e o grau de adiantamento a que entre elles Trllb". xti'
chegou, attestam-no os numerosos tratados de mfiSur *'^
gueiTa que ainda existem ou dos quaes nos ficou
noticia, depois da barbara destruição de tantas bi-
bliothecas d'esse povo, essencialmente culto e de-
votado ás letras.
Casiri dá-nos na sua Bibliotheca arabico-hispano
escurialensis noticia dos seguintes tratados milita-
res contidos no códice 1647 do Escurial, e de cu-
jos títulos árabes, que publica em notas *, devemos
a traducção á amabilidade do nosso amigo e distincto
arabista o sr. David Lopes :
Preserúe (feito) às alvias, 6 conforto dos hahitan- o. traudo» mi-
tes do Andaluz ^, por Aly Bemabderramão Bema- "«uí. ^"^ ^"
zil, natural de Granada.
' Casiri indica estes tratados pela seguinte forma :
Aidmorum Múnus et Tessera Hispana^ auctore Ali Ben Abdalra-
man Ben Hazil, Granadenci, qui librum Abilhagigeo Ismaeli Ben
Nassero, Regi Granato anno egiro 763 dedicavit.
Tractatas Dt Belli prestancia et virlute, auctore Ben Jonasso,
cordttbensi.
Opus De Animi in probis constantia, qúaHispani coe terás inter
nationes procellunt, olim editum a Ben Mondero Valentino.
Opus De Belli Begimine, auctore Bem Hazemo Hispano.
Tractatus De Arte Equestri, quem in lucem edidit Aldhamiathi,
patri cordubensis.
Liber De Animi fortUuâini, auctore Homaideo, Hispano.
Liber De certamine hac de instruenda acie.
Liber De Equilis Begimine,
Liber De Equis et Armis,
Liber De PreHdiorum Limitaneorum Prffecto. — Biblioth. Arab,
Hisp. Escurial Vol. ix, pag. 29.
Por informações de Casiri, estas mesmas obras vem menciona-
das na Bibliotheca Militar Espanola, de D. Vicente Garcia de la
Huerta
2 D. Serafin Estebanez Calderon, na sua Historia de la infanteria
espahola, cujos uns trechos apenas foram publicados na Bevista
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mazil.
90
Livro acerca da Excéllencia da guerra santa, por
Benionas, de Córdova.
Livro acerca Do Ribat * e a sua excéllencia para
a guerra^ especialmente na península de Andaluz,
por Benalmóndir *, de Valência.
Livro do Governo da Guerra, por Bem Házem,
de Andaluz.
Livro acerca Da cavallaria, por Adametí Alcor-
tobi.
Livro Da Bravura, por Homeidí, de Andaluz.
Livro sobre Formações de tropas para a guerra
santa ^.
Livro Do Adestramento do campeão cavalleiro.
Livro Da Cavallaria e das armas.
Livro sobre as AttHhuiqdes dos valis das fron-
teiras.
o tratado de Be- Como SC vê, são ua Diaior parte obras de escri-
ptores militares da península, e sendo o primeiro,
como informa Casiri, do século viii, provam a an-
tiga e persistente attenção dada ás cousas da
guerra.
Estebanez Calderon, que do primeiro doestes có-
dices se aproveitou para as informações que nos
lega sobre a organisação militar dos árabes, diz
que essa obra se divide em dois tratados, de vinte
capitules cada um, o primeiro dos quaes trata da
guerra santa, dos rábatas, algaras e outras incur-
militar, de Madrid, traduziu : Begalo de las almas y damidt de lo$
habitantes dei Andaluz, Este mesmo escriptor informa o seguinte :
«Nâo temos noticia de que se encontre em Hespanha outio
exemplar doesta obra curiosa e importante; mas lord Munster teve
informação d'ella e a cita no Catalogo dos livros que lithogi*apliou
para derramar pelos paizes do Oriente em busca de todos os livros
militares que podesse encontrar com o fim de escrever a historia
militar dos árabes, das suas armas c modo de combater». Btvista
militar f de Madrid. 1850. — O catalogo referido possuia a biblio-
theca da nossa academia real das sciencias».
1 Vide adiante a significação de rihal.
2 Houve outro Benalmóndir, de Silves.
3 Este livro e os seguintes sâo anonymos no texto de CRsiri.
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91
soes nas terras do inimigo ; e o segundo se occnpa
de cavallos e armas. Os vinte capítulos do primeiro
tratado tem os seguintes títulos:
I. — Do quanto a Dtiis é agraciarei a guerra santa,
quanto elle se compraz com os guerreiros e
glorifica os que morrem combatendo,
II. — Das expedições ein paiz inimigo; das excel-
lencias d' tilas e de quanto eram frequentes
nas terras de Andaluz.
III. — Dos estatutos da guerra, santa e dictames dos
sahios a respeito dUlla.
IV. — Do que deve o guerreiro fazer para ir á
guerra santa.
V. — Dos que acompanham e auxiliam o guerreiro
e dos aprestos que este tem de fazer.
VI. — Do que o principe ou emir necessita de fazer
em caminho da expedição.
VII. — Da obediência que deve prestar o soldado ao
império do seu Inmm, ao emir do seu exer-
cito e ao Kaid do seu corpo.
VIII. — Da jurisdicção dos valis ou adiantados das
fronteiras, e descripçao das cavalgadas no
verão.
IX. — De vários avisos e instrucçoes dadas aos emi-
res dos exércitos.
X. — Da instigação oti predica para a guerra santa.
XI. — Do que se pode fazer no acto da expedição e
do que não é licito fazer nella.
XII. — Do que se deve executar antes de se entrar em
combate.
XIII. — Da peleja, do modo de entrar nella, e de vá-
rios ditos notáveis acerca da retirada e da
deiTota.
XIV. — Da constância contra o inimigo e da firmeza
no combate.
XV. — Das escaramuças.
XVI. — Da bizarria e galhardia mostrada na guerra.
XVII. — Da descripçao da peleja, sua boa direcção, e
ardis nella empregados.
XVIII. — Da cavallaria e do esquadrão.
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92
XIX. — Commemoração dos mais famosos ginetes.
XX. — Das cousas cuja ohseiTancia liberta do perigo
e chama a victoria para o lado de quem as
pi^afica *.
Basta a indicação d'estes títulos para se ver
quaes os assumptos a que se votava mais particu-
lar attenção. Está ali um verdadeiro tratado de
guerra.
Outro traudo Outro codice do Escurial é também indicado por
importante. Qj^gJj.J^ ç^jjj ^ j^ o g^^Q^ ^^^ ^^^^ j^g^ j.^^ título ; eil-
contramos, porém, uma noticia circumstanciada
d'elle no trabalho de Estebanez Calderon, que de-
certo o leu e o estudou.
O desconhecimento do titulo e do auctor provém
da falta das primeiras folhas do codice ; pelo texto
se vê, porém, que se trata muito especialmente da
arte da cavallaria, das armas que então se usavam,
e da maneira de as manejar ; é propriamente um
tratado de equitação e de esgrima a cavallo.
O assumpto dos dois priucipaes capitulos é a
arte de domar os cavallos; o terceiro trata da
arte de cavalgar com firmeza e garbo, e de ajaezar
o cavallo, contendo informações curiosas sobre di-
versas espécies de freios, sellas, estribos e outros
jaezes, e sobre os andamentos e movimentos dos
cavallos. O capitulo quarto occupa-se da esgrima
de lança, a uma e a duas mãos, assumpto que ainda
se desenvolve n'outro capitulo.
KouciadeE. ' «Os capitulos seguiutcs, diz E. Calderon, tratam
de varias maneiras de pôr a lança em riste, as
quaes o auctor enumera e distingue em classes di-
^ Estebanez Calderon. Fragmento da Historia de la infaníeria
eêpahola. Na Bevista Militar, de Madrid, tom. viii.
D. José Almirante informa no seu Diccionorio Militar, pag. 1037,
2ue esse capitalo foi pablicado em folheto em 1851, com o titulo
H la mUida de los arwts en Espafía,
Calderon.
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93
versas : o enriste coraçanita^ antigo, com mudança de
rédea; o enriste tagaHno ou fronteiriço; o calaita;
o rumi *.
«Se um artigo trata do ataque o outro occupa-se
da defeca. Reduz-se a apresentar varias maneiras
de se defender com a lança a cavallo, conforme o
modo de empunhar e sobraçar a haste. O auctor
continua explicando as diversas formas de pôr a
lança em riste e as diversas guardas, cujos nomes
deixámos indicados, e cujas differenças se cifram,
principalmente, no modo de ter a lança n'uma mão,
sujeitando as rédeas com a outra, trocando-as, con-
forme a necessidade o requeresse ou o aconse-
lhasse a destreza, movimentos todos que, se muito
difficeis eram de entender, mesmo com as expli-
cações oraes de um dextro instructor, quasi impos-
siveis se tornam de conhecer com a corrupção do
texto.»
«O manejo da lança, explicado com muitos por-
menores, e indicando o grande numero de sortes
que se podem fazer com ella, dá assumpto para
dois capítulos, que têem por titulos : Da aprendiza-
gem da lança e Modo de sa(r contra o inimigo.
«O choque de frente, o assalto tagarino ou fron-
teiriço, e 08 preceitos que se devem seguir para
accommetter o inimigo, dão assumpto para três
capítulos diversos. O primeiro ensina a maneira
de resistir áquelle assalto ou ataque; o segundo
mostra os diversos modos de pegar na lança para
executar o assalto que descreve; e no terceiro en-
tretem-se o auctor em referir vários assaltos e en-
ristes, por processos diflBceís e raros, cuja diversi-
dade e contraste consistem na posição que se dá á
lança, na maior ou menor distancia em que é se-
1 De Coração.
2 ChriBtâo.
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94
gura, no ferro, no conto, finalmente na dextresa
com que a deviam correr ou recolher. Existem, fi-
nalmente, do ultimo capitulo dois paragraphos que
tratam das vaiias espécies de lanças conhecidas e
das suas propriedades mais notáveis. Continua de-
pois o auctor consagrando ao manejo da espada
outi'0 capitulo, decerto o mais obscuro de todos,
porque raras palavras ha n'elle que se encontrem
nos diccionarios árabes. As diflerentes espécies de
espadas que menciona, com os nomes de iamam^,
calaita, indica, serendiP, selmanita, damasquina,
egypcia, % franca ou europêa, concordam na maior
parte com as denominações que Hozail aponta no
seu Tratado militar. Isto prova que essas espé-
cies de espadas eram conhecidas tanto na Hespa-
nha como no Oriente. Alem d^isso, é muito para
notar que. entre estas espadas haja uma com o
nome de ai beida (ou branca), de onde parece, sem
duvida, ter vindo o chamar-se entre nós arma
branca a todas as de aço. Este tratado termina com
dois capitules que tratam das flechas, arcos e bes-
tas, e do modo de manejar essas armas.»
o valor do lan- Esta simplcs iudicação do conteúdo da obra nos
ceiro entre os :]i*ir i* «mi
árabes. suggcrc um mundo de idéas, e exphca a rasao da
principal força dos árabes, e seu característico na
guerra: — o cavalleiro, armado de lança e espada.
Que minuciosa attenção na educação, no adestra-
mento, no ajaezamento do cavallo, a arma por ex-
cellencia do árabe ! Que riqueza de géneros de lan-
ças, variadas na forma, adoptadas dos povos com
que se teve lucta! e que pericia no manejo d'es8a
arma, tão temerosa e tão efiicaz, tanto nas batalhas
em regra, alcançando de longe e de perto o ini-
migo, como nas cavalgadas de suipreza!
1 Do lamen?
2 DeCeylâo?
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95
Nos exercicios militares, do mesmo modo que
nas academias ou escolas, o manejo da lança era
ensinado com todo o rigor, por meio de vozes, como
as seguintes que constam do manuscripto estudado
por Perez de Castro: — «enrolar bandeirola; des-
atar cordão; passar da posição á retaguarda para
a vertical ; da vertical, para o hombro ; do hombro,
para o arção ; molinete na frente ; molinete dos la-
dos; estocada em frente; estocada aos lados; esto-
cada e parar».
Os jogos de dextresa com a lança consistiam em
coUocar no chão, ou presas a uma estaca, moedas,
folhas, anneis, pedaços de panno, e levantal-os,
na caireira, com a ponta da lança *• Tiraram d'ahi
origem o jogo da argola e outros, que se continua-
ram enti'e nós nos passatempos medievos.
Ainda hoje é a lança uma arma terrível nas mãos
do árabe, que conserva o segredo da sua esgrima
perigosa e difficil ; na Europa tem a lança um po-
der extraordinário nas mãos dos ulhanos, por exem-
plo, e ha ainda hoje quem, apesar do admirável
incremento das armas de fogo, preconise o seu em-
prego na cavallaria. O general Brack dizia que não
havia golpe de maior effeito do que uma parada
de roda, com a lança; fere, desnorteia, desequili-
bra, derruba.
O árabe, lanceiro, fez a conquista do mundo!
De outros tratados temos noticia pelo notável
escriptor francez Reinaud, no seu estudo De Vart
viilitaire ckez les árabes au moyen âge (1848).
O mais antigo de entre elles vem citado no Qui-o tratado do
tah aljirist (catalogo de livros), escripto na segunda ^^^ "**"•"
metade do século x ; é o seguinte : A arte da guerra
e maneira de tomar oã fortalezas e as cidades, de
armar emboscadas, de mandar á descoberta, de col-
* Perez de Casti o, Estúdios Militares, pag. 63.
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96
locar atalayas, de expedir destacamentos e de dispor
corpos de tropa^ segundo um tratado que foi com-
posto (no século m) por Ardexir Bem Babeque.
odeBArámo&r. Alem d'estes, o Quitab indica um tratado de ati-
rar ao arco, composto no século v pelo rei Barára
Gúr, e uma exposição das antigas instituições mi-
litares da Pérsia, com o titulo : Arte militar e re-
gulamcTitos da cavallaria, com a maneira por que os
reis da Pérsia defendiam oã quatro fronteiras do seu
império.
o de Bem^i. Estcs tratados eram ou a traducção, ou o reflexo,
dos livros persas do tempo dos Sassanida^ ; indica
o mesmo referido catalogo, porém, outros de ori-
gem e elaboração propriamente árabe, taes como :
Leis da guerra e maneira de ordenar um exercito,
por Abdaljábar Bemadi ; um tratado em dois tomos
do tempo do califa Almamum, por Calibe ; um ou-
tro sobre o fogo, a naphta e o emprego que d'ella
se fazia na guerra; e um outro, finalmente, onde
se trata do aríete, das maganellas, e dos estratage-
mas e ardis da guerra.
Reinaud teve occasião de examinar mais os se-
guintes códices:
DOI0 eodieei de Na bibUotheca de Leyden, dois exemplares de
Layden. ^^^ mcsuia obra, um com o n.*^ 96, outro com o
n,** 499, tendo este a abril-o as seguintes palavras:
Tratado dos ardis de guerra, da tomada das forta-
lezas, da defeza dos desfiladeiros, segundo os precei-
tos estabelecidos por Alexandre, o Bicorne, filho de
Philippe da Greda, No verso da prímeira folha do
códice n.*^ 92, diz-se: Tratado dos ardis e das guer-
ras, dos instrumentos militares, do assedio das forta-
lezas, da maneira deferir com a espada e de lançar
dardos, bem assim de fabricar o barude *. Apesar
d'esta ampliaçak) do titulo, porém, confirma Reinaud
^ Pólvora, ou substancias incendiarias.
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97
que de tal barude ou pólvora se não trata em ne-
nhum dos dois códices. No fim do ultimo códice
vem a seguinte indicação, que leva a fixar no sé-
culo xm dá nossa era a feitura do referido tratado
de guerra: «A obra original foi acabada no começo
do rejebe do a.nno 622 (julho de 1225 de J. C).
Eis o que vi escripto no exemplar de onde fiz esta
copia e de onde a tirei».
D'este curioso códice obteve noticia mais circum-NouciadeDoxy.
stanciada, mandada de Leyden pelo arabista Dozy,
o já citado escriptor hespanhol D. Serafin Esteba-
nez Calderon, que falleceu em 1867, deixando in-
édita a sua Historia de la infanteria espanola, da
qual apenas se publicaram, ha meio século, uns
trechos na Revista militar de Madrid, e que me
consta estar em manuscripto na bibliotheca do mal-
logrado estadista Canovas dei Oastillo *. Nos tre-
chos publicados está a parte que se refere aos ára-
bes.
Segundo as informações de Dozy, que era então
professor em Leyden, uma das referidas copias, a
menos incompleta, tem apenas vinte e nove capi-
tules, dos quarenta de que a obra se compunha;
mas existem os desenhos de machinas de guerra,
que illnstram o texto. Para se avaliar do interesse
6 importância d'este códice bastante é citar os titu-
les dos capitules:
I. — Das espadas e armas, e das suas diversas
espécies,
II. — Doà rodellas, sua^ diversas espécies , com
a maneira de se servir d'ellas.
m. — Dos arcos j e meihodo de os manejar,
IV. — Do disparo de jlechas contra fortalezas.
1 Quando estive em Madrid em 1893, procurei conhecer o manu-
scripto ; mas Canovas dei Castillo não estava, infelizmente, n*eB8a
occasiSo na capital.
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98
V. — De como se disparam de noite estas ar-
mas.
VI. — D(zs diversas espécies de naphta e outras
misturas incendiarias.
VII. — Das fogueiras que se accendem em volta
dos exércitos.
VIII. — De certos ardis que se dispõem com rou-
pagens, e se levantam á maneira de es-
trados.
IX. — Das expedirdes nocturnas.
X. — Da maneira de demolir as cidades.
XI. — Das minas e trincheiras.
XII. — Do modo de subjugar as cidades.
XIII. — Da primeira noite que se passa na for-
matura Ou debaixo de armas.
XIV. — De quanto convém que se conheça a dis-
tincção entre os dois géneros de ai^nas.
XV.
XVI. — Da constância e da firmeza.
XVII. — Dos números do esquadrão no estandarte.
XVIII. — Dos atabales e insignias de guerra.
XIX. — Das derrotas, e do refugio que se ha de
buscar em Deus.
XX. — Do modo de combater entre os turcos.
XXI. — Idem entre os judeus.
XXTI. — Idem dos gregos do baixo império.
XXIII. — Idem dos abyssinios e nubios.
XXIV. — Idem dos árabes.
XXV. — Das causas que motivam a tomada das
cidades.
XXVI. — De como se hão de guardar as muralhns.
XXVII. — Dos apparelhoH úteis para entrar nas ci-
dades e do rendar das atalaias.
XXVIII. — Do modo de occuUar a situação de uma ci-
dade.
XXIX. — Do modo de se precaver contra as minas
e as escaladas.
XXX. — De certas figuras talismanicas , mortíferas
para o inimigo.
XXXI. — Do modo de as executar de prompto,
XXXII. — Do modo de as executar a cavallo.
XXXIII. — Do modo de lançar fogo nos fossos.
XXXIV. — Do modo de dirigir para a frente (enris-
tar) os piques.
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99
XXXV. — De certas rodas que giram por si mesmas
e são de quatorze espécies,
XXXVI.
XXXVII. — Da construcção de apparelhos ou machi-
nas ígneas.
XXXVni. — Do fabrico de espelhos ustorios ou incen-
diários.
XXXIX. — Da construcção de certos botes (cujo uso
não é fácil de se comprehender pela
corrupção do titulo doeste capitulo).
Para se fazer acreditar na grande antiguidade
d'esta obra, que tem aliás todo o caracter e feitio
árabe, diz-se no prologo que foi encontrado «nos
subterrâneos do palácio de Alexandria».
Na bibliotheca nacional de Paris viu Reinaud
outros códices, de data mais recente, onde já appa-
rece o uso do salitre; do principal d'elles se ser-
viu para o seu estudo, feito de collaboração com
Favé, sobre o fogo grecisco, fogos de guerra e ori-
gens da pólvora *.
Tem esse códice por titulo: Tratado da arte mili- Tratado de k».
tar e viachinas de guerra^ e diz no começo que foi ^*°**
composto pelo illustre ostade (mestre) Maçam,
a quem chamaram também Nedimadina (estrella da
religião), e Arramao (o lanceiro) ; é o resumo das
lições de seu pae, de seus avós e de outros mestres
da arte. Suppõe-se que este trabalho foi escripto
entre 1285 e 1295 da nossa era, tendo o auctor
fallecido no anno 1295 (695 da hégira). No pre-
facio leem-se as seguintes palavras: lEste livro
contém tudo que é necessário aos mestres, aos ho-
mens de guerra, aos bravos, e aos homens dos ar-
tifícios, tudo quanto é preciso para as cousas da
guerra, e também para o manejo da lança, da
* Reinaud et Favé. Du feu gregeois, des ftux de gutrre, et de la
origine de la poudre à cânon, Paris, 1845.
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100
clava e da flecha, confecção dos mixtoS; construc
ção das manganellas, e lançamento do fogo, etc.,
combates no mar, e outras cousas peregrinas. Queira
Deus que tudo isto seja em proveito dos musul-
manos».
O códice, que é bem escripto, e acompanhado de
desenhos coloridos, que Reinaud e Favé aproveita-
ram para illustrar o seu trabalho, parece ter sido
destinado oí&cialmente ao uso dos especialistas ^
ontoojr»t»do d^ Outro tratado da mesma bibliotheca, obra de um
parii. profissional que declara não querer fazer mono-
pólio dos seus conhecimentos e segredos, tem por
titulo : Compendio desthiado ás pessoas que cultivain
os dijfferentes ramos da arte militar, e que se exer-
citam no manejo da lança, bem como nas manobrai
de que esse exercido é susceptiveU. Tanto o auctor
d'este tratado como o do anterior citam como au-
ctoridade na matéria os escriptores Mohamede, filho
de Alxedami, e Ibraim, filho de Sallame, citando o
ultimo ainda outro escriptor, o ostade Naceradim
Benatterabelluci, cognominado Arramão (o lancei-
ro), que deve ser o já acima mencionado. Aquelle
tratado está juntamente com outro, no mesmo có-
dice, mas sem titulo nem indicação da data em que
foi escripto, parecendo, todavia, posterior a 1300,
por n'elle se mencionar um modo de combater a
cavallo intitulado • evolução de Gazam», que, na
opinião de Reinaud, deve ser o Cam Mogol da Pér-
sia desse nome, fallecido em 1304.
^ «Ce yolume est execute evec beaucoup de soin et est accompagné
de figures coloriées ; c'e8t de la que nous avons tire plusieurs dea
dessins qu'ou trouvera à la suite de cet ouvrage. On volt probable-
ment ici un de ces exemplaires que ie gouvemement faisait ezécu-
ter pour Tusage de ses artifíciers ; si ud grand nombre de termes
techniques sont prives de points diatriques, c*était probablement afín
d'en rendre rintclligence presque impossible à toute antre personne
que les agents officiels». Keinaud et Favé. Du Feu GrtgtoU, etc.
Paris, 1845.
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101
Um outro códice d'essa mesma bibliotheca é
constituído por extractos do livro de Maçam, já ci-
tado, mas traz conjuntamente um outro tratado com
o titulo : O que se propõe de mais levantado na theo-
ria e na pratica dos exercidos militares^ entendendo
Reinaud que os exercicios ali contidos, em numero
de sessenta e dois, e que se encontram em muitos
tratados da epocha, sao vozes de commando para
diversas manobras. É seu auctor Mohamede, filho
deLagin Alocami, cognominado Atteraboluci, como
o pae de Naceradim, acima indicado, naturalmente
por ser também de Terabulus, Tripoli, na Syria, e
conhecido também por Arramão (o lanceiro).
Reinaud cita ainda um manuscripto que per- um códice de s.
tenceu outrora ao conde de Rzevuski* e que está ^**'*"**'""*°'
no museu asiático de S. Petersburgo, e n'outra
sua obra dá a versão d^elle^. Intitula-se Compen-
dio dos diversos ramos da arte. Deve também ser
dos fins do século xiv, ou principios do século xv,
porque se refere ao tratado de Maçam, e á evolu-
ção de Gazam.
Comquanto o ache menos desenvolvido do que
o tratado de Maçam, em certos pontos, Reinaud
entende que, no seu conjuncto, té de todos os livros
d'es8e género, por elle conhecido, o que abraça
maior numero de questões, e está redigido com
mais methodo, começando pela acquisição do ca-
vallo e sua educação, e acabando pelos mais com-
plicados exercicios » .
O mesmo illustre arabista e escriptor propende
para que este tratado seja o mesmo que vem ci-
tado no Diccionario hihliographico de Hagi Califa,
com o titulo Arte da guerra de Mohamede ou Arte
* Reinaud. Dt Vari miliiaire chez Ua árabes au moyen àqe. Paria ,
1848.
* Keinaud et Favé. Du feu gregeois et desfeux de gueiTe, etc.
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102
da gueixa para icso dos mahometanos^ por Xemca-
dim Mohamede, filho de Abií Becre, e neto de
Caim Aljuzié, que nasceu em 1292 e falleceu em
Damasco em 1350, da nossa era*.
Este códice foi também vertido pelo professor
Fleischer, e está publicado no Tratado da pólvora ,
corpos explosivos e a pyrotechnia, dos drs. Upman
e Von Meyer.
Ainda oatro tr»- Ximeucs dc Saudoval diz ter visto citada uma
outra obra, escripta no Egypto; Tratado de guerra
contra os infiéis *.
Por essa simples resenha se vê a grande impor-
tância que a litteratura militar attiugiu entre os
árabes, e, portanto, a instrucçSo e educação da sua
milicia.
*
Araboi e bcrbe- Mas cram propriamcntc árabes os que domina-
"'"* ram na peninsula ibérica e nos transmittiram tão
indeléveis característicos da sua organisação?
Assim o podemos considerar, a despeito de se-
rem na sua grande maioria berberes (mouros), os
primeiros invasores, e haver diíFerenciações a esta-
belecer entre esses e os que mais tarde, syrios, al-
moravidas, almuhadas e tantos outros, vieram com-
bater e expulsar do nosso solo os seus emulos na
religião, e ás vezes irmãos na raça.
Berberes e árabes unificaram a sua arte da guerra,
e as diflFerenças a estabelecer entre os processos de
combater nas diversas invasões musulmanas não
são tão fundamentaes que interesse ao nosso estudo
o estabelecel-as. Basta que fixemos os traços phy-
sionomicos essenciaes e geraes.
* Reíitaud. Dt Vart militaire chez les árabes.
* D. C. Ximenes. Guerras (2e Âfiica en la antiguidad, cap. vi.
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103
Do mesmo modo que á raça semita se nega as a theoria de
altas faculdades de espirito que á raça indo-euro- ^'^**®"-
pêa deram a supremacia em todas as manifestações
da arte e da litteratura, assim se lhe nega também
a qualidade de organisadores militares e politicos,
devendo o islamismo o seu poderio e grandeza a
elementos que não eram semitas: — na Ásia ás duas
raças de élite^ os persas e os turcos uralofiiiezes
ou turanianos, e na Africa e Europa aos berberes,
turano-arianos*. É verdade que os berberes conser-
varam, através dos tempos, os seus característicos
distinctos, sobretudo ethymologicos e linguisticos,
mesmo depois da dominação bysantina,^ue não
logrou fundil-08, e da musulmana que a absorveu
completamente, depois de uma resistência tenaz.
N'esta lucta ficou, entre outros, memorável, o nome
do caudilho berberisco Roceila, que, na sua resis-
te^icia, muitas vezes appellou para as tropas by-
santinas, e chegou mesmo, pela morte de Ocba, o
* Sâo d'essa opinião Henri Fournel, e Louis Rinn: «Un historien
modeme, Mcnri Fournel, a, un des premier8,bienmÍ8 en relief cette
action purement négative des semites musulmans sur les Berberes,
action qui, pour lui, resume dans Véchec des árabes comme conqué-
rants de V Afrique. Et, en efFet, il démontre bien comment lea semi-
tes musulmans se sont fondus en Afrique, et comment ils ont été
absorbés ou débordés par les aborígenes, qui n'ont retenue d'euz
qu'une vague étiquette, sans grande valeur, car de tous temps les
Berberes se sont distingues et se distioguent encore soit par des
schismes ou hérésics nationales, soit par une tiédeur de croyance
et anc indifférence tant soit peu sceptique.
«En résumé, les divers conquérants de T Afrique septentrional ont
disparu, sans avoir réussià modifíer sensiblement Tethnographie ou
la langue des Berberes. Les débris phéniciens« grecs, romains, vân-
dalas ou árabes restes dans le pays, se sont fondus complétement
dans cette puissante race berbere dont la vitalité et Ténergie les
ont absorbés, comme jadis la vieille race des Gall absorba tous ses
conquérants (Romains, Gotths, Burgondes, Belges, Kimri ou Ger-
mains), et iroposa son génie aux vainqucrs eux-mêmes. Et de même
que la tribn belge des Frank a donné son nom et ses lois à notre
patrie sans que pour cela nous ayons cesse d'être touiours et quand
même des Gall ou Gaulois, de même, au sud de la Méditerranée, le
^9émite a pu imposer longtemps son coran, sa souveraineté et jus-
qu*a son nom d'Ârabe\ mais la masse est restée et restera berbere».
Luís Rinn, Les orig. berhhres, cap. xiv.
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toas.
104
temeroso general árabe, a constituir um grande
estado berbere.
A influencia dos berberes no território hoje por-
tuguez tinha de ser grande, desde o momento que
núcleos importantes de população eram de origem
berbere e doesta raça eram também os mais fortes
contingentes dos exércitos invasores árabes na pe-
ninsula. Tárique era berbere de Nefta, de origem
persa, e já Tarife, seu antecessor, era berbere tam-
bém.
influenciu ma- Scm cntrarmos na discussão sobre se ao caracter
indo-europeu dos berberes deveram ou não os ára-
bes as qualidades militares e politicas que revela-
ram no seu dominio na Europa*, temos de acceitar,
como facto incontroverso, que na influencia mutua
daà duas raças se havia de ter modificado a sua
arte da guerra, e que também em muitos dos fun-
damentos d'estas se teriam adoptado os preceitos
da arte grega e romana perpetuados pelos bysan-
tinos, com os quaes árabes e berberes estiveram
no norte da Africa em renhida lucta.
Nas invasões e luctas gueiTeiras dos africanos
na peninsula encontrámos muitos dos característi-
cos das guerras que os berberes sustentaram no
norte da Africa contra os bysantinos, e que vem
descriptas nos historiadores d^aquelle periodo da
decadência da civilisação clássica.
Um trabalho moderno de Charles Diehl que
temos presente, recompilando esses escriptores,
e baseando-se n'um tratado de táctica da epocha*,
dá-nos.o quadro das modificações profundas que
os bysantinos foram obrigados a introduzir nas
suas formações de guerra, armamento, e modos
de combater, em presença da táctica tão estranha
* Charles Diehl, UAfriqae bysantine, liv. i, cap. ni, 1896.
2 Tratado de Táctica, ed., Kochly et Rustou.
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105
e tão singular dos berberes; foi o mesmo facto que
se deu depois com os christãos na península, diante
da táctica dos árabes.
O mesmo escriptor dá-nos noticia do que era o Armamento dos
. j •• I » 1 "* berberes.
armamento dos berberes n essa epocha, o que nao
deixa de nos interessar, apesar das modificações
introduzidas desde então até á conquista da Ibéria.
«O armamento dos berberes era inferior ao dos
bysantínos, o que explica o serem considerados pelos
generaes imperiaes como adversários sem defeza.
Pés e braços nus, cabeça e corpo envolvidos h'um
grande albornoz ^de pano; cavalleiros e peões não
tinham outra arma defensiva alem de um pequeno
escudo de couro; para o ataque serviam-se de uma
curta e larga espada, e cada qual trazia dois longos
e sólidos dardos; este ligeiro armamento, porém,
dava-lhes uma mobilidade extrema, e n'essa van-
tagem se fiavam pai^a cansar, envolver, romper a
pesada infanteria inimiga ; segundo o costume de
todo o nómada, levavam comsigo, nas excursões, as
mulheres, as creanças, o gado da tribu; mas não
era isso um obstáculo á marcha, porque os animaes
tinham um papel na batalha, e as mulheres, levan-
tando entrincheiramentos, cuidando dos cavallos,
limpando as armas, deixavam os guerreiros mais
frescos para a lucta, e, além d'isso, mais de uma
vez tomavam furiosamente parte no combate.»
Como se vê, é o que se repete mais tarde na pe- Forma do com-
ninsula, e entre nós em Ourique, em Silves, e outros
combates, quanto ao papel das mulheres nos com-
bates.
• Gostavam das guerras de escaramuças e de
emboscadas, occupando passagens difiiceis na
montanha, occultando-se ao abrigo dos bosques ou
do leito deseccado dos rios; compraziam-se em
surprehender o inimigo na marcha, fazer remoi-
nhar em Volta das suas fileiras, meio rotas, o galope
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106
furioso dos seus esquadrões; combinavam fugas
hábeis que arrastavam o adversário n'uma perse-
guição imprudente, e o conduziam, exhausto e
sem ordem, á cilada cuidadosamente armada; açu-
lavam-no com cem ataques parciaes, furtando-se
sempre, sem nunca arriscar ura combate regular,
sem querer, sobretudo, acceitar uma grande ba-
talha em forma, na planicie; mantinham-se nos seus
postos, occupando as cristas dos montes, abrigan-
do-se atrás de abatizes de arvores, espiando a mar-
cha do inimigo para aproveitar o menor eiTO,
investir o seu acampamento mal fortificado, e sur-
prehendel-o no momento da sesta; simulavam a
retirada, muitas vezes a derrota, para embair o ad-
versário e attrahil-o, na perseguição, ás regiões de-
sertas, onde a fome, a sede, o calor lhe quebrantas-
sem a coragem; e mesmo, para melhor os estenuar,
iam fazendo estragos pelo caminho. Se se chega a
alcançar estes quasi inacessiveis cavalleiros e a for-
çal-os a uma acção decisiva, a sua maneira de com-
bater desorienta todas as previsões. Com os seus
camellos dispostos em muitas linhas de profundi-
dade, formam no meio da planicie um vasto in-
trincheiramento circular, atrás d'esta primeira de-
feza coUocam o resto das suas tropas, e os bois,
cabras, carneiros, fortemente presos uns aos ou-
tros ; no interior d'este parapeito vivo, cordas ten-
sas, forcados, estacas cravadas na terra, abrolhos
semeados no chão, reforçam os meios de resistência.
N'esta espécie de cidadella, as mulheres, as crean-
ças, os velhos ficam a guardar o acampamento; os
peões, incapazes de sustentar o choque da cavalla-
ria, abrigam-se á beira do acampamento entre as
pernas dos camellos, e repellem com as suas flechas
os assaltos do adversário; a cav aliaria toma posi-
ção nos cabeços vizinhos, prestes a carregar de
flanco, ou de revés os esquadrões inimigos em des-
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107
ordem; os indígenas esperam, com rasão, que a
presença e os bramidos dos camellos espantem os
cavallos bysantinos e quebrem sem difficuldade o
impulso do primeiro ataque. Para melhor decidir os
gregos a tomar a ofFensiva, alguns cavalleiros de
eleição vem desfilar em frente das fileiras inimiga s ;
deíítacamentos da cavallaria berbere chegam mes-
mo a tomar a oífensiva e, soltando clamores fero-
zes, precipitam-se no combate; mas quando a sua
derrota, ou a sua fuga simulada, tem conduzido á
beira do campo os esquadrões gregos, entSo a tá-
ctica dos indígenas revela-se em pleno êxito: á vista
dos camellos furiosos, os cavallos esquivam-se ou
se empinam, e os peões,' saindo do seu abrigo, lan-
çam-se sobre os cataphractas desmontados ou dis-
persos, emquanto que os berberes, descendo das
alturas, vem com as suas cargas completar a der-
rota*.»
Aparte o episodio dos camellos, e alguns por-
. menores secundários, encontrámos aqui esboçada a
physionomia dos combates entre os árabes e chrís-
tãos na península. Vejamos, porém, outros espéci-
mens curiosos: uma surpreza de cavallaria, por
exemplo:
fA approximação do exercito inimigo, os mou- surprot* d» c
ros ganham o alto das collinas, e ficam alarpada-
dos atrás de uma cortina da floresta, onde lavram
grandes incêndios. A vanguarda grega, encarre-
gada de explorar o terreno e reconhecer as posi-
ções do inimigo, trava lucta na planicie; então al-
guns cavalleiros indígenas descem das alturas, e,
soltando grandes gritos, lançam os seus cavallos
ao galope sobre as linhas do adversário ; e, a pouco
e pouco, massas de cavallaria, mais profundas,
desembocam todavia no terreno, sem parecer que
* Tratado de Táctica, ed., Kochly et Rustow.
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108
buscam o combate. Em vista d'isto, as tropas by-
santinas param, prestes a reuni rem-se ao corpo
principal; mas então, por toda a parte, os esqua-
drões berberes precipitam-se sobre a planície fa-
zendo remoinhar em volta das linhas inimigas os seus
ligeiros cavallos num idas, esforçando-se por envol-
ver o destacamento inimigo e cortar-lhe a retirada.
• Trava-se uma refrega temvel, onde só se com-
bate á espada; e sob â massa, sempre crescente,
dos seus adversários os cavalleiros inimigos destro-
çados vão-se reunindo, como podem, n'uma altura
vizinha, e preparam-se para vender caro a vida,
quando por felicidade o grosso da cavallaria appa-
rece para desembaraçar a sua vanguarda. Falho o
plano, os berberes não esperam por mais, fogem e
vão tomar os altos das coUinas».
Esboço do uma Vcjamos aiuda o escorço de uma grande batalha:
• Em presença das linhas inimigas os berberes
construiram um enorme acampamento circular,
formando com os seus camellos e os seus rebanhos
um parapeito defendido pela infan teria; uma parte
da cavallaria conserva-se em reserva sobre as col-
linas ; o resto inicia a acção, cobrindo de settas as
linhas inimigas, e, como é de uso, o combate tra-
va-se á distancia entre as duas cavallarias. Imme-
diatamente, n'uma carga furiosa, os berberes lan-
çam-se sobre os esquadrões gregos repellidos em
desordem, fazem frente á retaguarda, e concen-
tram-se ao galope atrás da sua infanteria, arras-
tando n'uma perseguição louca o inimigo que lhe
vae no encalço, até mesmo á orla do acampamento;
mas ali se reconstituem, recomeçam a carga, e
dá-se na planicie uma vasta refrega de cavallaria.
Em derrota os mouros são repellidos até aos seus
entrincheiramentos, e a batalha parece perdida,
quando das alturas, de onde observava a lucta, a
reserva se lança n'um impeto furioso sobre o flanco
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109
das tropas inimigas, as quaes, surprehendidas, des-
vairadas, fogem em desordem, abandonando os
seus chefes em pleno combate. Todavia, graças
aos esforços dos officiaes gregos, a batalha restabe-
lece-se, e se torna mais ardente em frente do campo
berbere. Intrincheirados na sua cidadella viva, os
indigenas oppõem uma defeza desesperada; as mu-
lheres, as creanças, os velhos, todos tomam parte
na lucta; os assaltantes são repellidos á pedrada,
esmagados debaixo de contos enormes; attira-se-
Ihes para cima com ban-as de chumbo e archotes
inflammados, emquanto a cavallaria mourisca se
prodigalisa em sortidas, e desenvolve, á vost dos
seus chefes, uma coragem a que os seus adversá-
rios sao os primeiros a prestar homenagem; até
que afinal são repellidos, e a grandes golpes de
espada os bysantinos abrem passagem através das
sebes vivas*».
Quasi todos traços physionomicos que caracte- Na peniD«uia.
risam estes typos de combate se reproduzem fiel-
mente, como veremos, nas guerras dos que entre
nós continuaram a ser chamados cmouros», contra
os christãos. O elemento árabe, comquanto se fun-
disse pela religião com o berbere, não logrou tirar
a este os seus principaes característicos e peculiar
feição. Na guerra o berbere continuou a combater á
sua maneira; comor succedia com as diversas tribus
de origem asiática ou africana que compunham os
exércitos, a táctica árabe aproveitou, dentro dos
seus lineamentos geraes, as qualidades guerreiras
d'esses povos, principalmente do berbere ou mou-
ro, ao qual a experiência da guerra com os by-
santinos 6 com os árabes havia dotado com largos
conhecimentos militares.
* Charles Diehl, segando a descripçao de Corippus, na Johannts
Mun. Germ. Hist.
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110
organiMçjiomi. Scm enti*annos, porém, n'esses pormenores que
bw!^ ^*" "*' demandariam demorados estudos, para os quaes
nem sempre haveria elementos seguros, e que mesmo
sairiam dos limites e do caracter d'este trabalho,
vejamos, nos seus traços geraes, qual a organisa-
ção militar que os árabes apresentam no seu do-
minio na península; e a influencia d^essa organisa-
ção na nossa maneira de ser militar nos primeiros
séculos da monarchia.
NainTadU). A iuvasão saiTaccua foi sangrenta nos raros re-
contros armados; depois da batalha de Guadalete,
ou propriamente de Barbate, muitos dos castellos e
povoações fortificadas foram entregues, sob o im-
pério do medo ou da traição, sendo principalmente
a população judia que auxiliou os mouros na con-
quista.
Ella tirava assim a desforra dos antigos vexa-
mes e aggravos de que atrás demos já noticia,
e ao mesmo tempo obtinham vantajosas capitula-
Equiiibrio entro coes, cstabelccidas por tratados. O accordo ou
M dnu raçM. equiií|jj.ÍQ entre os invasores e as populações, que
passavam a estar sob um novo dominio, fez-se fa-
cilmente, e só se rompeu nas Itictas civis entre as
tribus de diversa origem que entre si disputavam
o predomínio, e com as quaes padeceram por igual
os musulmanos e os christãos, por abusos dos emi-
res e valis, e pela violação dos pactos estabelecidos.
Regimendaster. As tcrras coutínuaram em grande parte a serem
cultivadas pelos antigos buccelarios, colonos, li-
bertos, servos, depois de divididas pelos conquis-
tadores, primeiro por tribus, depois em fracções
individuaes, e em parte foram conservadas aos seus
antigos possuidores. Essas terras eram as que no
TM,
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111
domínio vesigotico haviam pertencido aos nobres,
ao clero, ou aos mosteiros. D^entre esses proprietá-
rios muitos se tinham refugiado nas Astúrias, em
NavaiTa e na Catalunha; e também, mais tarde, se
dividiram as propriedades dos judeus que, abando-
nando as suas terras, foram, arrastados pela seduc-
ção do falso propheta Zonarias, até á Palestina.
Dos seus productos tinham os cultivadores de
entregar ao dono quatro quintas partes; nas terras
propriamente do Estado, que depois passaram
também, em commendas, á posse de particulares,
davam apenas a terça parte.
D'essa grande população de agricultores, como Koiarabes.
também dos que se dedicavam ás artes domesticas,
se formou o núcleo da população mosarabe, que
mais tarde se alastrou, e quasi se confundiu com a
população propriamente árabe, adoptando até os
seus usos, costumes, vestuário e a própria religião.
Para o árabe a guerra era uma obrigação geral; obri^mçâo d»
todo o musulmano tinha de ser soldado ; impunha- *"*"^*'
lhe esse dever o seu. código religioso, emanado da
divindade, e que convertera a guerra no verdadeiro
instrumento da conquista, para o engrandecimento
e enthronisaçao de uma raça.
O musulmano, entendendo ser a guerra uma
necessidade da condição humana, reconhecia como
legitimas duas espécies d'ella: a guerra santa
(jihadj contra christãos, e a guerra entre nações
ou governos, para fazerem respeitar a sua auctori-
dade e direitos*. Todos os preceitos religiosos e
doutrinas dos tratados, como já tivemos occasião
de ver, impunham a guerra como um dever pri-
mordial entre os musulmanos. lA conversão do
principio religioso em signa militar, diz um escri-
ptor hespanhol, foi o que imprimiu uma physiono-
^ Ibn Ealdum. Prologomknes^ trad. de Slane, tomo ii.
l
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112
mia nova e original ao systema do legislador da
Arábia, a cuja influencia deveram os sarracenos os
seus rápidos triumplios e o maliometanismo a sua
assombrosa propagação. A guerra santa aos fieis
é o serviço mais agradável aos olhos de Deus ; os
que morrem pelejando pela fé são verdadeiros mar-
tyres, e abrem-se-lhes as portas do paraizo. Se o
legislador de Meca tivesse apenas em vista tornar
um povo valente, guerreiro e conquistador, teria
acertado, porque ao fanatismo que inspirou deveu
as suas rápidas conquistas è a obstinada e por-
fiada resistência que os conquistadores de Hespa-
nha oppozeram ao valor e perseverança dos cliris-
tãos**.
Os mosarabes, alem da capitação a que eram
obrigados, pelo cultivo das terras, e do imposto
que pagavam pelos misteres que exerciam, tinham
também por dever ir á guerra e defender o ter-
ritório.
Forma derem- Tal cra a fórma do recrutamento, na qual não
havia isenções nem dispensas senão para os invá-
lidos, porquanto até as mulheres e as creanças se
empregavam na guerra, e muitas vezes na própria
arena do combate. E essa obrigação civica não se
tornava pesada, visto que o árabe, em extremo
tolerante, não só não abusava da victoria, devas-
tando as povoações inermes e opprimindo os ven-
cidos, segundo os preceitos rigorosos do Alcorão,
mas não tivera necessidade de assegurar o seu do-
mínio, treduzindo-os á escravidão, despojando-os
das suas propriedades, como haviam feito os bár-
baros, nem privando-os sequer das suas leis civis,
do seu governo interno, do seu culto ou instituições
sociaes' » .
^ Elem. de Ei$t. de Etp., por Sanchez j Casado, pag. 172.
> D. Francisco de Cardenas. Ensayo sobre la historia de la pro-
priedade, tomo I, Uv. II, cap. m. i
Umento.
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113
O território era dividido em tahas, sujeitas cadaDivuiodoterri-
uma a um chefe *. As antigas classes guardaram
08 seus direitos: nobres e plebeus, curiaes e priva-
dos, patronos e clientes, homens livres e servos,
accommodando-se esses direitos ás condições do
novo regimen, chegando os nobres mesmo a manter
muitas das suas prerogativas. Os que abraçavam a
religião nova ficavam equiparados aos musulma-
nos, em sangue e bens, ficando isentos dos tribu-
tos; o que fez com que muitos christaos e judeus
adoptassem a nova fé, e os redditos do estado di-
minuíssem sensivelmente*. Como prova das liber-
dades e garantias que os mosarabes disfructavam,
com o seu culto, com as suas leis, e com os seus
condes e juizes para a applicação d'ellas, citam-se
os santos martyres de Saragoça, Voto e Félix, t que
viviam rodeados de clientes e de servos, no meio
da opulência, exercendo a nobre profissão das ar-
mas e entregando-se ao recreio da caça, só per-
mittido aos cavalleiros, segundo os usos da idade
media'». Frequente era ver nos altos cargos da
milicia próceres christaos.
Com estes elementos, assim recrutados em todas
as classes e communhoes, se formava o exercito,
que se congregava na occasião. Como tropas per-
manentes havia apenas as que eram destinadas á
guarda e segurança do califa; estava-lhes também
confiada a policia em tempo de paz, e estaciona-
vam nas cidades e povoações mais importantes.
Os que especialmente se destinavam, mesmo naoigasia.
paz, aos serviços da guerra chamavam-se na pe-
ninsula ^azÍ5, que, segundo Gayangos, o mesmo era
que mouros de guerra, derivando-se a palavra de
^ Na Andaluzia conserva-se ainda o nome : Taha de Marchena,
taka de Pitres. Almirante. Dice. Miliiarf voe. Taha.
2 Dozy. Hist. des Muss. d^Esp., tomo i.
' Idem.
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114
gaza^ que significava entrar no território inimigo
em tom de guerra, de onde proveiu algazú^ correria,
e a palavra portugueza gazua, algara ou rápida
incurRão militar.
Ofrotsodoexer. Quaudo dos divcrsos pontos do império musul-
mano vieram tribus nómadas assentar arraiaes na
península, estabeleceram-se nos campos, acolhen-
do-se os mosarabes nas cidades e grandes povoa-
dos; o grosso do exercito passou então a estar
disseminado pelos campos, de onde era convocado
nos rebates da guerra.
Vencimentos e Em campauha, ou na perspectiva da guerra, as
tropas tinham vencimento, e além d'isso pertenciam
a cada soldado quatro quintas partes dos despojos
obtidos, tirado o quinto restante para o califa ou
emir, o qual tinha de lhe dar a applicação indi-
cada no Alcorão; a differença estava era que, do
monte geral, os cavalleiros tinham direito ao dobro
do que pertencia aos peões.
A repartição fazia-se segundo os méritos e cate-
gorias de cada um; o mesmo succedia com as
terras, que de direito pertenciam aos que as con-
quistavam, sendo entre elles repartidas; qualquer
podia, comtudo, ceder a sua parte a favor dos
naturaes *.
TributM. Sobre os paizes tributários fazia-se pesar, alem
de outros, o tributo do dhiffay destinado á alimen-
tação das tropas, de onde, de certo, deriva a nossa
antiga adiafa.
Viveres. Nas opcraçocs eram ás vezes fornecidos os vive-
res ás tropas, pela munificência do califa; geral-
mente, porém, eram ellas próprias que os adqui-
riam com o dinheiro que levavam ^.
A sua repartição se procedia no próprio local do
* Est. Calderon. Ob. dt., segundo Baraazil.
* D. Mariano Perez de Castro. Estúdios Militares, Orig. y prog.
dei arte de la guerra en Esp., pag. 38. 1872.
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í
115
saque ou da batalha; o pecúlio consistia em tudo Repartiçio dM
aquillo de que se podia lançar mão, e em tudo que '*"***
o inimigo dava para obter a paz ou o resgate dos
prisioneiros. Âs terras não contavam ao principio,
naturalmente pela pequena importância que tinham
para raças nómadas, antes de assentarem em ter-
ritórios fixos ; quando se fixaram estabeleceram leis
novas, princípios novos, correspondentes a esse seu
novo estado social. D'ahi a divisão dos territórios
conquistados, pelas tribus, n'uma forma de pro-
priedade indivisa, communidade, passando-se mais
tarde á propriedade individual.
Nos primeiros tempos da conquista as terras con-
fiscadas ás ordens religiosas e aos nobres, que ti-
nham preferido o exilio a sujeitarem-se ao domi*
nador, foram repartidas entre os conquistadores,
deixando n'ellas os servos, que conheciam a agri-
cultura, e que ficarauí obrigados a dar aos proprie-
tários quatro quintas partes dos seus productos ; nos
dominios do Estado só eram, como vimos, obriga-
dos a dar a terça parte. Estes quinhões entravam
ao principio no erário publico, mas depois foram
com elles constituídas commendas que se deram
aos árabes e syríos vindos de África em auxilio e
reforço. Os christãos que se sujeitaram ao dominio
árabe — os mosarabes — continuaram na posse in-
tegral das suas terras, com a obrigação de pagar a
capitação ao Estado ; tinham além d'isso os proprie-
tários em geral de pagar o farach, especial contri-
buição territorial*. E todos, senhores e servos, eram
obrigados ao serviço da guerra.
Os quadros das tropas, assim constituidas, eram Qaadroi de uo-
formados pelas pessoas de maior distincção, tanto ^"'
entre os propriamente musulmanos, como entre os
que se punham ao serviço doestes, acabando por
^ Sanchez j Casado. EUm, de Hist, dt\E9p.^ psg. 174.
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116
ser coiiimum a causa, e communs os interesses que
defendiam. Para a nobilitação dos homens, conta-
ram-se sempre entre as qualidades principaes o
valor e o exercício das armas.
^''mfSiSfn.es ^' Havia, porém, uma antiga nobreza, á qual desde
sempre foram conferidos os com mandos, a dos me-
dinenses, conhecidos pelos defensores, por terem
constituido o primeiro núcleo de resistência em
volta do Propheta*.
Quando perseguidos pelas outras tribus que, nas
suas continuas rivalidades, conseguiram successi-
vamente a supremacia, refugiaram-se em Africa,
onde se tornaram numerosos, encorporando-se no
exercito de Muça*. D'essa nobre raça provieram os
omáiadas.
Effcoiha pelo me. Mas como O valor e a sciencia militar, provados
nas batalhas, determinavam sempre a selecção para
os commandos, eram estes escolhidos mesmo entre
os povos dominados; assim succedeu com Tarique,
por exemplo, que era berbere, e commandou a se-
gunda e decisiva expedição á Hespanha, trazendo
ás suas ordens muitos cabos de guerra da sua raça;
e, igualmente, próceres de antigas origens godas e
romanas obtiveram na península altos cargos e
commandos. Havia familias árabes nas quaes era
tradicional o officio de commandar as tropas, como
na peninsula a familia dos Beni-Nasre, de Arjona '.
poftos miuteres. Os divcrsos postos, muitos d^ellcs corresponden-
tes também a funcçoes administrativas e cargos so-
ciaes, eram os seguintes:
ciuiiii. O califa era a suprema auctoridade que ao prin-
cipio dominou em todo o povo musulmano, como
vigário ou logar- tenente do Propheta, cargo que
* Dozy. HÍ8t. dta Muasua, (TEsp., tomo i.
* Idem.
' Gayangos. Almakari, HUt, of the Mohammedan Dynaíti€4 in
Spain, tomo i, liv. 8, cap. õ.
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117
por algum tempo foi exercido pelos seus discipulos
e parentes; até que houve emires que, tornando-
se independentes do poder central, adoptaram o
titulo de califa^ como os emires de Córdova, quando
se independentisaram do califado de Damasco.
Os califas nomeavam os seus emires. Por occa-
sião da invasão dos mouros na peninsula os emi-
res da Africa do Norte eram nomeados pelo califa;
os da peninsula passaram a receber a nomeação
dos emires de Africa*. O grande califa era, por di-
reito hereditário, o commandante de todos os exér-
citos muslimicos, o generalissimo por excellencia;
depois, quando os houve muitos, os califas eram os
chefes supremos das tropas da região onde impera-
vam.
Emir queria propriamente dizer chefe ou senhor ; Emir.
administrativamente era uma espécie de viso-rei,
titulo que se dava a principes, ou pessoas de grande
distincção ; como tal lhe pertencia o governo e o
mando das tropas da sua circumscripção, auxiliado
por um ou mais officiaes da nomeação do Califa*.
O primeiro emir que ficou governando a peninsula
foi Abdelásis, filho de Muça, que estabeleceu em
Sevilha a sede do seu governo (714). No sentido
de chefe superior, emir-almnsselemim entre os almo-
ravides e emir almiimenim em Córdova e em Bagda-
de, se chamava ao emir, como principe ou chefe dos
crentes dentro do seu emirado ; d'ahi o Miramolim
das nossas chronicas, que de modo algum repre-
senta um nome, mas uma dignidade. Era coma Cé-
sar entre os romanos, titulo genérico do Imperador,
com quanto, como César, por excellencia, seja co- '
nhecido o vencedor nas G ai lias e em Munda.
Ou por usurpação, portanto, ou por delegação,
* Dozy. HÍ8t. des Mussul. en Esp,, tomo i.
* Perez de Castro. Oò. cU,, pag. 59.
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118
na qualidade de naibe (logar-tenente ou viso-rei), o
emir nSo só era o superintendente nas coisas da
guerra, mas tinha também funcções administra*
tivas, como succedeu na peninsula no tempo dos
Omáiadas.
Emir dos emires (emir alómra) passaram os per-
sas a chamar á auctoridade suprema, quando se
apoderaram do poder dos Califas*.
Senil deveres. No tratado militar escurialense de Bemazil vem
enumerados os múltiplos deveres do emir, tanto
na paz como na guerra. Superintendia na organi*
saçao e difinição das tropas a seu cargo, devendo
fazer alarde d'ellas e passar-lhes revista todas as
sextas feiras, ou pelo menos duas vezes ao mez;
n'essa occasiao se daria baixa aos doentes, aos
pusilânimes ou cobardes, aos cavallos fracos ou
inutilisados, e se renovaria o armamento, etc*.
Em campanha, altas qualidades tinha de possuir
para ser credor d'esse nome: devia ser um mo-
delo para os seus subordinados, pelo seu valor e
virtudes, impondo-se-lhes e Fendo por elles amado
como um pae, instruindo-os nas praticas religio-
sas e militares, ensinando-lhes a serem modera-
dos, pondo toda a vigilância em as tropas estarem
ao abrigo das suprezas, estabelecendo atalaias e
guardas, escolhendo os melhores logares para esta-
cionar, provendo-os de petrechos e abastecimen-
tos, etc.
Quando o emir ordenava, pela voz do pregoeiro,
a cada qual o seu logar, na vanguarda, nas alas ou
na caga, não havia obtemperações a fazer-lhe, sob
pena de rigoroso castigo.
Quem ouvisse gritar ás armas devia acudir ar-
mado, não ao local de onde o grito partira, mas
* Ibn Kaldum. ProhgomhitB. Parte 2.»
2 Idem.
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119
áquelle onde estava o Emir, a fim de receber as
suas ordens; a não ser que o inimigo estivesse
no- ponto de onde o grito saíra. A cada taifa, ou
unidade em que se dividia o exercito, uma voz es-
pecial indicava o ponto onde se havia de reunir
em volta da respectiva signa, servindo também de
orientação aos extraviados e dispersos durante a
batalha; era um uso tradicional desde o tempo do
Propheta. — cO' filhos de Aberramão!» era o grito
para congregar os que o acompanharam na sua
expedição contra Medina.
Outra obrigação do Emir, diz Bemazil, consistia
em reconhecer cautelosamente o estado das mon-
tadas e azemulas do exercito, para se desfazerem
das que, pelo seu mau estado ou doença, mais ser-
viriam de empecilho do que de meio de transporte
ou tracção. Devia collocar na retaguarda das for-
ças em marcha um troço de homens que, nas en-
tradas e rebates em terras de inimigo, tivessem por
missão reunir os retardatários, mandando-os unir
á frente, e também tomar conta nos feridos, com
os quaes recommendaria o maior cuidado *.
Essencialmente compassivo o povo árabe, esse Eufcrmos.
cuidado com enfermos era imposto como um dos
particulares deveres do Emir, que, nas marchas,
longe do inimigo, devia regular o passo das tropas
pela necessidade da marcha ou da conducçào dos
doentes e estropeados; era a tradição do Propheta,
que consumava dizer: tSe algum de vós se debi-
lita ou se a sua montada succumbe, deve o resto
da gente acommodar o passo ao d'aquelle que cair,
e o Emir procurará cuidadosamente que os demais
lhe não ganhem a dianteira». Isto não quer dizer
que não estivesse recommendada a máxima rapidez
* Est. Calderon. Frag. de la Hist. de Infanta espahola. La Rev,
Militar, tomo viu, pag. 173.
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1
120
nas marchas, quando necessário fosse, como succe-
deu com a marcha de Said bem Ali Hinde que foi
de Medina a Meca em três dias, merecendo os elo-
gios de Omar *.
€ Grande attençao, diz Bemazil, devia ter o Emir
em cuidar do governo e regimen dos soldados, quer
fossem os voluntários, que em árabe se chamavam
almortavaes, quer os soldados estipendiados, que se
chamavam almastarzequès ; para os manter, por-
tanto, em boa ordenança, devia o emir impor, a
cada companhia ou unidade, certos administradores
ou inspectores, chamados naquibes ou arifes, que,
exercendo attenta vigilância no estado das tropas,
lhe dessem conta das necessidades d'ellas, com-
municando-lhes as ordens do emir, e reunindo as
forças quando necessário fosse, c Com isto se ganha
muita rapidez nas operações militares, e se mantém
a vigilância no soldado* »>.
Emiraimanzii. Apparcceni mais tarde com o titulo de emires
entidades que, decerto, para uma boa divisão do
trabalho, e melhor funcionamento dos serviços,
têem cargos especiaes, independentemente do com-
mando ; ha assim o em?' almanzil, espécie de me-
tator dos romanos, ou do nosso futuro aposenta-
dor-vióvy encarregado de indicar a cada cabila ou
Broir ai-iebiah. corpo O logar ondc havia de estacionar; o emir-
al'lebiahy ao qual incumbia ordenar, dispor as tro-
pas, segundo o que estabeleciam as instrucçoes
Emirraídc. p^^a a formaçSo j o emir raíde ou dos forrageado-
res, ou raíde simplesmente^.
vizir. Entre os Omáiadas da Peninsula, vizir, se chamou
primeiramente á auctoridade immediata ao emir;
dividiu-se mais tarde o vizirato em muitos funccio-
1 Ibn Kaidum. Prologomhnea. Parte 2.*
2 Est. Calderon. Frag. de la Hist, de Infant. espahola, La Eev.
Militar, tomo viii, pag. 173.
3 Idem, 174.
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121
naríos ou ministros, para os diversos serviços, taes
como a contabilidade, a correspondência, a vigi-
lância das povoações das fronteiras, tendo cada
um d'elles o titulo de vizir; esta organisação
manteve-se até o fim da dynastia.
Para este fim os vizires tinham uma sala de au-
diência, com coxins sobre estrados, onde se recli-
navam, para d'ahi expedir as ordens emanadas do
Califa, com o qual se correspondiam por intermé-
dio de um dos seus collegas que tinha o titulo de
hajebe (espécie de camarista). Vizires passaram anajebo.
chamar-se os reis de taifas (moluque attanaífe), che-
fes de grandes partidos populares, governadores
de provincias ou cidades, que substituiram a dy-
nastia dos OmáiadaS; até serem desthronados pelos
Almorávidas *.
Os Almohadas imitaram n'este ponto, como n'ou-
tros, os seus antecessores Omáiadas ; o hajebe occu-
pava entre elles um grau superior aos outros mi-
nistros.
Vali se chamava o governador de provincia, que vau.
como tal tinha o mando das tropas,- com a cate-
goria immediata á do Emir, sob o ponto de vista
administrativo. Eram os Valis collocados principal-
mente nas terras da fronteira, onde o seu papel era
muito importante, pela grande vigilância e cuidado
que exigia. Bemazil requer n'elles os mais distin-
ctos predicados: deviam ser varões fortes, de cos-
tumes austeros, de valor provado, que quando não
tivessem adquirido renome na guerra, fossem tidos
como homens de bom senso e de grande seriedade ;
< deviam ser pacientes e soffredores nas marchas e
fadigas, entendidos nas astúcias da guerra, conhe-
cedores da arte de esquadronar, hábeis em negociar
1 Est. Calderon. Frag, de la Hist. de Infanl, espahola, La Rev.
Militar^ tomo xui, pag. 682.
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122
e estabelecer pactos, e sabedores em matéria de tri-
butos, quintos, presas e outras exacções militares *».
Suas qualidades. Seguudo O auctor arabc, citado por Perez de
Castro, o emir devia reunir as seguintes virtudes
militares: «discernimento, alta intelligencia, paciên-
cia, grandeza de alma na adversidade, e uma aptidão
superior para a estratégia e para a emboscada, pois
disse o Propheta que a guerra era uma serie de em-
boscadas^».
saes deveres. Pertencia-lhe attender aos abastecimentos e apres-
tos para a campa.iha, ás cavalgaduras, bagagens,
fortificações, e soldo dos adaís e exploradores ; recru-
tar para o exercito os naturaes da terra, e em espe-
• ciai a gente da fronteira, dando-lhes exercicios para
adestar os peões no manejo da espada, lança e arco,
e os cavalleiros em todos os difficeis exercicios da
gineta. Com gente escolhida e provada na guerra,
em destacamentos que se rendiam de seis em seis
mezes, e que serviam de núcleo á gente armada,
defendiam os pontos mais fracos e mais expostos
da fronteira ^.
Serviço nas fron- Como cra uatural n'uma epocha em que toda a
lucta se cifrava no manter ou no alargar os domí-
nios, arrebatando-os ao inimigo da sua raça e
religião, facto que se deu em todo o período da Re-
conquista, o serviço nas fronteiras era o mais im-
portante e o mais considerado nas coisas da guerra.
Os fronteiros eram os únicos que não necessitavam
da ordem do Califa ou do Inian para entrar em
operações; deteiminavam-se pela situação e attitude
do inimigo. De modo que o fim principal d'essas
tropas era, não só prevenir e repellir as incursões
do inimigo, mas realisar expedições e surpresas nas
^ Est. Calderon. FrcLg, de la Hist. de In/ant. espaiwla. La Rtv.
Militar^ tomo viii, pag. 283.
2 Perez de Castro, 06. ctí., pag. 59, nota.
3 Est Calderon. Oh, cit, pag. 284.
teiras.
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123
terras d'elle, tomando-lhe campos e povoados, ou pelo
menos devastando-os ; essa era a missão principal
do Vali, que assim dilatava o império do Islam e
proporcionava pingues recompensas ás suas tropas
com os despojos do inimigo *.
Immediato ao Valij em categoria, era o cbefe da chefe de Taifa.
Taifa, composta de uns 800 homens, força que
se dividia em duas unidades de 400, denominadas
seraia; em grau immediatamente inferior estavam
os capitães de uma unidade de 100 homens, e fi-
nalmente os que commandavam uma esquadra, que
de 7 homens se compoz no tempo do Propheta, de
10 no de Amer, sendo reduzida a 4 por Moavia;
assim o aífirma pelo menos o manuscripto árabe
de que trata Perez de Castro ^.
Dava-se o nome de adail (do árabe dalil^ guia ^) Adaii.
a todo o individuo encarregado de commandar ou
conduzir superiormente as tropas; significava pro-
priamente chefe, guia, e era, portanto, um homem
considerado pelas suas qualidades de honra e va-
lor, pelos seus conhecimentos e posição social, per-
tencendo-lhe exercer, sobretudo quando estabele-
cido nas fronteiras, uma vigilância constante sobre
as tropas a seu cargo. Este nome permaneceu na
milicia peninsular entre os christãos, sendo em Por-
tugal um posto de responsabilidade e honra, como
teremos occasião de expor.
Tivemos adais portuguezes, desde os fundamen-
tos da monarchia, como se pôde ver, por exemplo,
no foral de Santarém* de 1179, até tempos re-
centes. Nas nossas colónias assim se chamavam os
commandantes de gente a cavallo. A João Froes
* Perez Castro. Ob. cit., pag. 59.
* Idem, pag. 288.
3 DalU guia, pi. dalila. Gayangos. Almacari, liv. ly, cap. iii, nota.
* •AdaiUdt» de scentaren non dmt quintam de quiniones eontm cor-
porum» — PortugàUae MonumerUa — Leges., pag. 408.
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124
de Brítto, cavalleiro fidalgo, foi em 1749 perdoada
certa pena, attendendo a que nas guerras com os
moiros, em Mazagão, alcançara os postos de «caval-
leiro acobertado, capitão de uma das guardas de
cavallariã, primeiro Almocadem, Adail, cabo mayor
de cavallariã d'aquella praça * » .
Nas luctas com os mouros, primeiramente na
peninsula, e depois na Africa e na Ásia, tivemos
de adoptar muitas das formas e titulos da milicia
Árabe.
Adaiimór. Adail-mór era se pôde dizer o próprio rei, como
AíFonso IV no Salado e D. João I em Aljubarrota.
No regimento dado por El-Rei D. Diniz aos diver-
sos cargos da milicia estão indicados os deveres dos
adais, almocadens, alfaqueques^ atalayas^ e outros,
de imitação mourisca; o adail ia geralmente na
dianteira da hoste.
Os mouros, diz Mendoza, chamavam adaís aos
guias ou cabeças da gente do campo, que entravam
a correr terras de inimigos, e á gente d'elles almo-
gavares ; antigamente foi muito qualificado o cargo
de Adail; era escolhido pelos seus almogavares;
saudavam-n'o pelo seu nome, levantando-o ao alto,
de pé, sobre o escudo. «Pelos rastros deviam os
Adaís conhecer a passagem das feras e dos homens,
com presteza, não se detendo em conjecturas, re-
solvendo por signaes, fúteis no parecer de quem
os observa, mas no d'elles tão certeiros, que ao
vel-os encontrar o que buscam parece maravilha*».
No código das Sete Partidas^ que foi também
lei portugueza, vem os deveres dos adaís, que de
simples guias de tropas, que ao principio significa-
vam, ou caudilhos da peoada ou da gente de ca-
* Requerimento de Joio Froes de Brito, Torre do Tombo, maço
108, n.o 18.
2 Mendoza . G. de Granada, cit. por D. J. Almirante. Dicc. Mi-
litar.
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125
vallo, passaram a indicar o cliefe de uma qualquer
partida de gente, ou mais particularmente um offi-
cial com algum dos cargos que hoje pertencem aos
officiaes do estado maior. Adail-mor n'e8te parti-
cular corresponderia ao posterior mestre de campo
general. Veremos adiante a importância d^aquelles
cargos na milicia dos primeiros séculos da nossa
monarchia.
OhsLmsLY^-Be Abrwcadem^f democaddem, guia da Aimocadem.
vanguarda, o que ia na frente; n'um sentido mais
particular era o que commandava, dirigia, guiava
os almogavares, tropas ligeiras encarregadas de ex-
plorar e abrir caminhos para a marcha das tropas,
e de realisar incursões no pais inimigo'. D'ellas
nos occuparemos no seu logar. Parece que mesmo
entre os árabes se generalisou o nome a diversas
categorias ^.
Era propriamente o caudilho das peoadas, se-
gundo se infere da lei das Sete Partidas *, sendo
evidente que os christãos adoptassem o titulo dos
árabes.
í^ernao Lopes cita os nomes de dois almocadens
na sua narrativa das guerras de D. João I: Affonso
Garcia e Aflfonso Alvares ^. Generalisando-se o ti-
tulo até para os que conduziam ou governavam bar-
cos, ficou subsistindo, e ainda hoje subsiste na nossa
índia, entre os portuguezes, o nome de mocadao ^.
' Gayangos. Almacari, tomo i, cap. viii, e Conde, vol. i, pag. 501.
2 •Chciks do Sahará e de Barca, walis d*Andalús, Kayides e al-
inocadeDs do exercito dos crentes... sois cobardes e desleaes.» A.
Herculano. Eurico, xv.
^ Fr. Pedro de Alcalá. Vocahdiata arábigo, cit. no Dicc. de scien.
milit, tomo I.
4 «Aimocadem llamam agora a los que antiguamcnte solian lia-
mar cabdicUos de las peonadas». SeU Partidas, leis 5 e 6, tit. xxii
da 2.»
* F. Lopes. Chr, d^El-Rei D. João J, cap. cui.
^ «O cargo de Mocadâo mor dos marinheiros Canarins, prouido
pclloB Vizorreys, ttm de ordenado 539 x.*» seruindo bem, E fielmente;
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^
126
Desappareceu o almocadem na milícia do reino, e
mais tarde o de adail, na nossa Africa. Diogo
Correia era o nome de um alirwcadem de Ceuta
em 1559 ^; de muitos outros resam os documentos.
Desde os tempos do Propheta, segundo informa
Bemazil, existiam os postes de naquihesy arifes * e
arraesj como intermediários entre as tropas e o
commandante superior, cujas ordens iam dos emi-
res aos alcaidesy dos alcaides aos naquiheSy d'e8te8
aos arifesj dos arifes aos nadires, e d'este8 ás suas
tropas.
Está nisto indicada a escala hierarchica.
Alcaide Alcaide, pelo que se deduz da passagem de Be-
mazil, começou por ser uma dignidade superior
militar, caudilho de uma unidade grande do exer-
cito ou governador das armas de uma cidade da
província.
No tempo dos omáiadas em Hespanha tinha
qualquer d'essas duas funcções : ora de jurisdicçao
territorial, com attribuiçoes administrativas e jurí-
dicas, ora do commando de um exercito, sendo
esse importante posto dado apenas a umas dez ou
quinze pessoas, ao todo; mais tarde, com o fraccio-
namento em muitos reinos, multiplicaram-se os al-
caides, que em alguns pontos chegaram a reunir,
como em Toledo, Sevilha, Valência, etc, a chefa-
tura militar, politica e judicial, sendo como que
verdadeiros reis '.
ÃUaid» aiquair. Simonct falia mesmo no alcaide alquibir, como
£ Dao o fazendo assy lhe importará mais de mil cada anno. O cargo
de Roboam, que he Mocadâo mor dos Arábios, tem de ordenado
16. 320 rs. por anno, que é soldo, mantimento de bn homem do
mar». Lista de iodas as tuipitanias, cargas que ha na Indic^ E 9ua
estimação, e rendimento pouco mais ou menos. — Ms. pablicado pelo
sr. Martinho da Fonseca. 1901.
1 Conde da Ericeira. Portugal Restaurado^ parte ii, liv. iv.
2 Arraez queria dizer genericamente chefe, correspondente a
cabo, cabeça. — Almirante. Op. cit., voe. Arraez.
3 Bibera Taragó. Orig, dei Justieia, pag. 79.
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127
sendo entre os árabes o «generalissimo dos exérci-
tos*». Na accepçilo de commando passou em Por-
tugal, como nos reinos de Hespanha, a ser chamado
alcaide o governador de um castello; descendo a
funcção a pouco e pouco em categoria, ao ponto
de significar apenas guarda; n'este caso estava o
alcaide do cárcere publico, ou o alcaide dos domeis
que dirigia, educava, capitaneava, guardava os
donzeis, ou pagens, filhos da gente nobre, que nos
psçoa reaes eram creados e instruídos no sentido
da guerra'. Outros cargos houve entre nós, como
veremos em occasião opportuna, em que a palavra
alcaide foi adoptada para significar o individuo
encarregado de uma determinada direcção ou su-
perintendencia. Mais particularmente, porém, pas-
sou a significar o commandante de uma praça, o
governador de uma cidade, villa fortificada, ou
província. N'este ultimo sentido ainda hoje existe
QO vizinho reino.
Chamava-se na península xorta á guarda de se-xona.
gurança e policia, policia judiciaria propriamente,
de uma cidade ; d'alii o nome de saheb axorta officio
creado pelos Abácidas, e que tomou grande impor-
tância entre os Omáiadas de Hespanha, e também
o de saheb almedina^ como se chamou na Andalu-
zia ao chefe d'essa guarda, e depois ao governador
da cidade *; d'ahi o no&so zavalmedinaoxxzalmedina, zaimedin*.
^' Simonet. Leyend, arab,, pag. 59, cit de Almirante. Dice. milit.
voe. Alcaide,
' . . . «sendo já alguns feridos e mortos, entre os qaaes morreu
o alcaide dos donzeis». — F. Lopes. Chr, d^ El- Rei D. João I, cap. cxiv.
' Zahbalmedina ou Zahbaleil.
* £m cada capital e corte de omáiadas hespanhoes, no tempo
do califado, havia um alto dignitário do império que os chronistas
nos apresentam com o aparato e pompa de um rei, rodeado de altas
personagens, dando audiência ás portas do palácio do Califa, juiz e
alto inspector da policia, a um tempo. No principio o Zaímedina
christão foi mais parecido com o dos mouros ; logo adquiriu jurisdic-
ção civil, reunida á jurisdieção criminal primitiva, por ter voltado á
auctoridade real o cargo de intervir nos pleitos particulares, d'an-
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128
empregado pelos christãos no mesmo sentido * e si-
gnificando um alto cargo, a um tempo politico e
jurídico, encontrando-se traduzido nos documentos
do baixo latim por vice domimis civitatis e cúria.
Nao só em Portugal, mas nos outros reinos chris-
tãos da peninsula continua existindo este cargo*.
8abebazoria. O soJich axovta cstava dcbaixo da direcção im-
mediata do chefe do exercito c senhor da espada»;
entre os Abácidas julgava os crimes e applicava-lhes
a devida pena; era cargo de uma alta consideração,
e só se investia n'elle grandes cheles militares,
homens de confiança absoluta do sultão; a sua au-
ctoridade, porém, não se estendia ás classes mais
elevadas.
Informa Bem Caldum que no império dos
Omáiadas hespanhoes este cargo adquiriu uma
alta importância e constituiu duas administrações
distinctas: a grande xorta e a pequena xorta\ a
primeira tinha auctoridade sobre todas as classes
e pessoas, a segunda só a tinha sobre o povo.
O cefe da primeira estacionava á entrada do pa-
lácio imperial, rodeado de satélites que perma-
neciam sentados e só se levantavam para cumprir
as ordens que d^elle recebiam '.
tcB entregues á amigável composição entre os visinhos. Ribera Tar-
ragó. Orig, dd Justicia. — Santa Rosa de Viterbo, pag. G2 e 65, diz
que Zavalmedina era o pretor da cidade, a quem pertencia, por
commissao do Príncipe ou Rico bomem, todo o governo politico.
Elucidário, voe. Zavalmedina.
* Elueid. de Viterbo. — Zavalmedina.
2 Curta eive malmedinatuz judex, vulgo alcaUe, — encontra-se
nos documentos da epocha.
3 aNo império dos omáiadas bespanboes, este cargo adquiria
uma alta importância, e formou duas administrações distinctas : a
erfináe xorta e a pequena xorta, A auctoridade da primeira esten-
aia-se igualmente sobre os grandes e pequenos : o que a exercia ti-
nha o poder de castigar mesmo os funccionarios públicos que oppri-
miam o povo, como também os pães e pessoas que os protegifun.
A pequena xorta só tinha auctoridade sobre a populaça. O chefe
da grande xorla tinha a sua sede á porta do palácio imperial, com
muitos satélites ao lado, assentados, e que não deixavam os seus
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129
Quanto aos outros postos, ouçamos o que Este-
vanez Calderon, reproduziu de Bemazil :
cO emir compunha as suas tropas de modo tal
que, formando um todo completo e compacto, se
dividisse em partes que podeósem dirigir-se e ma-
nejar-se facilmente. Cada oito soldados eram in-Nadir.
cumbidos a um cabo chamado nadir, condecorado
com uma insignia chamada icda; por cabo ou chefe
de cada cinco d'e8tes nadires punliam um arife,
que levava por distinctivo uma bandeira ou hande.
Cada cinco arifes obedeciam ás ordens de um 72a-Arife.
quibe, que levava por distinctivo uma signa cha-
mada Uva. Cinco d'estes obedeciam a um alcaide Kt^uih^.
que, em signal da sua dignidade, levava um guião
ou alamey e finalmente cada cinco alcaides rece-
biam as ordens de um emwy cujo signal de distinc-
ção era um pendão ou estandarte, raça, se a gran-
deza do exercito o permittia. Conforme a maior
ou menor importância das expedições assim eram
diversos os cargos para ella designados * > .
D'outra passagem do mesmo tratadista árabe se Hierarcbia.
deduz que o emir exigia do naquihe e do arife a
maior vigilância na boa ordem e disciplina da res-
pectiva unidade, convocando-a quando fosse neces-
sário e transmittindo-lhe as ordens superiores;
c assim se ganhava muita rapidez nas operações
militares e se exercia inspecção no soldado, que
por essa forma se não descuidava em ter sempre
em bom estado os seus apetrechos e munições^».
Esta cadeia hierarchica fora já estabelecida no
tempo do Propheta pelas necessidades creadas pelo
postos eenSo para execatar as suas ordens. Como as fancções doeste
cargo deviam ser exercidas por um dos grandes do império, passa-
ram para as attribuiçoes do vizir ou do hagebe (camarista mor). —
Ibn Kaldum. Prologomhnes, parte 2.*
^ ^ Est. Calderon. De la milicia de los árabes. — Rev, Mil. de Ma-
drid, tomo VIII.
* Idem.
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130
augmento considerável dos exércitos, aos quaes elle
tinha de transmittir as suas ordens. Essas ordens,
como vimos, dava-as aos emires, estes as transmit-
tiam aos alcaides, estes áos naquihes, estes aos
arifeSy estes aos nadiresy e estes finalmente aos sol-
dados*.
AiferoB. A palavra alferes, que na Reconquista passou a
indicar entre christaos um alto posto no exercito,
sendo o alferes-mór a primeira dignidade depois
do rei, entre os árabes queria apenas dizer caval-
leiro. Em Castella e Aragão alferez se chamou ao
que levava o pendão da unidade, e só mais tarde,
em Aragão, se passou a chamar-lhe senyaler de
origem castelhana, como se vê em diversos fo-
raes^.
Funcções ou cargos, até certo ponto militares,
que, existindo entre os árabes, passaram a ser nos-
sos, até com os mesmos nomes, são também as de
Aifaqnoquo. olfaqueque, encarregado de resgatar os captivos,
Aivazii. escravos, ou prisioneiros de guerra^, e alvazil, espé-
cie de juiz fiscal da corte entre os musulmanos de
Hespanha*, como depois entre os christaos'; os
alvazis tinham começado por ser entre os árabes
da Ásia verdadeiros potentados, vizires ou ministros,
que chegavam a absorver o poder dos monarchas ^
Todos estes cargos passaram a ser adoptados
pelos reinos christaos. RiberaTarragó, referindo-se
ao destino que elles ahi tiveram através dos tem-
pos, escreve:
tO alferes morreu hontem, o alcaide agonisa e
^ E. Cilderon. Dt la milicia de los arahea. — Bev. MU. de Ma-
drid, torno Yiii.
* Ribéra Tarragó. Oríg. dd Judicia, pag. 67.
' Partida 2.% tit. 30, e Código Alfons., liv. v/tit. 49.
^ Lafuente. Hist dt En>., tomo iy, pag. 120.
^ Coram aluaxilibus ueljudieibuê. PorL Món. Leges., pag. 192.
• Ribéra Tarragó. Orig. dei JutUcia, pag. 67.
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131
se perderá amanhã * ; o alcaide, e o aguazi! permane-
cem ainda com signaes de uma longa vida; porém,
todos elles, como cantos rolados que a torrente dos
séculos vae arrastando, permanecem no leito dos
rios ; uns nas margens, limados pelo atricto, outros
no fundo, acrescidos pelo contacto ; e hoje o obser-
vador superficial mal se apercebe da relação de
identidade que existe entre o abandonado seixo da
margem e os elevados penhascos da cumiada, de
onde as commoçoes da tempestade o empurraram
para o valle».
E accrescenta n'outra passagem :
«A coincidência dos termos aguazil e almogá-
var ainda se podia duvidar se obedecia á casuali-
dade ou ao capricho da sorte ; mas que appareçam
na organisação do reino (de Ai-agão) o alcaide, o
alferes, o adail, o almogávar, o almoxarife, o zal<
medina, o mustaçafe, o alvazil e o almotalefe, e
em Castella, sujeitos a igual género de influencia,
alem de todos estes, o zabazoque e o almocadem,
cora os mesmos nomes e idênticas attribuições, prova
é tão cabal do contrario que deve ser acceite por
todos que tenham uso de rasão*».
De todo o serviço militar o mais nobre era o
da fronteira, onde a presença do inimigo, os cons-
tantes sobresaltos ou as repetidas incursões no
seu território o tornavam um encargo pesado,
Quasi que era necessário renimciar a toda outra
occupaçào, e assim se converteu n'uma espécie
de apostolado militar, dando origem aos morabi-
tas. A religião da fé dava as mãos á religião das
armas.
Ha mesmo quem faça derivar d'ahi a origem
^ Km Portugal deu-se o contrario; existe ainda o alferes^ dcB-
appareceu o alcaide.
2 Ribera Tarragó. Ori^. dei Jnsticia, pag. 189 e 359.
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132
das ordens militares christâs, que tiveram também
de preferencia a guarda da fronteira. Eram os ra-
hitas uma espécie de conventos-quai*teis estabeleci-
dos na fronteira ou nas costas para combater os
infiéis, e ali ganhavam a vida futura homens vota-
dos á religião e ás armas, contra aá algaras dos
almogávares e campeadores christSos^ A nossa
Arrábida traz d'ahi a origem, como Rebat, em Mar-
rocos, de um rabita que ali se fundou contra os
attaques dos christaos. D'ahi o nome de almorávi-
da, isto é, o que habita a rábita, em francez mara-
hout. Lafuente, informa que o Califa de Córdova,
Hixeme UI, em 1026, c fomentou muito a institui-
ção das rabitas, núcleo sagrado dos musulmanos,
dedicados voluntariamente ao serviço das armas
e a defender constantemente a fronteira contra os
almogávares christaos, origem, segundo muitos
crêem, das ordens militares christâs^».
Eábata, significava entre os musulmanos pro-
priamente a vida sobresaltada das fronteii'a8, vida
cheia de perigos, vivida sobre as armas, e consa-
grada exclusivamente á defeza do pais.
Baseado na opiniSío de Máleque, que reputa ser o
mais auctorisado commentarista árabe, diz Esteba-
nez Calderon que as seguintes cousas eram indis-
pensáveis para entrar em rábata: — vocação deci-
dida, provisões, armas, cavallos e ai>etrechos, e
postos fortificados ^ «Um dia de rábata, àh o Al-
corão, vale njais no caminho de Deus do que todo
o mundo e quanto n'elle existe».
As tropas e chefes destinados á defeza das frontei-
ras eram dos mais aptos e escolhidos, concedendo-
* Almirante. Dic. MiL, voe. Táctica.
2 Lafuente. Hist. de Esp., torno iv, pag. 12().
3 Est. Calderon. De la milícia de Ioh árabes.
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se-lhes regalias especiaes. Na permanente lucta en-
tre os povos vizinhos e contrários, as fronteiras
oscillavam constantemente, no periodo violento da
Reconquista. De modo que, tse o christão dava
rebate sobre um determinado logar, ali era a fron-
teira durante 70 annos; se repetiam o rebate, pas-
sava a ser fronteira durante 120 annos; se os reba-
tes excediam esse numero ficava, sendo fronteira
para sempre, até ao dia de juizo» ; tal era a opinião
de Sofiane; e Zafar, baseado na opinião de Abul-
cáceme e outros tradicionistas árabes, diz que deve
entender-se por fronteira o que t para traz só tem
gente de paz e musulmanos « •
Quando tratámos dos imlísy vimos quaes os re-
quisitos exigidos nos que eram encarregados da
defeza das fronteiras. Alem do que ficou dito, cum-
pría-lhes attender a tudo que respeitava a abaste-
cimentos e aprestos, cavallos e bagagens para a
guerra, cuidar dos pontos fortificados, do estipen-
dio aos adaís e exploradores, reforçar com gente
nova as fileiras, adestrar o soldado no manejo das
armas e nos exercicios a cavallo, etc. A justiça alli
tinha de ser mais austera e mais escioipulosa ; as
tropas dispunham de alojamentos próprios, e, de
espaço a espaço, havia na fronteira adaís, ou che-
fes de confiança, todos mussulmanos, que se ser-
viam de infiéis, isto é, de pessoas de differente re-
ligião, taes como christãos e judeus, para o mister
de espiões; d'este deshonroso officio eram escru-
pulosamente excluidos os musulmanos. Taes são
as informações de Bemazil ^
E era na peninsula ibérica, no Andaluz, que esse no Andaiaz.
serviço do rábatd assumia maior importância^ na-
turalmente na epocha da Reconquista, porque se
vivia em perenne guerra, e segundo uma tradição
* Est. Calderon. De la mlicia de los árabes, pag. 283 a 285.
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antiga t o melhor rábata sobre a face da terra era
no Andaluz, onde o inimigo estava ao nascente,
ao poente, ao norte e ao sul; por isso, alli, um dia
de peleja e de rábata era mais enaltecido 'e mais
meritório do que dois annos em qualquer outra
fronteira *».
o cavaiio. O cavallo foi scmprc para o árabe um objecto
de maior cuidado e estimação; prescrevendo que o
paraiso estava reservado a quem bem tratasse o
cavallo, o Propheta preparou o advento e a propa-
gação do melhor cavallo de guerra do mundo, foros
que ainda hoje conserva.
Para crear o cavallo. Deus disse ao vento: —
«Vou fazer sair do teu ventre um ser vivo; con-
densa-te!i D'ahi, o chamarem os árabes ao cavallo
uma cave sem azas».
Na sua maneira peculiar de combater, as condi-
ções essenciaes do cavallo eram a ligeireza e a velo-
cidade.
O Alcorão qualifica o cavallo «o bem por excel-
lencia», o que levou os commentadores das Siiras
a concluir que um árabe « ama o cavallo como uma
parte do seu próprio coração e sacrifica, para o
manter, até o alimento dos seus filhos ••
Ao cuidado e carinho pelo cavallo, juntava-se
uma educação muito especial, constituindo-o, se
pôde dizer, na principal arma de guerra,
o pefto. Comquanto os árabes tivessem em grande esti-
mação a cavallaria, numerosa e forte era nos seus
exércitos a infanteria, havendo mesmo epochas
em que lhes mereceu uma grande consideração.
2 Est. Calderon. De la milicia de las árabes.
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Era o alimogávaf o soldado de infanteria por
excellencia, e continuou a sel-o entre os christãos
da Keconquista.
Foi a partir de Amer, na sua expedição ao
Egypto, que a cavallaria tomou uma organisação
a vfder, á imitação dos gregos, em cujos livros,
mandados traduzir expressamente, se colhiam,
para serem convenientemente adoptados, os me-
lhores preceitos da milicia.
A não ser na fronteira, onde se vivia com as Tropas.
armas na mão, finda a guerra, as tropas recolhiam
aos seus trabalhos ruraes ou officios livres, ficando
apenas em exercicio o núcleo de soldados pagos
que representavam o effectivo na paz, alem da
guarda do corpo do Califa, que houve tempo foi
de 600 homens. Para sustentáculo dos califas e
dos principaes chefes também se organisaram tro-
pas com escravos armados, como no tempo dos
Fatimitas e Aiubitas, e com mercenários contra
tados no estrangeiro, como succedeu na época dos
Omáiadas e Abácidas, tendo estes sido a segurança
e salvação d'aquellas auctoridades, pelo que tive-
ram o nome pomposo de sustentáculos dos Califas.
Almotácem-Bem-Raxide constituia a sua guarda
com mancebos apenas na puberdade, tirados das
populações subjugadas; e taes foram os privilégios
que lhes concedeu que perturbações graves se
produziram.
Isto informa um escriptor militar hespanhol que
diz basear-se n'um manuscripto árabe, inédito, o
qual promettia publicar traduzido: não sabemos
se chegou a cumprir a promessa*.
Segundo esse códice árabe foi Amer Benalcre- ®'*^^**-
tabe quem primeiro arrolou os nomes dos seus
soldados, pagando-lhes um soldo. Aos chefes das
1 Coronel Perez de Castro. Estttdioa Militares, etc., Madrid, 1872.
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136
Aride.
grandes unidades e governadores de praça pagava-
Ihes 7:000 dirliemes, tendo-os o califa Otmane ele-
vado a 10:000.
Quando as necessidades do thesouro obrigaram
ou a diminuir os soldos, ou a deixar de os pagar
uns mezes, como no tempo dos Abá-
cidas, deram-se motins e revoltas;
assim succedeu a Álmotácem, por ter
cortado ao exercito três mezes de ven-
cimento no anno, e a Amine por o ter
licenceado. Os soldos eram recebidos
diariamente ou aos mezes, na presença
dos califas e dos emires. Dava-se ás
tropas uma gratificação especial
quando iam em expedição a teiTas
inimigas, ou por occasião do advento
de um novo califa; jdus se chamava
Pig.i-Aifange essa gratificação.
AHcle era o titulo do empregado de fazenda en-
carregado de verificar o numero de individues que
compunham o exercito, porque succedia muitas
vezes que os emires apresentavam relações con-
tendo um numero superior ao effectivo real *.
Armamento.
O armamento principal consistia, para as armas
offensivas, na espada ou sabre, na maça, na lança,
no punhal recurvo ou gomia^ na almarada, na aza-
gaia^ e no tarasebte, armas de arremesso ; no arco
e flecha, com o respectivo carcaz, e nos instru-
mentos polyorceticos, nos quaes tinham grande
applicação as substancias incendiarias.
1 Perez de Castro. Eatudioa MilUares, pag. 57 e 58.
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137
Darante o domínio dos musulmanos na península
armamento d'este8 padeceu varias modificações,
dando-se mesmo o facto de muitas armas e processos
de guerra dos christàos terem sido adoptados pelos .
árabes^ ao passo que d'estes adoptávamos também
muitos, no sentido do aligeiramento e das manobras
mais rápidas.
Descrevendo a batalha de Guadalete, dá Alma- Em Guadaiote.
cari noticia das armas que então usavam os in-
vasores :
«Chegou o rei Rodrigo, trazido sobre um throno,
e tendo ])or sobre a cabeça um docel
de variadas cores que o resguardava
do sol; vinha rodeado de guerreiros,
cingidos em aço brilhante, com pen-
dões ao vento, e grande profusão de
bandeiras e estandartes. Os homens
de Tarique estavam apparelhados de
modo differente : tinham os peitos co-
bertos de amezes de malha, traziam
turbantes brancos na cabeça, os arcos
pendentes nas costas, as espadas sus-
pensas dos cinturões e longas lanças,
seguras na mão com firmeza * • . *'**»• * - cimiurr»
De diversas fontes colhemos noticias mais com-
pletas sobre o armamento dos árabes.
Entre as espadas tinha o nome de alfange (fig, 1) Aifaaaro.
unia espada de folha larga, curta, curva e de um
só gume, e o de cimitarra (fig. 2)* a que tinha a
folha também larga, que mais alargava na ponta,
e era curva também ; o yatagan, de que temos um
* Gayangos. Almacari, tomo i, liv. iv.
2 Cesó el moro v muy gallardo
Miro á to ias las caras,
Y con soberbio desnuedo
Empuuó Ia cimitarra,
KOMANCEUO GUKEBAL.
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138
exemplar curioso na estampa i, são armas ainda
em uso entre os orientaes.
£ipad«8. As espadas eram também rectas, e usadas com
bainha (fig, 3) ou sem ella, suspensas de um cin-
turão, hendy ou de um cordão de seda
que passava sobre o hombro em forma
de bandoleira.
Vimos já que os nomes das espadas
vinham da sua proveniência, como a es-
pada iamaní (do lamen), indica (da ín-
dia), damasquina (de Damasco), egypcia,
franca ou earopéa; tiravam-o também da
sua forma, e da sua nitidez, provindo
doesta ultima rasão a chamada espada
branca, de onde talvez a nossa denomi-
nação de arma branca.
rig. 8-Eipad» Qu® 9- espada indiana era muito esti-
com bainha mada, dcduz-sc do que no seu poema,
consagrado a Texufin, filho do califa Ali-bem-Iúçufe,
diz o poeta peninsular do século xu, Abu Becre
Acirafe: «Pega n*uma espada indiana de lamina
delgada; é mais cortante, e melhor penetra nas
couraças • .
Eigríma. Vimos também como os tratados de guerra
mostram o cuidado especial que se votava á es-
grima da lança, a pé e a cavallo.
Ao punho da espada chamavam arriásy de onde
o nosso antigo arrial ou arriei, com a mesma signi-
ficação*.
A habilidade no jogo do alfange ia ao extremo de,
com a ponta d^elle, cortarem o atilho de um sacco,
cheio de areia, sem ferirem o sacco^.
Lanças. A lauça tíuha o ferro com formas diversissimas,
e era mais leve que a dos christãos, em consequen-
* Almirante. Dic, MilU., voe. Arrial e Arriaz.
2 Perez de Castro. Estadias MUit, pag. 65.
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k:
^
^
"^
IMaittpftl
I«tefu BodOTBo, ms d« Hégira — (Da ooltoeçio do Dr. Telzali» <U Ar«cio)
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139
cia do caracter ligeiro da sua cavallaria. Esta
usava no ferro da lança uma bandeirola (fig. 4)
ou um pequeno penacho de crinas de
varias cores. Dos botes e guardas espe-
ciaes de que se serviam na esgrima da
lança, vimos já referidos alguns no tra-
tado militar esQprialense de que atrás
demos noticia.
A lança era também arremessada
para incendiar (fig. 5), tendo presa no
ferro uma capsula de nafta (fig. 6).
A gomía, ou adaga mourisca, tinha
a folha um tanto curva, larga, com
dois gumes e o punho sem guardas
Almarada se chamava a um pequeno
punhal agudo, de secção triangular e
com corte, ao qual alguns, diz Santa
Rosa de Viterbo, chamavam tfaca de
fouce», por ser torta para dentro *.
A azagaia era o nome mouro de uma
pequena lança (fig. 8) (pilo, dardo, ve-
nábulo, azcuna, lhe chamaram em di- Fig4-Lanç*com
versas epochas e entre os diversos po- ^andeirou
vos que estiveram entre nós). Era arremeçada á mão
e com tal effeito que La Crónica de Alf. XI falia de
um mouro Alicazar que deu no adversário com uma
azagaia t et dióle por los pechos et pasóle un lori-
gon e un gambaj que traia, e saliole el fierro a las
espaldas». A forma dos seus ferros também variava.
De todas as armas de haste era a mais comprida e
leve, tendo algumas quatro metros de comprido*.
Qomia.
Almarada.
Aaagaia.
* Viterbo. Elucidário, voe. Âgomia.
2 D. Mariano Rubió j Bellvé. Dicc, de ciências fnilitaret, tomo i,
voe. Azagaya.
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140
Gosgas.
Taraiebtc.
Arco.
Settaa.
Segundo Florian de Campo, gorguz chamavam os
mouros á azagaya, o que é confirmado pela asser-
ção de outros escriptores *.
Tarasebte era o nome de uma outra
lança, também de arremessar.
O arco de mão para despedir flechas,
quebade (fig. 9), era feito de três peças li-
gadas com tendões de animaes e n'uma só
curva. Usava-se também para isso o bam-
bu, a madeira e uma gomma especial elás-
tica, formada de resina extrahida por meio
de incisões feitas na arvore chamada neba^ e
misturada com vinagre de Syria, raspa de
veado, o que tudo constituía uma massa
que, envolta em tendões de animaes, ficava
com uma consistência superior á da ma-
deira. As cordas d'este arco eram de seda,
algodão, tiras de pelle ou tripa.
Segundo o testemunho de Al m acari,
• primitivamente o ligeiro arco usado pe-
los árabes e que elles chamavam cauçala-
'incendiar" ;»rt6; difcria da bésta dos christãos*».
A bésta, porém, foi por elles adoptada.
O árabe, alem de excellente cavalleiro, era um
arqueiro de primeira ordem e como tal recratado
até nos exércitos christãos ^.
A flecha ou setta, ceáine ou 7iivél (fig, 10), era pri-
meiramente de canna, bambiS, ou madeira, e depois
Fig. 5
Lança para
1 Florian de Campo. Crónica^ liv. iv . — Mendoza. G. de Granada^
pag. 82.
2 «The liffht bow formerly used by tke arabs, and wich they
called kau9u-P'arahj was diffeVent from the cros-bow of the Chris-
tians.» P. Gayangos. Hist. of the Mah, Dyn.^ tomo i, liv. iv, pag. 5.
3 Em toda a Feninsula christã, tanto nos reinos de Aragão e
Castella, como no de Portagal, os mouros se empregaram nao só
como cavalleiros, em que eram dextros, mas como arqueiros peões,
exímios na certeza do tiro, ou armados de lança, espada e rodela.
Vid. Estebanez Calderon. De los sold, almogavares. JLa aevista Militar ,
tomo IV.
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141
de ferro, e havia-as de diversas espécies ; a persa,
de madeira, chamada nexabe, a seni barbas, a dos
dentes de serpente; a que ia presa a um cordel para
a rehaverem; a que levava presa no
ferro um escripto com uma ordem,
aviso, ou um objecto qualquer, como
signal; a incendiaria que podia ser
ou simples, levando apenas presa ao
ferro a nafta em tubos ou capsulas rig.s
1 • /• 1, 1 1 • Capsnlit de nafta
de coiro ou feltro, ou a chamada je-
rida, muito maior, lançada por meio da besta, e
que, alem do fogo grecisco, levava preso no ferro
um cartucho de couro, ou de cana, como nos fo-
guetes, ao qual, antes de partir, se lançava fogo
por meio de uma mecha, e que a meio caminho,
incendiando-se, dava impulso ao projéctil, sup-
prindo a força que lhe ia faltando do impulso
inicial ^
A verdadeira flecha era uma arma muito leve ^ oHroãa%
bem direita, que se disparava com estrema
facilidade e acertava a grandes distancias,
ao contrario do quadrello da besta, de car-
regamento lento e de pequeno alcance, com-
quanto muito penetrante e solido. O tiro do
arco era curvo, em parábola, para cair so-
bre o inimigo, evitando o escudo, ou obliquo,
para ir ferir o peito ou o ventre dos cavai-
los. E por tal fóima se repetia que os chro-
nistas o comparavam a nuvens de moscas, ^ ^
ao graniso, á chuva que obumbrava o céu «o"»ia
antes de cair sobre a teiTa, «frechadas de arcos
torquies que eram tam espesas que tolhiam o sol '» •
Havia arqueiros não só a pé, mas a cavallo, como, AniaeirM.
por exemplo, o corpo que na batalha de Elvira
1 Almirante. Dicc. MUU., voe. Aljava.
2 Fort, Monumenta. — Eêcríp., pag. 186
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142
Aljava.
Carcas.
Ornamentes.
Besta.
Armas defcnii-
vas.
Casco.
oppoz Bensaíde a outro da cavallaria christa*; e
de besteiros árabes se serviram como auxiliai-es
D. Jayme de Aragão, na conquista de Valência, e
D. Pedro III de Castella *, e nós, em muitos lances.
As flechas iam dentro de uma aljava (fig. 11),
bolsa de madeira ou coiro, com os respectivos ca-
chuchos ou cânulos onde se mettia a flecha.
Ha quem attribua origem árabe ou persa á pala-
vra cavcaz, que era também onde se leva-
vam as flechas ^.
Estabeleciam-se prémios aos que melhor
atirassem ao arco.
Nas armas, principalmente nas espadas,
punhaes, escudos e capacetes, punham ás
vezes um grande esmero de ornamentação,
, com incrustações de ouro e prata, engastes
Éh em pedras preciosas, etc, havendo na pe-
^m ninsula fabricas de armas tao perfeitas no
H trabalho como as de Damasco, de onde vem a
I palavra damasguinadas. Taes eram as fabri-
cas de Toledo, Murcia, Córdova e Saragoça.
Também usaram a bésfa^ mais leve que
a dos christãos, (fig. 1 2).
Das armas próprias para ataque e defeza
de fortalezas, fallaremos quando tratarmos
da fortificação entre os árabes.
As armas defensivas eram o mon'iao, o
magfavy a loriga, o arnez, a zardia, a alga-
lota, a darca ou escudo, o hohite, etc.
O capacete ou morrião tinha diversas fór-
^"*^**' mas, (fig. 13, 14, 15 e 16 e estampa n),
havendo-os de metal, ricamente encrustados ou cra-
vejados de pedraria, como o de Boabdil, por exem-
Flg. 8
* Gayangos. Almccavi, tomo ii, liv. viii, cap. v.
2 Bibera y Tarragó. Él Orig. da Jusíida, pag. 9.
' Rubió y Bellvé. Díc. de cien. mi/., voe. Cracax.
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BaUmpan
OapAMte ârabt ^ (Dm ooUmçIo de Soa MiOMtftd* El-Rel)
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143
pio, que a Hespanha ainda lioje conserva; geral-
mente, porém, tinha a forma semi-esplierica ou
cónica, tendo por cimeira uma ponta aguda. Era
dourado o casco do rei de Granada na batalha do
Salado *.
Havia-os de coiro de búfalo ou de boi, e de ferrp,
sendo em volta d'elles que se enrolava o turbante;
alguns tinham, para resguardar a nuca, o pescoço,
e os hombros, uma rede de malha pendente,
O mojTião^ segundo opiniões auctorisa- ^ worriao.
das, é de orgem oriental ou africana, e foi
muito usado pelos árabes ^.
O turbante não era do uso de todos os ^\ Turbante.
musulmanos, e, na peninsula houve tribus
que o traziam como distinctivo de honra-
ria, e outras nSo; assim, conta Bensaíde,
que o turbante era usado n^umas provin-
cias e n'outras não, e segundo a posição
social dos individues; mesmo na Andalu-
zia, onde faziam differença da Ásia em
certos pontos, e em Valência e Murcia,
andavam de cabeça descoberta, mesmo as
pessoas de consideração, e tanto os solda-
dos como os ofíiciaes, emquanto que em
Córdova e Sevilha todos usavam turbante.
Segundo Dozy as tropas não traziam tur-
bantes em Hespanha ^.
N'aquellas provincias era uzo o cabello curto e
barretes de lã, até nos próprios ulemas e cadis, an-
dando todos de aljuba ou taildsan; as pessoas gra-
PlfiT. 9
Qaebade
(areo)
* Llegó coutra el Salado
El rrey moro de Granada,
Bu bacínete dorado,
£n Ia mano su espada.
Poema de Alfonbo Onceno.
2 Almirante. Dicc, MiL, voe. Morrion.
5 D027. Dict, dt8 vét. des arab.
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144
Zardia.
Almafro.
das enfiavam o capuz na cabeça* O oraxe ou tela
do turbante era de simples tecido de linho ou al-
godão, ou de tecidos de ouro e prata.
O turbante era raramente usado pelos árabes no
exercito, na Peninsula, segundo se pôde
deduzir da seguinte passagem árabe ci-
tada por Dozy : «Em seguida, tendo ten-
ção de fazer guerra aos infiéis, Hixame
lhe ordenou que elle, e todo o exercito,
usasse o turbante. Assim o fez, e o exer-
cito saiu de cidade levando turbantes;
era um espectáculo infame, por ser con-
trario ao uzo*».
ceámê^ôtt^BiTei Como arma defensiva da cabeça havia
^"^^*^ ainda o magfar (fig. 17), de onde derivou
o nosso ahnofavy espécie de coifa de malha que
cingia a cabeça toda, deixando apenas descoberto
o rosto. Sobre o magfar se coUocava o casco, e
comquanto fosse ás vezes uma peça in-
dependente encarregada de guardar a
cabeça e os hombros, fazia, em geral,
parte da Zardia.
Zardia (fig. 18) se chamava uma
espécie de camisa de tecido de malha
de ferro, até aos joelhos, com mangas
até ao punho*.
Fig. 11 -Aljava rp^^ ^^^^ ^ aspccto dc scr de origem
árabe o almafre dos nossos antigos, destinado a
proteger a cabeça, o que na nossa opinião é o mes-
mo que almofar, e até modificação d'esta mesma
palavra. Santa Rosa de Viterbo chama-lhe errada-
mente morrião, elmo, capacete de aço ou de ferro, o
que não pôde deduzir da própria citação da chro-
1 Nowairi. EisU de Esp, cit. de Dozy. Dic. de$ noms des vet. deê
árabes, pag. 306.
» Perez de Castro. Ob. cU., pag. 68.
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145
Jornaa.
Alpatraz.
uica de D. Pedro I que apresenta, e onde se diz,
«loriga com seu almafre * * .
Joniua se chamava a cota de
malha brunida*; dahi proveiu, já
modificada no sentido, a nossa
jornea.
Era de origem árabe também
o alpartaZy espécie de coUete de
malha até á cintura que se usava
por baixo do arnez ; foi adoptado
pelos cbristãos ^. Para nao moles-
tar o corpo vestiam a loriga ou
couraça sobre o behnez * almofa-
dado, chamado também Rambaz
ou Rambah, de onde proveiu o
nosso Gambax ou Gainbazj que era uma espécie
de perpwnto.
No Oriente Cazaghend se chamava ao gambaz, caraghend.
dando na Europa origem ao gazigan que signifi-
cava idêntica peça de vestuário guer-
reiro; era também usado sobre a cota
de malha ou zardia, que ali tinha o
nome de ielba *.
O poeta árabe do século xn, natu-
ral de Hespanha, Abu Becre Açarafi,
atrás referido, deixou-nos o nome de pig.i3-cap*c«te
Fig.lS — BétU
CotM de malba.
1 «El Rei accrescentou ás moradias de 65 libras, que os cassai-
los tinham d^antes, mais dez, que eram quinze dobras Mouriscas, e
que por esta quantia havia de ter o vassallo um bom cavallo de
accommetter, e loriga com seu almafre». Ch, d^El-Bei D, Fedro I,
cap. ziu.
2 Conde de Clonard. Hid. de la inf. esp., tomo i, pa^. 433.
3 Almirante. Dic. Mil., voe. Alpartaz. — Alfredo RuBió e Belvé.
Dic. de loa cita, mil.
* Oa Vdmez. — aVelmeces, vestidos para sufrir las guarnizones.»
Poema dei dd.
^ « Arrivé au poste occupé par El-Malek-ed-Daher, je le tronva
snr une colline prés de la mer, avec la garde avancée. II dormait
revê tu de sa cotte de mailles (yelba)^ convert de sa casaque onatée
(cazaghend) et tout prepare pour le combat«. — Beba-ed-Din, cit. por
Delpech. 06. ciV., tomo ii. 2.* P., cap. ii.
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146
um famoso fabricante de malhas de ferro de lamen,
Tobba: «Cinge uma d'essas duplas cotas de malha
que Tobba, o hábil fabricante, legou aos vindou-
ros*».
A imitação dos orientaes attribuem alguns a
adopção na Europa das armaduras inteiriças*, pois
emquanto entre nós se usava apenas
as defezas de tecidos de malha, os ára-
bes serviam-se da couraça de ferro,
brunida e muitas vezes tauxiadas de
ouro, prata ou madrepérola. Não é
bem assim. As luctas com os árabes,
piff. u -Morruo tauto uo Orieutc, como em Hespanha,
levaram os christãos a aligeirar as suaâ pesadas ar-
maduras, e até a comprar aos árabes os seus teci-
dos de malha ^.
A couraça era geralmente defeza do busto hu-
mano (fig. 19 e 20), sendo os braços
guardadas por mangas de malha de
ferro da musca (fig. 21), espécie de
camisa que na parte que cobria o
corpo era apenas de panno.
A defeza do pescoço se chamava
Botttto. Fig.lô-Cpaccte J^^^/^ç (fjg, 22).
ouanie. O Quante, luva de malha para defender a mão,
é igualmente nome árabe*.
Também a cota de armas, que só no século xiv
* Ibn Kaldum, Prologom, parte ii.
2 No Panorama, tomo i, em artigo que alguns attribuem a Her-
culano, vem esta asserção.
3 «On commença par préferer aux lourds liauberts d*£urope les
fins tissus de mailles que fabriquaient les Oricntaux. Les chréticns
en dópouillèrent d*abord leurs adversaires sur le cLamps de ba-
taille pour s^en revêtir. .. Mais une reesource aussi aléatoire que
Ic pillage des champs de bataille ne pouvait pas suffire à Téqnipe-
ment d*unc armée. Pour le compléter, Ics chrétiens ouvrinmt des
relations commerciales avec les fabriaues d^arroures musulmanes
et devinrent leurs meilleurs cliente». 11. Delpcch. La tactique au
XIII* sihc.f tomo II, pag. 179.
* Dozy. Dicí, d€$ noms des vttm. des arab., pag. 364.
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147
foi adoptada entre nós, por imitação, era já de uso
entre os árabes; chamava-se algalofa, (fig. 23) eAigaiot».
n'ella bordavam ou pintavam os nobres
emblemas e distinctivos de qualquer
espécie.
Darca ou darga, de onde veiu a nossa Darca.
adargay era o escudo, que tinha muitas j
formas (fig. 24, 25 e 26), feito de ner- ,
vos de boi, pelle de búfalo, cannas de
bambu, madeira, concha de tartaruga,
ferro, consoante as epochas.
Tinha em geral a forma de coração,"* '^~^""**"
ou a forma oval; e para a infanteria ligeira era ás
vezes a única arma defensiva: «et non traen arma-
dura ninguna (los moros)» diz o in-
fante D. Juan Manuel*. D. Francisco
Danvila y CoUado, citando um ma-
nuscripto portuguez do século xi, diz
que alH viu dois mouros vencidos por
Santhiago que trazem no braço escu-
dos em forma de amêndoa como os
visigodos, e o mesmo escriptor opina ^^fi^^^-^^fif*^»'
que as adargas procedem de Africa e vieram á pe-
nínsula com as tribus berbericas que faziam parte
dos exércitos invasores de Tarique —
e Muça *.
Tomava o nome de hacaA, a adarga
quando coberta de couro de boi; da
mesma origem do nosso vacarí, que si- 1
gnificava a mesma cousa, como se vê,
por exemplo, nos foraes de 1). Ma-
nuel ^^ Fig. 18-Zârdia
^ Infante D. Juan Manoel. Lib. de loa Est.
^ D. Francisco Danvila e Collado. Trajes y armas de los espan.,
pag. 137.
3 «Vacaria, que sâo couros de bois e vacas.» — Foral de S. Fina.
de Paiva, de 1513. «E outro tanto de carga de couros vacarÍ8».Doc.
das Salzedas, cit. no Elucidário de Viterbo.
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148
Flg.lO— Conraça
A interessante obra Museu Militar do escriptor
^*j;SJ'/** '^^^ hespanhol sr. Barado, traz duas figuras de solda-
dos árabes, reproduzidas do Apocn-
lyi)se de Gerona- A primeira repre-
senta um soldado a pé; o seu traje
é umeijobba ou aljuba branca com
mangas justas, e cingida na cinta
por uma faixa, sapatos de couro,
um casco de ferro batido, sem ci-
meira nem viseira, um escudo rombo, espada di-
i-eita de duas mãos (fig. 27). A segunda representa
um soldado de cavallaria, sem es-
tribos, armado de lança e natuitJ-
mente de alfanje ou sabre, que deve
pender-lhe do lado esquerdo; sobre
a aljuba um peito de ferro, sem man-
gas, calção, sapatos de couro, casco
seguro com uma barbella e cingido
Mg. 20 -Couraça ^^^ xoxe, quc tcm uma das pontas
pendentes sobre as costas.
Nos jaezes do cavallo punham também todo o
esmero e cuidado, tendoa sella (fig. 28),
o acicate ou espora (fig. 29), o estribo
(fig. 30), a cabeçada (fig. 31), formas
especiaes que se perpetuaram na penín-
sula.
São curiosos os modelos dos estribos
e do acicate árabes do museu do dr. Tei-
xeira de Aragão, que mandámos expres-
Yig. 2i-Mu«a sãmente desenhar (fig. 32 e 33).
Dos instrumentos musicaes empregados na
guerra pelos mouros falia o seguinte trecho da
descripção da batalha do Salado, do No-
biliário attribuido ao conde D. Pedro :
«Os mouros refrescauam-se cada vez
pig.22-Botutej^j^yg Q jj^j^jg ^^g q^ç estauam folgados.
£ os gintos deles e das trombas e anafis e daltan-
Jaezes.
Instramentos de
musica.
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149
caras e atanaques e gaitas asi reteniam que parecia
que as montanhas se arreygauam a todas partes^».
Usavam também chirimias (fig. 34
e 35), tambores e atabales (fig. 36
e 37):
MoroB estauan tanniendo
Atabales marroquiles,
De la otra rrespondiendo
Tronpas com annafíles^.
Como era natural, porém, tam-
bém os árabes pelo seu lado imita- ^^* w-Aigaiou
ram dos chrístãos alguns instrumentos músicos,
e não só estes, mas vestimentas^, armas e arreios
de cavallo *.
Quanto a armas de fogo e á pólvora, parece Amas do fogo.
ser ponto incontroverso que os árabes
as conheceram antes dos christaos e
que estes as adoptaram d'aquelles,
vindo depois a aperfeiçoal-as rapida-
mente.
Depositários, transmissores dos pro-
gressos do velho Oriente, da China
receberam os árabes directamente,
ou indirectamente pelos mongóes, o Fig.24-Darg»
* Portugália Monumenta. — EacripL — Liv. de Linhagem, pag. 187.
2 PfHíma de Affonso Onceno.
3 a£a Espagne, les árabes, surtout peudant la dernière epoche
de leur imçire, tirèrent un três grand parti du costume des cneva-
liera chrétiens. Ibn Said atteste expressément que les kabas des
árabes d*£8pagDe ressemblaient à ceux des chrétiens, et rhistorien
Ibn-al Khâtib dit, en parlant de Mahommed-ibn-8ad-ibn Moham-
med-ibn Ahmed-ibn Mardanisch, qui moarut dana la secoode moitié
da sixième siècle de Thégire: «11 adopta la mode des chrétiens,
pour les habits, les armes, y les brides et les selles de chevaux». —
Dozy. Dict. des nom$ du vetementa chez lea árabes. — Préface,
* Dozy entende aue as palavras cajpote, sayo e outras, foram pelos
árabes adoptadas aos christaos de llespanha. Dict. des noms des
velem, des arab.
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150
Fogo greclsco.
N«ft«.
SetUtc de fogo.
O fogo greclsco
o OB árabes.
conhecimento dó salitre, o hamãe, ao qual chama-
vam no Egypto neve da Chinoy e sal da China na
Pérsia * ; d'ahi proveiu a composição das substan-
cias incendiarias de diversas composições, que pas-
saram a empregar-se na guerra, sem comtudo lhe
aproveitarem a força impulsiva.
Entre os árabes, dizem Reinaud e Favé, o fogo,
considerado como meio de ferir directamente o ini-
migo, tornara-se o agente principal
do ataque, e serviam -se d"elie talvez
de um cento de maneiras diversas "•
Foi o que teve nas chronicas o
nome genérico de fogo greciscoy que
tanto figurou desde a século vii nas
F!g.25-Darga gucnas da Rcconquista e nas Cru-
zadas, mas que se diflferençava muito dos prepara-
dos chimicos usados anterior e posteriormente.
Uma substancia inflammavel muito em voga foi a
nafta, producto mineral abundante na Ásia, que
era arremessado por meio de flechas, maças, mar-
mitas, etc. (fig. 38, 39 e 40).
As settas para arremessar fogo também tinham
o seu carcaz próprio (fig. 41). São interessantes
n'este particular as figuras, tiradas de
um manuscripto árabe, que illustram
o livro de Reinaud e Favé.
Dado o grau de desenvolvimento a
que entre os árabes haviam chegado
os conhecimentos sobre a chimica e a
Fig.26-Darga botanica, para O que [bastaj conhecer
o diccionario de Benalbeitar (de onde proveiu o
nosso alveitar), natural de Málaga, fácil é compre-
hender o partido que d^esses conhecimentos elles
tirariam na guerra.
1 Benalbeitar — cit. por^^Reioaud et Favé. Du ftu ^gregeois,
cap. I.
2 Keinaud et Favé. Du feu gregeots, pag. 51.
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151
Diz-se porém, nao sabemos com que funda-
mento, que a substancia incendiaria conhecida na
Idade Media com o nome Ajòfogo grecisco, vieram
os ai'abes a possuil-a, por traição, no século xi; por-
quanto os gregos do baixo império guardavam
esse segredo como segredo de estado, possuindo-o
desde o anno de 668, trazido do Oriente e empre-
gando-o Bysancio em 670 contra os árabes, e em
678 contra os pisanos, com grande vantagem.
Os árabes emprega-
ram-o com certeza nas
guen-as contra os chris-
taos desde a primeira cru-
sada, em Assur (1099)
eS. João d'Acre (1101) e
Damieta (1218), mas não
nos parece que tivessem
necessidade de aprender
com os gregos, porque in-
forma Bem Caldum que
tendo-se no anno 64 da
hégira (689-684 da era
christã) Abdallah Bena- .
zabur feito proclamar Ca-
lifa 6 tendo-se entrinchei- Plg. 27-.SoldadodeinfanteHa
j -wr T • J (<Jo Apocalypso de Gerona)
rado em Meca, lezide,
filho de Moavia, enviou contra elle Hoçaim bem
Nomeir Acecuni, que sitiou Meca e incendiou o sa-
grado templo com nafta ^.
O que se pode dar como mais certo é que os
árabes tivessem conhecimento da nafta, já conhe-
cida na Pérsia, nas suas relações com este paiz,
e que fossem aperfeiçoando os diversos processos
de a empregar.
* Ibn Caldum. PrologomhneSj ii, pag. 257.
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152
Bem anteriormente ao século xn os vemos ser-
^tanciM inccn- vindo-sc de substancias incendiarias, compostas
principalmente de salitre, enxofre, nafta, petróleo,
carvão, etc, que arrenies-
savam em lanças, flechas,
massas, tubos, marmitas ou
potes, com a mão ou com
as bestas de muralha, ou
mesmo com manganeis e
outras machinas; e alem
„, ,« „ „ d'isso o facto d'elles cha-
Flg. 28 — Sella ,
marem ^or da China, flecha
da China a algum dos projecteis mostra a origem
de onde haviam tomado esses inventos K
É mais natural, portanto, que no próprio Oriente,
e das mesmas origens de onde haviam i*ecebido os
primeiros preparados, lhes viessem também aquel-
les de que se dizia possuirem o monopólio os by-
santinos; e se os árabes nSo usavam o que propria-
mente era conhecido pelo nome de fogo greohco,
tinham pelo seu lado uma grande variedade de
substancias incendiarias que empregavam,
opiniio de Rei- ^ ^ ^^® ®^ dcduz do intcressaute livro de Rei-
naudetFâvé. ^aud ct Favé :
«O que os escriptores francezes chamaram ^ogro
grecisco nao era, pelo menos entre os árabes do
século xm, uma receita única;
pelo contrario, os árabes faziam
uso de um grande numero de com-
posições diflferentes. O salitre, que
^ , . nao sabiam preparar senão por
Fig. 29 -Acicate j • /• -x i.
um modo impeifeito, entrava como
elemento na maior parte das suas composições. Fa-
ziam mixturas de salitre, enxofre e carvão, n'um
grande numero de proporções. Tudo concorre para
* Reinaud et Pavé. Dufeu gregeoia, etc, cap. i.
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153
fazer crer que conheciam, pelo menos como acci-
dente, o phenoraeno da explosão. Em verdade não
o sabiam utilisar e ignoravam a força projectiva,
que constitue o vérdadeií-o caracter
da nossa pólvora; com tudo obti-
nham d'essas misturas não só a
combustão viva, e difficil de se ex-
tinguir, mas também a propriedade
de produzir, ardendo, uma força
motriz, e tinham um nome particu- ng.so- Estribo
lar para designar o foguete.
«Os árabes haviam estendido o emprego das
suas composições incendiarias a todas as suas
armas e a todas as suas machinas de guerra. Arro-
javam-as directamente com a mão, no estado de
secções de quesmonata, de panellas,
de bolas de vidro, atavam-as á ex-
tremidade dos paus com que feriam
os adversários, lançavam-as por
meio de tubos que, como a massa
de guerra de espagir e a lanqa de
guei^ay dirigiam a chamma contra
o inimigo; ligavam-as ás settas, ás
lanças, e as projectavam finalmente
a gmades distancias com bastas de
torre ou com machinas de fundir.
O fogo, considerado como meio de pig. 8i-c»beç*d»
ferir o inimigo, tornara-se para elles
o agente principal de ataque, e serviam-se d'elle
de cem maneiras talvez *».
N'este mesmo livro, cuja auctoridade é incontes-
tável, vem consagrado todo um capitulo aos gran-
des effeitos obtidos pelos árabes com as suas sub-
stancias incendiarias nas luctas das cruzadas e
outros encontros memoráveis com os europeus ; as
1 Reinand etFavé. Dufeugregeoia, etc, cap. i.
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154
Na lucta corpo a
corpo.
informações são tiradas dos mais auctorisados es-
criptores árabes e christaos.
No livro Grant Conquista de Ultramar, attribiiida
ao rei Sábio de Castella e taiubem a seu filho
D. Sancho, vem a
informação de que
no cerco de Jerusa-
lém os árabes pe-
garam em longos
tubos de latão, n'el-
les m et terá m um
azeite que na sua
linguagem chama-
vam óleo petróleo,
de que se fazia o
óleo chamado gre-
cisco, e o lançaram
sobre um engenho
com que os christaos
atacavam.
Também na lu-
cta corpo a corpo
usavam a nofta,
presa ás lanças e
aos dardos, e, segundo o auctor árabe citado por
Perez de Castro, havia estratagemas de guerra
onde a nafta tinha um papel importante.
«Collocava-se uma fileira de manequins de tur-
bantes e com os attributos militares, tendo na mão
a lança de nafta. Atrás doesta linha de manequins
formava a cavallaria e atrás d'esta a infanteria,
havendo o cuidado de deixar entre cada dez ma-
nequins um espaço por onde passasse a cavallaria
aos pelotões. A um signal do chefe a cavallaria
saía por esses intervallos, em attitude de ataque ás
linhas do inimigo, e antes de chegar a ellas reti-
rava em debandada; vendo isto os inimigos arre-
Fig. 32 — Ebtribo e acicate árabes (see. xii)
(Collecç5c8 do dr. Teixeira do Aragilo)
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155
mettiam com os fugitivos. Estes abriam para a di-
reita e esquerda dos manequins, e na sua arremettida
o inimigo atirava por terra
aquelles moldados fingi-
dos, que ao cair se incen-
diavam por lhes tocarem
varías mechas que esta-
vam em diversos pontos,
produzindo estragos sem
conto que se aggravavam
com a arremettida de in-
fanteria que estava á re-
taguardaS).
Os fogos usados pelos
sarracenos, nos primeiros
tempos, nas cruzadas, e
portanto também na Hes-
panha, não se pareciam
com o fogo grecisco dos
bysanthinos, e romanos.
«Não é para admirar,
diz Ludovic Lalanne, que
08 chronistas tenham tan- I
tas vezes empregado erra- ~ ng. 83 - Estribo árabe
1 . ir (Collecçio do dr. Teixeira de AragftoJ
(lamente o nome de fogo
grecisco. Na epocha das cruzadas, os árabes, cujo
gosto pela chimica foi sempre muito pronunciado,
Differença entre
o fogo doK ara-
bes e o romano.
Fig. 34 — Cliiriínia
Fig. 3j — Chirimia
eram infinitamente mais hábeis do que os chris-
tSos na arte dos assédios, e estes vendo as suas
* Perez de Castro. Ob. cit., pag. 65.
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156
machinas consumidas por projecteis incendiários,
compostos de substancias que como a nafta, de-
viam ser-lhes desconhecidas, applicavam a esses
projeteis uma denominação que se tor-
nara synonyma de todo o fogo violento
Emprego do fogo
grccisco.
e extraordinário^
»•
Flg. 86
A tambor
O mesmo auctor quer que' os sarrace-
nos passassem a conhecer no século xin o
fogo grecisco propriamente dito, encon-
trando 08 característicos d'elle no que
empregaram no cerco de Damieta(1218),
conjecturando que tivessem obtido o segredo de al-
gum grego fugitivo ou do desthionado imperador
Alexis III, refugiado em 1210 na corte do sultão
de Iconium, onde teve o commando
de um exercito. E não só o adopta-
vam, mas em breve praso aperfeiçoa-
vam o seu emprego, augmentando-lhe
pig.87-Atabai6 ^ alcancc c rectificando, quanto possí-
vel, a irregularidade do tiro, por meio de bestas
de muralha e engenhos próprios^.
Na sétima cr usada, a de S. Luiz, o emprego
Flg. 38 — Arab6« cançando sabsiancias ineendiariaa
(Uanaser. da Btbl. Nacional de Paris)
doeste fogo pelos musulmanos, de variadas for-
mas, é confirmada por innumeras passagens de
Joinville : era o raio do céic, era o dragão que pa-
1 Ludovic Lalanne. Rtc^trcheê sur le /eu gregeois. Paris, 2.* ed.,
pag. 49.
2 Idem, pag. 54.
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167
recia voar tio ar irradiando claridade, eram estrd"
las caindo abundantes do céu^.
É o mesmo fogo descriptó pelo' auctor árabe
Âbulfeda, o barude que «rasteja como
escorpiões; estes allumiam-se, inflam-
mam-se e rebentam onde caem; es-
tendem-se como se fossem uma nu-
vem; rugem como se fossem o trovão;
inflammam-se como um incêndio, e
reduzem tudo a cinzas*».
Reconhecidas as propriedades do
salitre, proveniente da China, a pouco
e pouco se foram inventando prepa-
rados com este sal, ou sem elle, e ap-
plicaram-se também outros, como o
alcatrão e a nafta, producto minera- lig.ss-nechM
lógico que se misturava com outras *•'**«•
substancias resinoôas, oleaginosas ou combustíveis,
como a resina, o pez, o coló-
phano, o enxofre, dando excel-
lentes productos com os quaes
se incommodava e destruia o
inimigo, inutilisando-lhe tam-
bém as suas obras defensivas.
Só mais tarde adoptaram os
árabes o fogo greciscx).
Possuiram os árabes de Hes-
panha a verdadeira pólvora,
evidentemente vinda lambem
do Oriente. Ápparece em pleno
uso no século xiv, è, segundo
^ «La queae da fea, qui partoit da fea grégois estoit bien auBsi
grani comme an grant glaive ; il fesoit tele noise aa venir qae il
sembloit que ce feast la foadre da ciei ; il sembloit un dragon qai
yolast par Taír tant getoit gpraot cl arte qae Ton veoit parmi Tost,
comaie se il feast pour la grant foison de fea qai getoit la grant
elarté.» — Joinville.
> Casiri. BiJbl. arab. etp., tomo n, pag. 6.
10
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168
ó manuscripto árabe de S. Petersbiirgo a que atraz
nos referimos, era constituida por 10 dracmas de
saliti-e, 2 ,de Carvão e 1 y^ de enxofre (alcrébitey.
N^o nos parece que possa ter
o menor fundamento a informa-
ção, que o auctor da Historia da
Dynastia dos Saditas em Marro-
cos attribue a um sábio imane^
da pólvora datar do anno 768 da
hégira, que corresponde de 7 de
setembro de 1366 a 27 de agosto
de 1367, sendo a descoberta de-
vida a um medico alchimista.
opiniio mbe. «Eui scguudo logar o prín-
cipe disse que acabava de ser
inventada (a pólvora) e que nao
fora conhecida na epocha em
que reinavam aquellas dynastias.
Ora, eis o que eu li com respeito
á data d'essa invenção n'um com-
mentario que fez ao seu poema
didáctico sobre os costumes de
Fez o mesti*e dos nossos mestres,
o imane, o erudito, Abú Zeide
Abderrahmâo Benabdelcader
Alfaci: — A invenção da pólvo-
ra, no dizer de um auctor que
fez um tratado sobre a guerra
santa, dataria do anno 768 (7 de
setembro 1366 a 27 de agosto
de 1367); essa descoberta seria devida a um me-
dico que se occupava de alchimia e que, tendo
visto uma mistura, que compozera, fazer explosão
rig.4S — Bandeira
^ Ms. de S. PeiersburgOi traducçSo de Fleischer no TraiU sur la
jxmdre, les eorps exploêifs et la pirottthnie^ de Upman e Von Meyer,
cit. por Ârantegui, tom. i, pag. 81.
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Iõ9
teria renovado a experiência, satisfeito com o resul-
tado, e preparado então a pólvora actual; só Deus
sabe se isso é exacto. Deus no
seu império faz tudo quanto lhe
agrada^».
Esta pólvora que muitos au-
ctores filiam com o fogo grecis-
00, começa de ser empregada em
um rudimentar tubo cylindrico
de fen'o seguro a uma coronha
de madeira, que, carregada até á
terça parte, arrojava á distancia
uma bala ou h&ndoque^ por Rei-
naud e Favé comparada a uma
avela e por Fleischer a uma noz,
nas respectivas traducções do já
referido códice árabe de S. Pe-
tersburgo. Medfa era o seu
nome.
Foi o inicio da arma de fogo
poi*tatil, e ao mesmo tempo o
inicio de artilheria, por que esse
tubo era também applicado a um
bloco de madeira. Ha quem sup-
ponha que medfa era primitiva-
mente o nome dado ao engenho
neurobalistico destinado a arror
jar pedras ou mixtos incendiá-
rios, passando a significar a
arma de fogo portátil depois da descoberta da pól-
vora, e até mesmo a culebrina e o mosquete ^.
Modfa.
Inicio da arma
de fogo.
Flg. 43
Bandoira
i Hid. dt la dynoêtU cn Maroc (1511-1670).
s «Medfa is the name for a cannon. Móeola is nearly the same
ting with tbe Medfa ; it is aiso translated by eulemine, and means
in the Life of Ttmur, toin. i, pag. 824, according to f^reytag in
more recent times^ a musket. . The above passages led Qaatremère
to iofer that the signification both of the Medfa and of the MekkUah
was gradnallj changed. At first thej were forms of the balista and
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160
TroM. Foi essa arma a primeira a manifestar-se; e com
quanto não possam ser acceites como boccas de
fogo, conforme pretendem alguns escripto-
res, 08 engenhos que despediam trons ou
faziam trons no sitio de Madrid em 1084,
no de Saragoça por Affonso o Batalhador
em 1118*, no de Gibraltar em 1306 da
parte dos christaos, no de Niebla por
Affonso o Sábio em 1257*, no de Murcia
em 1266, no de Baza em 1325^ da parte
dos mouros, pois eram verdadeiras machi-
nas polyorceticas que arrojavam substan-
cias incendiarias, a verdade é que se pôde
aí&rmai' sem receio que a primeira vez
que troou na peninsula a artilberia, con-
siderada no sentido que hoje lhe damos,
foi no assedio de Algeciras de 1342, pelo
tempo da celebre batalha do Salado, sendo
empregada pelos mouros essa incipiente
artilheria de praça na sua defeza.
Emprego da ar- A iuformaçao de Zurita de como em
1331 o rei de Granada Mohamede IV,
dirigindo-se para as fronteiras de Alicante
e Orihuela, apresentara a invenção «de
pelotas de hierro, que se lanzaban com
fuego», nao encontra comprovação nos
documentos da epocha ^
Deve-se notar, porém, que o escriptor
Bi?na hespanhol Arantegui, levado pelos seus
catapult, destined to project stones, the gregorian fire, or other
misBilis, and the same names were after the discovery of gunpow-
der applied to designate cannons or stone — projecting machines.»
Notes on Some old Armet and Instrumente of wat, chiefiy among ihe
Araòs, hy £. Behatzek, 1879. The Journal oflhe Bombay brandi of
Royal Ânatic Sodeiy.
1 Conde, Hist, de la dom, de los arab. en Esp.
2 Mellado. Encvclopedia, voe. Artilheria.
' D. Ramon Sala, Memorial hist, de ia artiU, esp , pag. 14.
4 Zurita. Anales de Aragon*
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161
sentimentos de aragonez, acceita como authentica
esta informação para concluir que não em Castella
mas em Aragão se conheceu primeiro a artilheria.
O mesmo auctor, todavia, dá como data certa do
uso da artilheria na Catalunha o anno de 1359.
Ha ainda a informação de D. José Conde de
que no cerco de Tarifa, em 1340, o rei de Fez co-
meçou a combater aquella praça «com machinas e
engenhos de trons que lançavam balas de ferro
grandes com nafta, causando grande destrço nos
seus bem torreados muros *i>; mas Conde não gosa
de absoluta auctoridade em matéria tão impor-
tante.
Temos, portanto, de assentar na data de 1342-iaji«jo^d^«^u»j-
1344, no referido assedio de Algeciras, a apparição ^^
da primeira verdadeira artilheria em Hespanha, e
de origem árabe, comquanto tenhamos de reconhe-
cer que não podendo, sobretudo n'esse tempo, ha-
ver uma grande rapidez nos progi-essos materiaes,
e não sendo a artilheria mais que o producto de
uma evolução lenta, é natural que anteriormente a
esta data já existissem trons, embora mais rudi-
mentares.
Fallando do cerco de Algeciras diz a Chronica de cerco de Aige-
Afanso XI: '''^'
«Et los moros de la cibdat lanzaban muchos
truenos contra la hueste, en que lanzaban pellas
de fierro muy grandes ; et lanzabanlos tan lexos de
la ciudat, que pasisiban allende de la hueste algunas
delias, et algunas ferian en la hueste; et otrosi
lanzaban con los truenos saetas muy grandes e
muy gruesas».
E mais adiante: «Et tirábanles muchas piedras
con los engeíLos et con cabritas, et otrosi muchas
pellas de fierro que los lanzaban con truenos, de
1 Conde* Bid. ck la dom, ék los arab.
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162
que los ornes avian muy grand espanto, ca e»
cualquier niiembro dei oníe que diese, levábalo á
cercén, como si ge lo cortasen con cocliiello; et
quanto quiera poço que orne fuese ferido delia,
luego era muerto, et non avia cerurgia ninguna
que le pudiese aprovecbar : et lo uno porque vénia
ardiendo como fuego, et lo otro porque los polvos
con que la lanzaban eran de tal natura, que cual-
quier llaga que ficiesen, luego era el orne muerto;
et vénia tan recia, que pasaba un orne con todas
sus aimasS).
infomaçto de Isto dcixa O cspiríto pcrplcxo, porque parece que
^'*®* não se trata ainda de peças de artílheria propria-
mente ditas, mas de engenhos antigos porque «lan-
çar com trueno», é, por bem dizer, lançar com o es-
tampido que fazia a substancia incendiaria, e nSo
atirar com o trom, no sentido de peça.
A informação de Conde confirma os pormenores
da chronica, pois diz que «os sitiados destruíram
as machinas do sitiador com pedras que atiravam
dos muros e com ardentes balas de ferro, que lan-
çavam com troante nafta ^».
Aqui «troante nafta» parece querer dizer que
era a nafta que produzia ò arruido, e não qualquer
boca de fogo.
Os peiouroi. No dizcr da chronica christã os pelouros de ferro
que os mouros lançavam eram «do tamanho de
maçãs muito grandes, e uns quadrellos que aiTe-
messavam eram tão pesados que um homem ti-
nha muito que fazer para os levantar do chão»,
o que levaria a suppor que já n'essa epocha as
peças tinham um calibre muito considerável, coisa
é inverosimil^ em que pese n'este particular á opi-
nião do sr. Arantegui.
1 Crónica de Alfotiêo xi.
^ Conde. Ob. cit.
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163
Este escriptor conjectura, pelas rasões que apre^ ongem doi
senta, que os trons teriam vindo com ás tropas dos
Merinidas de Africa, auxiliares do rei de Granada
contra Affonso XI de Castella. Como isto vae de
1331 a 1340, o illustre escriptor firma-se n^esse
facto, entre outros, para acceitar a já referida opi-
nião de Zurita de ter n'este ultimo anno troado
pela primeira vez na peninsula a ai*tilheria.
Annos depois, já ha noticia do apparecimento^ <>>▼•'• «•
da verdadeira artilheria na Itália, na AUemanha e
Inglaterra, onde por diversos conductos, mas evi-
dentemente da mesma origem, é recebido o conhe-
cimento da pólvora de guerra.
Pretende-se que não já a artilheria de fortaleza, ^^«JJ^>»«^* ^
como em Algeciras, mas a artilheria de campanha
tivesse figurado em Crecy (1346), conhecendo-a
08 inglezes já em 1341.
Em França ha quem queira encontrar a arti^
Iheria, no sentido moderno, já em 1338 em
frente de Puig Guillaume ou mesmo antes, e na
Itália remontam-n'a a 1326*; não são porénL fa-
ctos comprovados, nem até certo ponto admissí-
veis.
Mas é incontestável que tendo os povos do inflaencia <ios
sudoeste da Europa contacto com os turcos pélas *"^ *'*
suas guerras, houvessem recebido doestes, — aos
quaes já se attribue em 1290 o emprego da arti-
lheria no cerco de Ptolemaida — , o conhecimento
d'esta arma. De modo que, ao passo que nós os
peninsulares recebíamos esse conhecimento dos
árabes, pelo sudeste o recebiam os outros povos
da Europa, apei*feiçoando-o a AUemanha, e d'ali
irradiando para outros paizes europeus os produ-
ctos da sua inventiva fecunda. Foi assim que, as
1 Leon Lacabane. — Dela poudre à eanon^ et de 9Ón inlrodtíctian
«1 France. 1845.
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164
nações européas venceram nos progressos da pól-
vora e da artilheria os árabes, que as haviam ensi-
nado a conhecel-a.
«Os bysautinos, diz Delpech, passaram 600 an-
nos (do século vii a xui) a manipular as matérias
explosivas, sem crear nem artilheria nem mosque-
teria seria; os europeus obtiveram esse resultado
em menos de cem annos». (Do fim do século xm
ao começo do xiv)*,
Feçai ftmdidM.' Os allcmâes deveram a Schwartz a primazia nas
peças fundidas, que Veneza foi a primeira a em-
pregar, da mesma origem, na gueii-a de Chiaggia
em 1380.
opiniio de A verdade, porém, é que podemos acceitar como
^^^'^^ exactos as seguintes conclusões de Arantegui *: —
Que os árabes foram os introductores da pólvora
e da sua applicaçâo á artilheria, sendo a origem
d'ella chineza, syria ou egypcia; que dos árabes
passou aos peninsulares por intermédio dos africa-
nos ou propriamente dos reis de Fez; e que no
cerco de Algeciras devia ter sido vista a artilheria
pela multidão dos cavalleiros christãos estrangeiros
que a elle assistiam, e que regressando aos seus
paizes deram a conhecer a nova arma.
Isto aproxima-se da asserção do conde de Cio-
nard de que os peninsulares de ambas as religiões,
«foram os primeiros a conhecer e usar a pólvora
na Europa».
primaBia dos A prímdzia pcrtenco aos árabes, e a elles ficou
*~ *'' também peiiencendo, mesmo depois da restauração
christã, a preeminência nas industrias da guerra.
Ainda em 1525 os aragonezes representavam a
Carlos V contra os grandes prejuizos causados pela
expulsão dos mouriscos que sobi^esaíam no fabrico
1 Delpech. Ob. cii, tomo ii^ pag. 828.
< Arantegui. Ob. cit, pag. 50.
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165
das escopetas, pólvoras e outras muitas espécies
de artilhería.
* *
Na arte de fortificar os árabes representam Ario do fortifl-
também algum progresso, comquanto mantivessem ""
as formas de fortificação gotico-romana ; não só,
porém, no cimento com que construiam as suas^
muralhas, e cujo segredo ficou na peninsula entre
os mudéjares, que de preferencia foram recrutados
pelos reis christãos pai*a a construccão das suas
fortalezas, mas em muitos dos aperfeiçoamentos
por elles introduzidos, foram os mestres dos fortifi-
cadores e engenheiros do seu tempo.
O característico principal das fortificações árabes caracteristicoí
mais recentes é o emprego da taipa, ou terra api- ^^ "'
Bonada com pouca cal; o traçado e a estructura
eram pai*ecidos com os da epocha, sendo em muitas
fortalezas aproveitado, e mesmo imitado, o traçado
romano-godo.
Consistia a fortaleza em grandes lances de mu-
ralhas reforçadas e flanqueadas de torres quadra-
das ou semicylindricas, com um castello ou forta-
leza dentro do recinto *.
Nas obras de fortificação empregavam abobadas con.trucçio.
de tijolo construidas com terra passada pelo crivo,
em vez de areia.
Em epochas posteriores ao periodo áureo do is-
lamismo na peninsula as muralhas eram feitas de
terra pedregosa ou de alluvião, ligada com uma
terça pai-te de cal e fortemente pisada.
«Esta clase de fábrica era la mas económica
possibe, diz um escriptor do visinho reino, y se
ejecutaba con cajones de madera que se Uamaban
^ Hobió e fielfò. Dioc de cíen. milU., voe. Alcazaba.
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166
tahiales y com inazos de hierro. La formacion de
los muros exigia grandes gruesos, y asi se observa
que para alturas de seis metros se necessitaba
siempre uno a lo menos de espesor. Solo en an-
gostos Uipiales se empleaba el ladrillo, y para este
caso los tendeles de tierra y cal (no arena) eran
más gruesod. En los cimientos se aumentaba la
cantidad de cal, y aun se reemplazada la tierra
.por grava de piedras machacadas, lo cual consti-
tuia un cimiento tan duro como el romano^».
Bem Caldum do qual este auctor tirou eviden-
temente estas informações, dá-nos noticias dos pro-
cessos de construcção de muros: com pedra ou ti-
jolo, e cal e areia; de taipa, (tabiaj ^, como ainda hoje
se usa no nosso Alemtejo, etc.
sobrcpoiíçsci. Aproveitando as construcções que encontrarani
na peninsula, fízeram-lhe crescenças e enxertos
que ainda hoje se conhecem perfeitamente, como
em Montemor o Novo, Lamego, Alcácer do Sal,
Cintra, Lisboa. A superfetação e complicação che-
gava por vezes ao excesso, como se deduz da se-
guinte passagem de uma obra que trata com*pro-
ficiencia dos monumentos árabes em Granada:
«Ao examinar a Granada dos Ziritas, achamol-a
dividida em casas de povoações muradas, cada uma
* Rafael Contreras. Bec, de Ia dom, de los arab.^ pag. 79.
2 É curiosa a descripçfio da taipa dada por Bem Caldum; repro-
duzimol-a da traducção contida nos tomos xix e xx das Notiees el
extraits des manuscripts de la Bibliothhque Impéríale et autres hiblio-
ihhqueSf de Paris, que nos tem servido para o nosso estado : aL'art
de bâtir se partage en plusieurs branches ; Tune consiste à ftdre
des mura avec des pierres de taille (on des briques), que Ton ci-
mente ensemble au moyen de Targile on de la cfaauí^ matières qui,
• en se consolidant, forment une seule masse avec ses matériaax.
Une outre mode de bâtir, c*est de conetruire des murs avec de Tar-
file seulement. On se sert pour cela de deux planches de bois,
ont la íongueur et la largeur varient selon les u8ageslocaux;maÍ8
leurs dimensions sont, en généraU de quatre coudées sur deux. On
dresse ces planches sur des fondations (déjà préparées, en obser-
vant de les espacer entre elles.. suivant Ia largeur que Tarchitecte
a jugé à propôs de donner. à ces mêmes fondations. filies tiennent
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167
de per si, denotando as aggregações que se foram
suecedendo durante o governo d'aquelles senhores
que, no crescimento da cidade, duplicavam ou tri-
plicavam os seus recintos, conservando sempre os
anteriores, tornando mais inexpugnável tal conjun-
cto de muralhas, de torres e fortalezas, engancha-
das umas nas outras, e deixando talvez separados
os respectivos recintos para as tribus ou raças dif-
ferentes, e também para os emigrantes de diversas
épocas ou logares. O certo é que a cidade veiu a
ficar constituida pela forma peculiar ás fortificações
árabes da idade media, e que, ao analysac os restos
que hoje apparecem das suas antigas muralhas, sé
notam as j unturas que n'ellas marcam essas uniões,
e correspondem aos vários perimeiros que foram
abai-cando, com relação aos ampliamentos da po-
voação e ás desigualdades do terreno *».
Uma passagem de uma outra obra nos dá tam-
bém algamas informações :
«Compunham-se geralmente as alcáçovas ou ci-
dadellas árabes e christãs na Idade Media de dois
recintos murados: um exterior, que corria sobre
fosso, por nós chamado barbacã, e suluquia pelos
ensemble an moyen de traverses en bois que Ton assujétit avec
des cordes on des liens; on ferme avec deux autres planches de
petite dimension Tespace vide qai reste entre les (extréinités des)
deuz grandes planches, et Ton y verse un melange de terre et de
chaaz qai l*on foule ensuite avec des pilons faits exprès pour cet
objet. Quand la masse est bien comprimée, et que la terre est saíH-
sament combinée avec la chaux, on y ajoute encore de la terre à
plQsienrs reprises, ju8qa'à ce que le vide soit tout à fait comblé.
Les particules de terre et de cbaux se trouvent alors si bien me-
langées qu*elies ne forinent qu'un seul corps. En suite on place ces
Í»]ancbe8 sur la partie dn mur déjà formée, on y entasse encore de
a terre et Ton continue ainsi jusqu*à ce que les masses de terre,
rangées en plusieurs lignes superposées, formeut un mur dont
toutes les parties tiennent ensemble, comme si elles ne faísaíent
qu'ane seule pièce. Ce guise de construction s*apelle taòia (pise),
1 ouvrier qui la fait est designe par le nom de (aouwab (piseur)». —
íhn Kaldum. Prologomhnes,
1 D. Josó e D. Manuel Oliver y Hnrtado. Granada y sus monu"
mentos arabeê.
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168
mouros, e outro interior, parallelo e mais alto, de-
nominado o cu^or. Na cortina ou panno do primeiro,
isto é, da barbacã, abria-se uma porta que dava
ingresso ao espaço comprehendido entre os muros,
a qual se chamava bab albácar, a porta dos bois
ou vaccas, por ser por ella que safa este gado *».
^mud!yarei**** ^^^* *^^^ * pcuiusula SC mostram ainda impor-
tantes trabalhos de architectura chrístã executados
pelos mudéjares, e o que se dava com a construc-
ção dos edificios dava-se também com a factura
dos engenhos e artificies de guerra.
Com os mouros partilhavam os judeus esta pri-
masia na industria militar.
' Vimos já a opinião de Alexandre Herculano sobre
o emprego de artistas árabes, e de origem árabe,
nas nossas construcções militares; do mesmo modo
que em Portugal, em maior escala ainda, dava-se
esse facto nos outros reinos peninsulaies.
Em Castella D. Affonso XI e D. Pedro o Cruel
aproveitaram grandemente os especiaes conheci-
mentos mechanicos e technicos dos mudéjares para
os trabalhos de guerra, e quando este se preparava
em 1360 para a guerra contra Aragão, escrevia ao
seu thesoureiro de Murcia dizendo-lhe que levasse
comsigo para Cartagena a Mohamede, filho do
mestre Ali, e um outro seu innflo, para arranjai* en-
genhos, mantas e gatas, e fabricar outros instru-
mentos novos.
Em Navana o encarregado de, em 1867, «ver
continuamente e visitar as bestas dos castellos e
reparal-as» era o mouro Leote Audali; em 1368
á Aljama de Tudda era perdoada metade dos tri-
butos, durante três annos pelos bons serviços pres-
tados pelos naturaes, na reparai^ dos engenhosy
1 Leopoldo de Aguilar. Glos, de leu vocês espanola dearigen orien-
tal, voe. Âlbacara.
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169
e o mestre dos engenhos, era o mouro Mafoma, de
Burgos; em Aragão devia succeder o mesmo visto
que, como vimos, ainda no século xvi era ali tida
como prejudicial ao fabrico das ai'mas a expulsão
dos mouros ^
Innumeros sao os nomes que se adoptaram, n'este
particular, da engenheria árabe.
E assim que alca^^ova, de cUcasba, continuou si- Aicaiba.
gnifioando foi*taleza, castello interior a um recinto
fortificado, uma espécie de cidadella.
Que alcasha era propriamente a cidadella, inde*
pendentemente das muralhas, se vê da seguinte
passagem de um manuscrípto árabe:
«Mas esta (a cidade de Elvira) foi destruida, e
esses habitantes passaram para Grranada, eHaçam
Acinagi, foi quem a povoou e edificou a sua alcá-
çova e os muros ^».
Outras vezes, porém, indicava o conjuncto da
cidade fortificada, como se deduz d'esta outra pas-
sagem:
«Cresceu depois a sua povoação (de Granada) até
ao rio Darro, e no anno do Senhor seis mil, havia
outra Alcáçova entre a velha e o rio, a qual tinha
mais de quatrocentas casas e lhe chamavam Al-
casha Gididej ou Alcáçova Nova^). Em Portugal
designava-se por alcáçova ou alcaceva a fortaleza,
o castello, o presidio militar *.
Alcacary que também significava fortaleza 0UAie«ç«r.
casa forte, era propriamente a habitação afortale-
zada do alcaide, governador da praça, ou mandão
senhorial, como o pola^ium dos romanos ; alcazar
e alcacare se chamava também entre nós.
^ Arantegui. Ob. cit., pag. 54 a 79.
2 Ben AlhATàlPerola deu maravilhas cit. de Rabio y Belvé. Ob. cit,
3 L. dei Marmol Carvajal, Rehdion y castigo de los moriseos de
Granada, cit. de Rubió y Beiyè. Ob, eU.,
^ Elucida, voe. Alcáçova.
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170
AlearcoTa.
Andaimo.
Albacara.
Albarrl.
Anobda.
Almagana.
Algarrada.
Para designar fortaleza ficaram ainda em Hespa*
nha as palavras alcaXáy alcolea ou castello pequeno,
e muitas das partes da fortificação continuaram a
chamar-se como no tempo dos árabes, ás vezes com
pequenas alterações. Assim carcova^ alcorcova, como
se dizia em Portugal, continuou sendo o fosso;
adarve a muralha, ou a parte superior d'esta, onde
se abriam as ameias (almenas em hespanhol), peque-
nos prismas que rematavam os muros e as torres,
com intervallos para o tiro; andaime o caminho
superior junto ao adarve, de onde se combatia o
assaltante; albacara (de alhácar) a obra exterior
que defendia a porta do castello ^, nome que sub-
stituiu entre nós até na Renascença, como se lê em
Damião de Góes*; albarrã a torre saliente do muro,
alta e mais solida que as outras, espécie de gi-ande
baluarte incipiente e onde se guardavam os the-
souros e os dinheiros da coroa, como a torre Al-
pram ou albarrã de Santarém^; anubda, a obriga-
ção de acorrer á guerra, principalmente ao trabalho
nas fortalezas, etc, etc.
Em termos de instrumentos e armas de expu-
gnação das praças ficaram designando igual objecto
e funcção: a almagana ou almajaneqíie^, espécie de
grande fundibalo ; a algarrada, espécie de besta de
muralha, também conhecida por arrada, machina
^ «En la cortina ou lienso dei primero (recinto), cu seja de la
barbacana, se abria una porta que daba ingreso ai espacio conte-
nido entre los muros, la qual llevaba el nombre hab albacar^ la
puerta de bucs e vacas, por entrar o salir por ella el ganado do esa
clasc.» — Leopoldo de Aguilar. G^«. de las vocês espcmoUu de origen
oríentaL
2 «Da estancia que estava diante da pr>rla de albacar lhe tirarain
as Bombardas». Dafhião de Góes. Ch: d^el-rey D. Manoel, «E en-
viou-lhes três bombardas para que tirassem direito á albatara do
alcncar do castello, onde estava a porta. Idem. Ch. d^el-rei D, João II.
3 «Costumo he, que nom devem dar carceragem da Torre dalprS,
por liomÕ alá lev(^ preso.» Foral de Santarém.
4 Pela sua vez os árabes tomaram a palavra do manganon grego.
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171
de menores dimensões que o manjaneque^\ a Aew-flend*m.
dam, também machina de lançar projecteis incen-
diários, como se vê em Bem Caldum*; a dobada, mb^Ati.
instrumento de abrigo para derrocar as muralhas;
a alcancia, bola de barro, espécie de granada deAiconcia.
mao, cheia de substancias incendiarias, que se ar-
remessava contra o assaltante, nome que ficou ás
bolas de barro com que se entrava n'um dos jogos
predilectos da Idade Media entre os cavalleiros.
De muitos dos instrumentos que constituiam o instrnmentos de
arsenal dos árabes nos dá noticia o livro a que já "**'**^'
nos referimos, Grant Conquista de Ultramar, qaíínáo
diz como elles se defendiam em Jerusalém, no cerco
que lhe pozeram os christãos :
«Para combatir traen cestos é paios, é picos, é
azadones, é espuertas, é porras, é almadonas
grandes de fierro, é ballones, é misericórdias, é
cochiellos, é alfanges, é plomadas, é cadenas para
dar grandes golpes, e brazaletes para echar piedras,
e guisas . > • é palancas de fierro, é mazos, é mar-
tielloS; e garfios con cadenas, é barras luengas é
gordas . . . » e refere que as mulheres combatiam
também atirando «bariles, é picheles, é terrazos, é
calabazas, é botijas, é azacanesD. Era o caso ex-
tremo, em qiie tudo servia de arma.
^ «Arrada machina minor quam ea que medjiiiiic appellatur (cu-
jas ope lapides ad terminum longe remotas jaciente).
2 Na traducçâo do barão de SIane, da Historia do8 Berberes,
falia- SC em •medjanic, e arrada, e hendam de mafta, que atiram
de fogo, o qaal é lançado da camará (do hendam) antes do fogo pe-
gar ao barude (substancia incendiaria) por um effeito espantoso e
cujos resultados devem ser attribuidos ao poder do Creador». Favé
explica que a palavra hendam significa, segundo Gastei, no seu
Diccionario Heptaglotton, oongma mensura, e segundo Meniski,
Diccionario árabe, persa e turco, justa constituitio, symmetria; e
deduz d^abi que foi empregado n*am termo genérico, como quem diz
engenho, — Du Feu Gregrois, etc., pag. 74. Se assim fosse, a tra-
ducçâo própria seria : — vmedjanie, arrada, e outros hendam ou en-
genhos, etc.» São assumptos difficeis de destrinçar.
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172
Emprogo doB Os preparados incendiários que foram, como vi-
preparado! in- • . i i r ^
ccndiarioa. mos, copiOBamcntc empregados pelos árabes, tam-
bém tiveram grande papel nos assédios.
Minaa. Um processo, precursor das minas, que mais
tarde haviam de pôr nas mSos dos sitiantes um
forte elemento de destruição, consistia em abrir
uma galeria que fosse até á muralha que se queria
derribar, e enchel-a n'este ponto de lenha e ma-
deiros que, depois de untados de naftay eram incen-
diados, por meio de uma mecha; consumada a
combustão, esboroava-se a terra, e com ella a cor-
respondente porção de muralha ^.
Bandeiras. Scndo a bandeira um signal do commando, o
symbolo do poder e do direito de levantar, manter
e dirigir as tropas, e ao mesmo tempo o ponto de
referencia para a reunião das forças, não podiam
os árabes deixar de a possuir também.
O amor do fausto e da ostentação^ diz Bem Cal-
dum, exige que o soberano se distinga por muitos
signaes e emblemas que lhe sejam especialmente
reservados, a fim de que se não confundam com a
gente do povo, com os cortesãos e os grandes do
império; elles indicam, entre os privilégios do so-
berano, o direito de fazer desenrolar bandeiras e
estandartes, rufar tambores, atabales e soar trom-
betas e cornetas.
O mesmo escriptor informa que o uso d'e88as
insignias varia segundo as dynastias e os soberanos
e segundo o seu gosto e poderio; que as bandeiras
foram usadas como emblemas guerreiros desde os
inicios do Califado, e já no tempo do Propheta;
^ Perez de Castro. Ob. cit., pag. 65.
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173
•
mas que no tocante a tambores e trombetas os não
usaram os primeiros miisulmanos, por orgulho, por
não quererem imitar outros povos, até que, com a
realeza, adoptaram os califas e permittiram aos
seus subordinados, essas manifestações de fausto e
luxo das outras nações *.
Grande copia de estandartes, bandeiras e pen-D.iyerMssignM.
does variados se encontravam nos seus exércitos
(fig. 42 e 43). A insignia do Califa era um estan-
darte que, tendo sido branco no tempo dos Omáia-
das, passou a ser negro no dos Assidas. Verde fora
o estandarte do Propheta. De variadas formas e
cores eram os pendões e bandeiras dos emires e
sultões. Almançor adoptara um pendão em forma
de lingoa de fogo, com a seguinte inscripçao:
«A força provém de Deus ; próxima está a victoría».
Uns tinham a inscripçao que symbolisava a
unidade religiosa e social do povo musulmano:
«Só Deus é Deus e Mafoma o seu propheta». Ou-
tros ostentavam inscripções, nomes, a representa-
ção do sol, da lua, etc.
No tempo do emir Timur a cavallaria usava
uma bandeira quadrada (bederfechej, tendo pintado
o sol e um carneiro.
Uma das insígnias mais curiosas era formada
por um pequeno pendão tendo suspensa a cauda
de um cavallo (fig. 44).
Entre os Abbácidas e Fatemitas cada general
ou alcaide de fortaleza que ia tomar conta do seu
posto recebia das mãos do Califa uma bandeira, e
a gente que o acompanhava levava também ban-
deiras e outras insígnias ; no numero d'estas estava
indicado a importância ou o poderio do chefe.
pendão negro, adoptado pelos Califas abbá-
cidas, significava luto pelo martyrio dos seus pa-
1 Ibn. Kaldum. Prologomhnea, 2.' parte.
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174
rentes, os descendentes de Haxéme, e ei-a um repto
aos Omaiadas; d'aki o chamar-se aos abbacidas
(COS negros» (Moçuedda); quando se deu a scísão
entre os membros da família de Haxéme, os des-
cendentes de Ali abandonaram o estandarte negi-o
e adoptaram o branco, passando por isso os Alidas
a serem conhecidos pelos «brancos». Almamun
adoptou a côr verde nas suas insignias, para acabar
com a côr negra e com outros emblemas da sua
casa.
No Magrebe até á chegada dos Almohadas, os
Ziridas que substituíram em Africa os Fatemi-
tas, não tinham nenhuma côr particular nas insi
gnias. Os Almohadas e os Benilamer em Hespa-
nha restringiram a sete o numero de bandeiras do
soberano e reservaram para este unicamente o uso
dos tambores. Os Almohadas costumavam reunir
n'um corpo todos os porta-estandartes e tambores,
que iam logo atrás do chefe, e por isso se cha-
mavam a sa<^a^ ou gente da retaguarda*.
praetioM reli- Eutrc OS arabcs primitivos era uso ir á frente
^'*'*'' do cortejo do chefe um homem recitando e can-
taçido versos que tinham por fim excitar os ânimos
dos guerreiros; esse uso subsistiu entre os povos
d'essa raça, como por exemplo, entre os Zanatas
do norte da Africa ; a esse canto se chamava tazua-
gaite ^.
Como o culto austero da religião os não aban-
donava nunca, havia nas diversas cidades soldados
escolhidos encarregados de, a horas determinadas,
lerem o Alcorão ás tropas, divididas em grupos;
e trechos especiaes, alusivos á guerra santa, eram
recitados antes de entrar em combate, para acen-
drar o espirito guerreiro dos soldados.
1 Ibn. Kaldnm. Prologam,, 2.* Parte.
2 Idem.
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175
A saúde da alma, como a saúde do corpo, mere-serriço de
ceu no exercito muitas attenções aos árabes. Um
corpo de médicos, auxiliados por mulheres que fa-
ziam de enfermeiras, cuidavam dos doentes e fe-
ridos.
As feridas eram tratadas mesmo sobre o campo
de batalha com ligaduras, drogas, etc. Eram de-
pois conduzidos a um logar retirado e seguro, onde
as queimaduras da nafta e as feridas das armas
brancas ou da bala eram devidamente tratadas, e
ali feitas também as necessárias amputações.
Ali-Alacen e Bem Sina (Avincera) deixaram im-
portantes tratados sobre o tratamento das feridas
em campanha.
A disciplina era mantida por meio de penas se- Ditcipuna.
veras e de largas recompensas, que consistiam em
honorários, titulos, cintos de ouro e outras insi-
gnias militares, e os soldados eram recompensados
com augmento de vencimento, alem da partilha
dos despojos da guerra.
A obediência era tida em alto apreço, e no tra-
tado árabe, estudado por Perez de Castro, e do
qual tomamos grande numero de informações, vem
prescripto o seguinte: «Obedecer é ceder á impulsão
e marchar direito ao fim proposto, sem nada tirar
nem pôr, sem mostra alguma de fraqueza ou pesar.
Obedecer é marchar no primeiro logar, se no pri-
meiro o coUocam, no ultimo se o põem no ultimo
logar ; é deixar-se impellir para o trabalho se se é
impellido, e parar depois do impulso; é marchar a
pé, se a pé o mandarem marchar, e a cavallo se o
mandam montar ; é absterem-se de todo o dito ou
murmúrio se se manda callar; sa se é chamado á
guerra santa é marchar para ella com ardor, fa-
zendo o sacrifício da vida, e ferindo o inimigo com
golpes seguros )í.
Era antiquissimo entre os árabes o uso das ten*
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176
Tendai de oam- das de caiupanlia, desde a tenda primitiva Quiba,
^"'**' de simples pele de camello, até ás tendas luxuosas
dos califas almohadas.
Bem Caldum, nos Prologomenosy diz que no
tempo dos primeiros califas da dynastia omáiada
os árabes usavam tendas de pelle de camello e te-
cidos de lã, e assim continuaram emquanto nóma-
das ; cada tribu acampava á parte, e distanciadas
umas das outras.
Com a vida sedentária e o amor do fausto, na-
turalmente as tendas foram substituidas por palá-
cios e casas, como por cavallos foram substituídos
os camellos ; mas na guerra continuaram a adoplar
as tendas nos acampamentos, e havia-as de uma
grande diversidade de formas, redondas, quadra-
das, compridas, e de toda a espécie de estofos e or-
namentos.
As tendas approximaram-se mais, umas das ou-
tras; a vigilância do acampamento tornou-se mais
efficaz, e menos para recear a surpresa.
Tropai.
Almogayares.
Assim organisados, armados e preparados os
musulmanos, como uma forte milicia nacional, ne-
cessitavam do mandado ou auctorisaçâo do Imane
ou general para fazerem a guerra, menos as tropas
da fronteira que pegavam em armas sempre que o
julgassem necessário, e estavam, se pôde dizer, em
permanente rebate.
Pertencia-lhes nâo só impedir e combater as
incursões do inimigo, mas realisal-as em epochas
próprias, principalmente no verão.
•fropas especiaes, com a denominação de almo-
gavaresy tomavam sobre si o encargo d'essa8 expe-
dições, muitas vezes como meio de prover ás neces-
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177
sidades da vida. Era gente rude, tendo por officio
principal a guerra, na terra e no mar, affeita aos
rigores do tempo, valente, destemida, sanguinária
e cruel, e que na península representava já a infan-
teria, com uma certa effectividade e organisada
n^uma epocha em que em toda a Europa a caval-
laria era a única arma verdadeiramente orgânica.
Muitas vezes se empregou a palavra almogavar
para dizer peão, e sobre o que era almogavar vários
pareceres aventado os que teem querido inquirir
da sua etymologia; mas pode-se afiançar com
segurança que o seu nome e funcção datava do
terapo dos árabes na península. 'Estevanez Calde-
ron apurou esse facto n'um interessante estudo que
devia fazer parte da sua inédita Historia de la in-
fanferia espaUola.
Almogavar deriva do participio de um verbo
árabe que significa entrar impetuosamente, talando
e fazendo correrias, no paiz inimigo, e o arabista
D. Julian Ribera Tarragó define almogovar: «vo-
cábulo arábico com que se indica exercito ligeiro
que faz incursões ou algaradas no paiz inimigo *».
Ao almogavar, sob o commando dos almocadens,
competia explorar e desbravar o terreno nas mar-
chas.
Muitas vezes as expedições tomavam um cara- Expediçisea.
cter solemne, como o tiveram os nossos fossados;
eram commandados pelo próprio Califa ou Emir
que levava comsigo os meios necessários para fa-
bricar sellas, lanças, espadas e outras armas, para
construir machinas e engenhos de guerra; e ia
acompanhado de tropas próprias para a explora-
ção do terreno, e de gastadores e artífices para a
abertura de estradas e construcçao de pontes ^.
* Orig. dd Juaticia.
* E. Calderon. MU, de los arab.
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178
Gftiá*. Era uma gazúa solemne, como foi a celebre ga-
zúa de Santhiago, expedição commandada por Al-
mançor até Santhiago de Galiza, tendo desembar-
cado no Porto.
De outras expedições de somenos importância
adoptaram o nome os christSos, e de origem árabe
eram por exemplo algara, que queria dizer uma
incursão á mão armada, quasi sempre de tropas a
cavallo, destinadas a dar saque ás povoações, rou-
bar gado, viveres, fructas dos campos, assaltar
os comboios dos inimigos, os povoados, os acampa-
mentos, a combater, etc, e nao só significava a
cavalgada propriamente, mas a própria acção de
coiTcr e assaltar, È ainda hoje o processo de com-
bater, entre os árabes, e de devastar as terras ini-
migas, com o nome de razias *.
De como eram realisadas essas algaras nos dá
noticia D. Juan Manoel :
Ducrípç&o dM « Seiior infante, la guerra de los moros no es como
«igarw. j^ ^^ cristianos, tambien en la guerra guereada
como cuando ceycan ó combateu, ó son cercados 6
combatidos, como en las cabalgadas et correduras,
como en el andar por el camino et el pasar de la
otra; ca la guerra guerreada fácenla ellos muy
maestramente, ca ellos andan mucho et pasan com
muy poça vianda, et nunca Uevan consigo gente
de pié nin acemilas, assi cada uno va con su ca-
ballo, también los seflores como qualquier de las
otras gentes, que non Uevan otra vianda sino muy
poço pan de figos ó pasas ó alguna fructa, et non
traen armadura ninguna sino adargas de cuerpo,
e las sus armas son azagayas que lanzan, espadas
1 Ha sobretudo ires espécies de razzias distinctas : a teha ataque
Bubito, com trezentos ou quatrocentos cavalleiros, e também peões
que vão na anca dos cavallos ; a crotefa ou rapina de camellos, e o
terhique realisado por um pequeno grupo de cavalleiros, para roubar
gado nos adaares. General Daumas. Ias chev. du Sakara, pag. 274 .
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179
con que fieren, et porque se tienen tan ligeramente
pueden andar mucho. Et cuando en cabalgada
andan caminau cuanto pueden de noche et de dia
fasta que son lo mas dentro que pueden entrar de
Ia tierra que quieren correr. Et a la entrada entran
muy encobiertamente et muy apriesa; et dé que
comienzan a correr, correu et roban tanta tierra
et sabenlo tan bien facer, que es grant maravilla,
que mas tierra correrán et mayor dailo farán y
raayor cabalgada ayuntarán doscientos honies de
caballo moros que seiscentos cristianos. £t facen
otra cosa que cumple mucho para la guerra, que
quanto tomasen, nunca home dellos tomará nin
encubrirá cosa de que lo tomaren; mas todo lo
traen é lo ayuntan para pro de la cabalgada,
como un Cristiano si fuyese de su lid. Et dé que
han hecho su cabalgada, facen como pueden, para
salir aina de la tierra do sean en salvo, et guar-
danse mucho de albergar de los cristianos puedan
ferir en ellos de noche; y se por fuerza han de
albergar, entran do no hay receio ó miedo. De al-
gun tiempo acá han tomado una maestria, que
nunca albergan todos ayutados, et dejan con la
presa de noche muy poços, et de dia envian la
presa con algunos adelante, et ellos van á com-
paflas non ayutados, et desta guisa van fasta que
son en salvo ^)>.
Anudhoj era uma expedição destinada a con- Anadia,
struir ou reparar fortalezas, passando a significar
a obrigação de certas companhas destinadas a esse
fim ; essa obrigação militar, como algumas outras,
veiu a converter-se em imposto de guerra.
N'estas expedições punham bem em evidencia
os árabes esse génio de destruição e de ruina de
que eram dotados, de que falia Bem Caldum, e
^ D. Jaan Manuel. El Libro de loa Eõtadoê,
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180
Cara oter
árabe.
Unidades.
FormaçSea.
Tabia.
do
que fez d^elles um povo rude e feroz, mas com o
volver dos tempos apurado nas exigências requin-
tadas da civilísaçao.
Descrevendo os árabes primitivos, diz aquelle
escriptor: «A naturesa feroz dos árabes fez d'elle8
uma raça de larápios e de bandidos; sempre que
podiam levantar a presa sem correr perigo ou sem
sustentar lucta não hesitavam em se apoderar
d'ella, entrando o mais depressa possível na parte
do deserto onde tinham a pastar os seus rebanhos.
Nunca marchavam contra um inimigo para o
combater abertamente, a não ser que o cuidado da
própria defeza os obrigasse a isso. Se durante as
suas expedições encontravam logares fortificados,
ou localidades de difficil acesso, desviavam-se d'el-
les para entrar nas regiões planas». Este cara-
cter, embora muito attenuado, presistiu nos ára-
bes através dos séculos, mesmo quando elles já
haviam alcançado um alto grau de desenvolvi-
mento e cultura.
Nas expedições numerosas e em forma, ou quando
o exercito tinha de sair em campanha, era U80
desde os tempos mais antigos que, para distinguir
a gente das diversas regiões ou estados, ella fosse
repartida em querdusy ou corpos, cada um d'elles
com um numero approximadamente igual de filas;
tinha isto a vantagem de constituir unidades com
gente do mesmo povo, que entre si se unia e se
entendia na confusão do combate. Assim divididas
estas tropas formavam em cinco grandes corpos
que eram coUocados um em cada ponto cardinal
e um no centro ; aqui estava o sultão ou o general.
Tabía era o nome genérico d'esta ordem ou
disposição, necessária nos grandes exércitos, prin-
cipalmente ^
* Ibn Ealdum. Prologomhnes, tomo ii.
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181
Quer Guayangos que d'esta constituição emAicamu.
cinco corpos viesse o chamar-se ao exercito aU
camis^ de onde veiu o alcamir^ das chronicas
antigas — : nJamis, j con el articulo aljamisj si-
gnifica en arábigo el ejercito, por constar de cinco
partes que son : la delantera ó vanguardia, el cen-
tro, la zaga ou retaguardia^ y los dos cuernos ó
alas, derecha é esquierda*».
Bem Caldum dá-nos os nomes árabes d'esses Moeaddemma.
corpos : o da frente com o seu general e respectiva
bandeira chamava-se moeaddemma, vanguarda, o
da direita do príncipe meimena ou ala direita, o daiieimena.
esquerda m£icera ou ala esquerda; o da retaguarda Meieen.
saca, a nossa saga dos tempos medievos; o corpo do s.
centro onde estava o soberano com o seu estado
maior, chamava-se calb, ou coração ^. caib.
Assim se formavam os numerosos exércitos dos
omáiadas de Hespanha.
As vezes supprímia-se o corpo central e então
no centro ia o chefe do exercito, os generaes, os
estandartes, o thesouro, os serventuários, as baga-
gens.
Um official de cíitegoria superior exercia a func-
ção do que hoje chamariamos chefe do estado
maior, e estava a seu cargo o ordenar as marchas,
escolher os caminhos, tomar precauções para a
passagem dos desfiladeiros, rios, etc.
O corpo da vanguarda tinha a seu cargo abrir
passagem ao exercito, remover os obstáculos, es-
colher os sitios para acampar, descansar ou comer.
Ao corpo da retaguarda incumbia recolher os re-
tardatários ou doentes, que ficavam no caminho
e impedir que as tropas de um corpo se confundis-
^ Não me piirece acceitavel a opinião de que deva alcamiz ser
synonimo de ai ardo ou lista de tropas.
2 Gayangos. Mem. histórico esp., tomo iz, pag. 355.
' Ibn. Kaldum. Prologomhnes, tomo u.
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182
sem com as do outro. Aos corpos lateraes perten-
cia evitar surpresas do inimigo ^
Consoante a força do exercito, assim podia esta
disposição toda ser abrangida pela vista, ou esten-
der-se tanto que ficassem a um ou dois dias de
jornada um corpo do outro.
Nesta disposição tomavam posições para acam-
par ou combater ^.
Travessia doi A travcssia dos rios era feita a pé ou a nado,
para o que as tropas iam munidas de odres e ma-
terial de pontes. Para estas se cortava a madeira
das proximidades, e as traves se uniam, o melhor
possivel, com cordas ou ligaduras vegetaes, e se
coUocavam sobre cavaletes. Se era grande a cor-
rente do rio, formava-se uma espécie de fachinas
de lenha sêcca e cortiça, que se prendiam de uma
margem á outra, deixando entre ellas uma dis-
tancia sufficiente para a agua correr ; e sobre ellas,
e fortemente atadas, se estendiam taboas que ter-
minavam a ponte ^
rios.
Acampuneato. Quando acampavam, os primitivos musulmanos
abriam valas, levantavam trincheii*as em volta do
arraial, para maior segurança e para evitar sur-
presas.
Seguindo o preceito do Propheta de que a guerra
não era mais do que uma seríe de ardis, o árabe
tomara-se eximio nos estratagemas da guerra, da
pequena guerra sobretudo, e d'esses processos de
* Perez de Castro, ob. cit., pag. 61.
2 Ibn. Kaldam. Prolog, tomo ii.
3 Perez de Castro, ob. cit.
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183
surprehender o inimigo e de o trazer em constante
sobresalto se serviu constantemente, na implacável
e tremenda lucta da Reconquista.
D. Juan Manuel, recommendando a maior cau- ciudas.
tella contra as ciladas dos mouros dizia: «Et po-
nen las ciladas porque si los cristianos aguijaren
sin recabdo que los de las celadas recudan, en
gursa que los puedan desbaratar, et faceu desta
nianera a tantas, et saben tanto destas maestrias e
artérias, tambien en las celadas como en recudir
a los pasos fuertes et a las estrechuras, et en tan-
tas otras maneras, que non ha en el mundo home
que vos pudiese decir quanto saben et cuanto facen
et cuanto se aventuran cn meter los cristianos á
peoria, porque pueden acabar ellos lo que los
cumple*».
Com a passagem da primitiva vida nómada para
a sedentária desappareceu entre elles o costume
de levarem comsigo uma grande quantidade de
camellos e cavalgaduras, formando com elles os
entrincheiramentos á retaguarda ; adoptaram-se as
tendas de campanha.
Para acampar escolhia-se sitio próprio, livre de DUposiçio do
surpresas, com agua potável, viveres e lerragens
ao alcance. Eram rectangulares ou circulares os
acampamentos; no centro ficava a tenda do com-
mandante em chefe com o seu quartel general, o
conselho privado, o visir, o harém, os eunucos, o
guarda-moveis, a cozinha, os fâmulos, os escravos.
Em volta as tropas, os hospitaes, os depósitos de
armas, os mercados. No fosso a contra-escarpa era
defendida por estacas; á distancia cordões de es-
culcas, sentinellas, atalaias, postos avançados, ex-
ploradores *.
^ D. Juan Manuel. Libro de los Estados,
2 Perez de Castro, ob. cit.
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184
Segurança. Roíidas frequeiites, com uma espécie do systema
actual do santo e da senha, vigiavam o serviço de
segurança do acampamento. A um alto funcciona-
rio, com 08 seus subordinados, competia a vigilân-
cia do acampamento, tanto no que i-espeita ao ser-
viço como á policia das tropas, mercados, etc.
Parte das tropas dormiam vestidas e com armas
ao pé, para acudirem ao primeiro alarme ^
Formas de com- Por duas fórmas combatiam os árabes: a carfi^a
bater.
a fundo, em linha, em ordem de combate, como
todos os povos o praticavam, ou então por uma
maneira que lhes era muito peculiar, atacando e
retirando em seguida, para de novo voltar á carga.
Era esta a forma do ataque da cai^allaria ^.
Combate em iL A primeira maneira, diz Bem Caldum, é a mais
efficaz, a mais temivel, a mais solida e a mais leal,
e consiste em formar os homens em fileiras regu-
lares, direitos como flechas, ou como as fileiras
dos musulmanos quando fazem oração; consti-
tue-se assim uma muralha viva, difficil de derru-
bar. Era essa a formação preferível, mesmo em
vista das palavras do Propheta: «Deus ama os que
combatem em linha e são firmes como um solido
edifício», o que quer dizer que uns sustentam os
outros pela firmeza.
Por cargas ere- O sjstcma dc ataquc por cargas e retiradas
^' successivas exigia o estabelecimento, na retaguarda
da linha de ataque, de uma espécie de barricada,
formada por objectos inanimados, como pedras,
1 Ibn. Kalduin. Prologam,, 2.* parte.
' D. Juan Manuel. Libro de los Estados,
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185
bagagens, carros; ou por animaes, como camel-
los, cavallos, etc, o que constituía uma trincheira
atrás da qual os cavalleiros se iam reunir, em
s^uida á carga, voltando a ella tantas vezes
quantas necessário fosse, para abalar ou abater o
inimigo. Mejbuda se chamava essa espécie de
entrincheiramento.
Conta Benalatir que tendo o Imane Bemomare
interrogado em carta um seu general, o principe
Nuradiu; sobre a rasão por que obrigava a sua ca-
vallaria ao jogo da malha, respondeu: «Se deixás-
semos os cavallos á mangedoura tornar-se-iam
preguiçosos e incapazes de sustentar uma longa
marcha. Não saberiam fazer rapidamente a meia
volta sobre o campo de batalha quando executas-
sem a manobra da carga e da retirada».
Estas cargas faziam-se geralmente por escalões
de columnas, avançando cada uma d'estas sobre a
frente do ataque, despejando os cavalleiros os seus
carcases, n'um diluvio de settas, enfiando em seguida
no hombro o arco e carregando com a espada na
mão.
Informa Bem Caldum que nos primeiros tem- informitçsei de
po8 do islamismo as tropas mussulmanas carrega- ^^ ca^^^"»*
vam a fundo, comquanto os árabes executassem
muito bem o ataque por carga e retirada, esco-
lhendo previamente um ponto de reunião; e que
desde que ha homens, duas maneiras de combater
teem os exércitos, pela carga a fundo e pelo ataque
e retirada, sendo a primeira empregada por todos
os povos não musulmanos no decurso das gerações,
e o segundo pelos árabes e pelas berberes. Foi
Meruan U, ultimo rei da dynastia dos omáiadas,
o primeiro a pôr em pratica a foimação em corpos,
tahia^ contra Adahal da tribu de Cheibane ^
* Henri Delpech. La tacHque au xm sihde, tomo i, cap. iv.
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186
A forma de combater por 'carga e retirada,
conservaram-na sempre os árabes, e o infante
D. Juan Manuel diz d'elles: «Et sabet que non
están nin tienen que les paresce mal el foir, por
dos maneras, la una por meter los crístianos en
peoria, porque vayan en pos dellos descabdella-
mente; et la otra es por guarescer cuando veen
que mas non pueden facer».
Mas o ataque em ordem de batalha passou mais
tarde a ser n'elles a forma fundamental, não só por
terem de oppôr essa táctica á que era geralmente
seguida pelos christãos, seus adversários, mas por-
que nas guerras santas representava maior sacri-
fício e coragem. Foi para se conseguir isso, in-
forma Bem Caldum, que até succedeu que no
Magrebe os musulmanos tomaram ao seu serviço
tropas europêas (franges) a fim de constituir uma
espécie de resei^va ou núcleo de gente acostumada
a luctai* a pé firme, dando assim o exemplo aos
outros.
Preceito* par» Do seguinte trecho da arenga feita aos seus sol-
dados, na expedição de Cimn (anno 37 da hé-
gira e 657-658 da E. C), pelo califa Ali, re-
saltam alguns preceitos curiosos sobre o modo de
entrar em ataque: «Uni e alinhae bem as vossas
fileiras, a fim de que sejam como um edificio soli-
damente construído; collocae na primeira fileira os
homens que vestem couraças, e atrás d'elles os que
as não trazem; serrae os dentes, que é a melhor
maneira de fazer resaltar a espada, quando vos
derem com ella um golpe na cabeça; mettei-vos
por entre as lanças do inimigo, que isso vos ga-
rantirá melhor contra os golpes; baixae os olhos,
que assim se fortalece a coragem e se tranquillisa
o coração; permanecei silenciosos, que é essa a
melhor prova de firmeza, e a mais grave; tomae
sentido nas vossas bandeiras, não as abaixeis nem
combater.
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187
inclineis, e só as confieis a mãos dos vossos mais
bravos guerreiros ; e que uma coragem decidida e
persistente vos anime, porque pela força da insis-
tência se alcança a victoria!»
Do mesmo modo e na mesma occasiao, falia aos
Âzdites um general do mesmo califa, Maléque Be-
nalarche: «Serrae os dentes malares, lançae-vos
sobre o inimigo de cabeça baixa ; correi ao combate
como quem tem buscado por muito tempo vingar
o sangue de seus pães e de seus irmãos e á morte
se offerece ousadamente, para não se deixar ultra-
passar na sua vingança, nem deshonrar-se n'este
mundo».
Póde-se dizer que os árabes, embora obrigados
a mudar de systema de combater conforme os povos
com que luctavam, nunca abandonaram a sua ma-
maneira peculiar e original das escaramuças, dos
ataques vivos, nos quaes se succediam as rápidas
retiradas, para de novo se voltar á carga.
O infante D. Juan Manuel no Libro de los j&5to-Nap«ninsaia.
dos confirma a permanência d'esse systema na
peninsula quando diz: «Et si por ventura ven que
de Ia primera espolonada no pueden los moros
revolver nin los cristianos, despues partense a
tropel, en guisa que si los cristianos quisiesen
pueden facer espolonada con los unos que los fíe-
ran por delante et los otros las espaldas et de tra-
viesso».
Chamava-se a esse processo de combate, em
Hespanha, cargas ou espolonadas «a tornafuye».
Contra elle recommendava D. Juan Manuel as
maiores cautelas, como sendo a principal coisa a
guardar :
«Pêro sobre todas las cosas dei mundo deben
guardar que non fagan aguijadas de j)ocas gentes,
sino quando fueren todos en uno, ca una de las
cosas dei mundo en que los cristianos son mas
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188
engaiiados, et qorque pueden ser desbaratados mas
aÍDa, et se quieren andar ai juego de los mores ó
faciendo espolonadas a tornatuye; ca bien creed
que en aquel juego matarian et desbatarían cient
caballeros moros a trescientos cristianos, e ya
muchas veces gentes et huestes de cristianos fueron
desbaratadss con estes engaflos et maestrias de los
moros »•
Ordem paraiieu. Nas suas luctas com OS bjsantinos, e influen-
ciados pelos principies clássicos da guerra, sobre-
tudo de Vegecio, haviam adoptado a ordem paral-
lela, que na lucta entre os cruzados nem sempre
lhes deu a victoria, tendo tido por vezes de recorrer
aos seus antigos processos. Foram os eminentes
chefes Nuradin Xircuh e Saladin os que resus-
citaram o systema das escaramuças, combinando-o
com os principios da grande guerra, para consti-
tuir «um methodo de combate menos clássico, po-
réai mais em harmonia com o génio asiático, alem
de ser muito racional e originalissimo S).
Essa fónna primitiva de combate consistia para a
cavallaria em atacar em chusma a cavallaria adver-
saria, evitar o embate, fazendo frente á retaguarda
no momento propicio, dispersando-se no campo
para obrigar o adversário a dispersar-se também,
e em seguida atacar lhe em maior numero as frac-
ções, com absoluta certeza de êxito \
Para isso iniciava-se o ataque e emprehendia-se
a retirada tantas vezes quantas fossem necessárias,
retirando-se os cavalleiros para a retaguarda da
sua infanteria, ou mais primitivamente, como vimos,
para traz das trincheiras formadas pelos carros e
bagagens.
1 Henri Delpech. Tactique ou xiii «tèc^, tomo i, cap. ly.
^ Ainda hoje o arabe combate assim. Le general Daumas, Les
chtv. du Sahara.
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189
O ataque da infantería era começado á distan-
cia pelos archeiros como vemos praticado na
batalha do Salado, segundo refere o Poema de
Affònso XI:
Lhegó contra el Salado-
£1 rej moro de Granada,
Su bacinete dorado
En la mano su espada
Al Salado fue llegando
Adelante los arqueros
Yuanlo acompannando
Siete mill caaalleros
Adelante los arqueros
Lhegaron contra el vado,
Cometieron los eaualleros
Que pasaron el Salado.
Nas batalhas em forma o combate começava á
distancia iniciado pelo tiro parabólico dos arqueiros,
cujas settas caiam sobre a hoste christã como uma
chuva, embotando grande parte d*ellas nas rijas
armaduras dos cavalleiros bardados, mas empre-
gando-se outras efficazmente nos pontos vulneráveis
doestes, e na cavallaria ligeira, que era em maior
numero, e ha infanteria, também pouco protegida
e que estava por isso sujeita a maiores estragos ;
a besta christâ, comquanto mais rija e penetrante,
tinha menos certeza e menor alcance e rapidez.
Ao contrario doesta, que era visada ao objecto
que se pretendia ferir, os dados dos arqueiros eram
lançados ao ar, por forma a irem cair, descrevendo
uma parábola, verticalmente e com todo o seu peso,
sobre as fileiras do inimigo, ferindo-os nos hombros,
no pescoço, nos braços, no rosto, em toda a parte
onde o ferro podesse penetrar ; era necessário, por-
tanto, uma grande destreza para se formar o tiro
com precisão, em harmonia com a distancia a que
se achava o inimigo. Os árabes eram n'isso eximios.
12
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inflaeaciM do> ContrE esta táctica toda móbil, ligeira, offensiva,
combatendo á distancia ou pôr surpresa, e em que
o inimigo se tornava quasi que intangivel, tiveram
os christãos de oppôr as formações compactas, em-
pregando um systema puramente defensivo, em
que as duas armas, a cavallaría e a infanteria,
tornando-se absolutamente solidarias, oppozessem
uma mole de ferro, de couraças e escudos, contra a
qual se estrellassem os ataques parciaes dos mu-
Bulmanos.
Estes, pelo seu lado, forçados se viram também
a procurar novos processos de combate, passando
a sua tatica a ter por objectivo principal o separar
a cavallaría christã da sua infanteria, para as bater
parcialmente.
progretioa ta- É fóra dc toda a duvida qiie os árabes, não só da
liçao dos clássicos mas da pix)pna experiência,
aprenderam os seus methodos de combate, e póde-se
dizer que na sua táctica se encontram applicados
aquelles principios verdadeiramente scientificos que
desde o século x se accentuam na arte militar,
isto é: — o duplo papel de cavallaría, como arma
de tiro e de choque; o ataque d'esta em escalões
de columnas ; a funcção da infanteria, ao lado e ao
par da cavallaría ; a judiciosa combinação das ar-
mas de arremesso com as de pulso; a solidaríe-
dade das duas armas da epocha, a cavallaría e a
infantería; o bom aproveitamento do terreno; a
extrema mobilidade dos exércitos reunida á sua
solidez, de maneira a poderem desenvolver-se e
reformar- se rapidamente; o emprego das duas or-
dens fundamentaes, a parallela, imitada dos roma-
nos, e a perpendicular, com um caracter mais par-
ticular, de origem barbara; sabias regras para
marchar, estacionar, combater, que caracterisam
já uma epocha notável na historia da táctica.
Parece ter sido Amer Benalace o primeiío a dis-
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191
pôr massas pelos processos clássicos, tendo man- Princípios cim-
dado traduzir os livros de escriptores da Pérsia,
índia e Grécia, entre elles Polibio *.
Pelas transformações por que obris^aram a passar Re naieimento
OS exércitos feudaes europeus, os árabes prepara-
ram o renascimento da arte da guerra, obrigan-
do-os a aligeirar a cavallaria, a tirar a esta as
prosapias de arma independente e única, a crear
08 serviços da administração militar, a adoptar
novas formações como a mó, a cerca ou curral e
o caracol, a aperfeiçoar o armamento, a adoptar a
pólvora, que sob o influxo do génio europeu se
havia de converter no poderoso elemento transfor-
mador dos exércitos.
Dado o adiantamento da epocha, póde-se dizer Ama e mano.
que os árabes tinham conseguido, no maior grau
de perfeição, as duas condições principaes de toda
a funcção militar: a excellencia dos instrumentos
de guerra e a perfeição das combinações tácticas, —
a arma e a manobra.
Os christãos, para os combater vantajosamente,
tiveram de adoptar idênticos systemas de arma-
mento, de remonta, de formações e de processos
de combate.
NaHespanha, onde estiveram em constante lucta ^o**^«*ç»;» »«
com os musulmanos durante sete séculos, e no
Oriente, onde os foram buscar para os combater,
os christãos passaram a adoptar a levis armatura de
que faliam as chronicas, aligeirando a maior parte
da sua cavallaria, conservando apenas uma parte
pesada, como arma de reserva, para o final golpe
decisivo; porque nem o clima, nem o systema de
escaramuças dos árabes permittiam no Oriente
continuar com a immobilidade e a falta absoluta
de agilidade da cavallaria bardada.
1 Mb. arab,f citado por Perez de Castro.
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Boberto da Normandia, a quem seu irmão, o rei
de Inglaterra, havia usurpado o seu ducado em-
quanto elle fazia parte da primeira cruzada no
Oriente, deveu, diz o seu chronista, a victoria na
batalha de Tinchebrey (1106) aos processos de
combate que aprendera na Palestina *.
Aiigeiramento Ligcira cra a cavallaiía com que Baduino de
dacavaiuria-g^^g^^ rei dc Jcrusalcm bateu os musulmanos
em Ascalon, adoptando-lhe os processos de com-
bate.
Em competência com Venesa, onde o fabrico
das armas já representava uma influencia oriental,
de Damasco passaram a vir as espadas damas-
quinadasy os finos e ligeiros tecidos de malha, que
substituiram as pesadas peças das armaduras eu-
ropéas. Os perpuntos almofadados sobre a malha
augmentavam o poder defensivo da cota sem lhe
augmentar muito o peso.
Na peninsula ibérica a maior parte da cavallaría
christã é aligeirada para escaramuçar c esgrimir
com a cavallaria mourisca e para lhes armar em-
buscadas; adopta-se a cavallaria da gineta; só uma
parte da cavallaria, os homens de armas, é pesada;
tinham armadura de ferro apenas «os que espe-
ravam o inimigo em descanso»; e como a caval-
laria moura, quando travava lucta com os caval-
leiros christaos, embaraçados nas suas pesadas
armaduras, os cercava, e manobrava por forma
a fatigal-os, antes de cair a fundo, «adoptavam- se
os mesmos processos por elles seguidos, como o
fez D. Jayme de Aragão em 1268, em Murcia,
que de 600 cavalleiros só 100 conservou bardados,
e os outros 500 os armou á ligeira, divididos em
três esquadrões»; estes «sem armadura, deviam
travai' a lucta e fazel-a durar até se esgotarem as
^ AsBuetusque bdliê jeroaolymUanis,
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193
forças dos ginetes ; quanto á reserva, coberta de
ferro, não interviria senão quando findasse o com-
bate, para apanhar, n'uma carga decisiva, tudo
que ainda ficasse sobre o terreno**.
Do mesmo modo que o cavalleiro, foi também ali- o»t»iio «rabe.
geirado o cavallo; e, ainda mais, de cavallos árabes,
ou dos productos do cruzamento doestes com os
de origem europêa, se fez a remonta da melhor ca-
vallaria da idade media ; veiu a produzir-se assim
um typo médio como succedera com a táctica, e
n'esse typo se reuniram as qualidades de robustez
e força do cavallo europeu com as da elegância,
rapidez e ardor no combate do cavallo árabe.
Com a armadura e com o cavallo, modifica-
ram-se também as armas de combate. Deu- se um
movimento no sentido inverso do que se havia de
dar a partir dos fins do século xiii, a par e passo
dos aperfeiçoamentos importantes da besta, e mais
tarde da arma de fogo; foi tudo tornando-se mais
pesado e menos Inovei: armas, armaduras e ca-
vallos.
Em todos os tempos, até mesmo nos da deca- ?»■•«•««>■ «»
dencia, como nos últimos do dominio árabe na
península, foram consideradas condições indis-
pensáveis para a victoria: — melhores tropas, me-
lhores armas, melhor disciplina e fii^meza no com-
bate.
Não só em tratados de guerra, mas até em poemas
consagrados a feitos guerreiros, se encontram con-
signadas máximas e regras sobre a arte militar.
São dignas de serem memoradas as seguintes
estrophes do poema, já mais de uma vez aqui
1 Cit. de Delpech.
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194
citado, de Abu Becre Açaraíi, poeta hespanhol do
século XII, consagrado ao príncipe Taxefin, derro-
tado pelos almohadas:
«Sobre a estratégia te offereço indicações a que,
antes de ti, já os reis da Pérsia ligavam grande
importância. . .
«Enverga essas duplas cotas de malha que
Tobba, o hábil artifice, legou aos vindouros,
«Toma uma espada indiana de lamina delgada;
é mais cortante, e penetra melhor nas couraças.
«Tem á mão um corpo de guerreiros, montados
em cavallos rápidos, que te sirvam de fortaleza
inabalável.
«Em cada alto entrincheira o teu campo, quer
persigas o inimigo vencido, quer seja elle quem te
persiga.
«Acampa á beira dos rios ; não os transponhas
para acampar; sirvam elles para separar o teu
exercito do do inimigo.
«Ataca-o de noite; apoiando-te na justiça, terás
n'ella o teu melhor sustentáculo.
«Quando os dois exércitos estiverem apertados
no lugar do combate, que as pontas das tuas lan-
ças alarguem o campo de batalha.
«Ataca immediatamente sem te preoccupares com
coisa alguma; mostrar hesitação é perderes-te.
«Procura para esclarecer o terreno gente ousada
e que se distinga pelo seu provado amor á verdade.
«Não dês ouvidos aos mentirosos que te trou-
xerem boatos alarmantes; um mentiroso convicto
não merece consideração alguma».
Eesumâmos agora os factos comprovativos dos
principies que, como deixamos dito, representam
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195
acquisições feitas, no sentido de um verdadeiro Precumore. da
progresso da arte na guerra, pelo gemo árabe, m- guerra moder.
fluindo, por um lado, e, deixando-se por outro,
influenciar pelo génio e feitio europeu, peninsular
principalmente.
Progressivo como era o povo árabe, pôde di-
zer-se que, ao encontrar-se em contacto com a civi-
lisação européa, tinha já adquirido, sob o ponto de
vista militar, aquelle desenvolvimento que lhe dá
o legitimo direito de poder ser considerado o ver-
dadeiro precursor da moderna scieucia da guerra,
ao passo que foi também a causa immediata dos
progressos realisados pelos christãos nos diversos
ramos dos conhecimentos militares.
Encontra-se já n'essa epocha uma theoria a qucTheoria da
obedecem as operações de guerra e o emprego *^*"*'
das tropas e das armas.
A cavallaria, comquanto nem sempre se subdivi- papei da earai.
disse em duas espécies, tinha comtudo, como vi-
mos, duas funcções distinctas: a do tiro e a do
choque. De longe crivavam o inimigo de settas,
que mesmo na retirada sabiam despedir com pres-
teza e mestria, approximando-se das fileiras inimi-
gas, e, em momento propicio, carregavam de lança
em riste, ou com o sabre na mSo. O cavallo estava
admiravelmente adestrado para estes dois fins.
Consoante a phase do combate e a qualidade doTiroeearga.
inimigo, assim se empregava ou o tiro ou a carga;
do mesmo modo, o cavalleiro era em estremo destro
no despedir a setta certeira a grande distancia e
no manejar o cavallo.
O systema das escaramuças que, segundo BemEtearamaçaa.
Caldum, fora em parte abandonado para se ado-
ptar o processo táctico dos christãos, em ordem
unida e em cargas cerradas, breve foi resusci-
tado, como vimos, principalmente por Nuradin no
Oriente; e para nos dar uma idéa de como eram
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196
esses choques e retiradas successivos basta a se-
guinte descripção de um episodio da batalha de
Tiberiada (3 de julho de 1187), feita por Amale-
que Alafedal ;
Gargai anecesii- «Eu estava ao lado de meu pai n'esse combate . . .
''*'' Quando o rei dos francos se achou sobre a collina
com essa tropa de cavalleiros, deu uma carga
admirável nos musulmanos que estavam em frente
d'elle, e impelliu-os até onde estava meu pai.
Olhei para este e vi que estava afflicto, que
mudava de côr e com a barba na mão avançava
gritando: O diabo se convença da mentira! Os
musulmanos voltaram então á carga contra os
francos, que bateram em retirada e tornaram a
subir á collina. Quando vi que os francos retira-
vam e os musulmanos os perseguiam, exclamei,
cheio de contentamento: Pusemol-os em derrota!
Mas os francos voltaram e deram uma nova carga
como a primeira, de modo que repelliram de novo
os musulmanos até ao sitio onde meu pai estava.
Este procedeu como da primeira vez, e os musul-
manos, voltando a carregar, os repelliram até á
collina. Novamente exclamei: Pozemol-os em fuga!
Porém meu pai, voltando-se para mim, disse-me:
Calla-te*».
Depois doestas cargas successivas, os pesados
cavalleiros de Lusignan, exhaustos pelo calor e
pela fadiga, acabaram por se apearem, sentando-se
no chão. As cargas dos musulmanos haviam-os
fustigado até os extenuar, como a ressaca do mar
fustiga as fragas da riba!
Outro ■ exem- Um outro cpisodio uos dá perfeita idéa do que
era o systema das cargas em escalão de columnas,
com o emprego alternado do tiro e do choque; foi
na batalha de Mançura (1250).
* Delpech, ob. cit., tomo i, liv. ii, cap. ii.
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197
A S. Luiz fora habilmente separada a sua infan-
teria da sua cavallaria, por fintas e ataques de longe
que trouxeram os christãos á perseguição desor-
denada; então a cavallaria árabe cercou-os por
toda a parte, fez avançar a cavallaria por esqua-
drões ; o primeiro approximou-se, despojou os seus
carcazes e retirou para a retaguarda; seguiram-se
successivamente os outros esquadrões, procedendo
pela mesma forma; quando já muitos dos homens
e cavallos do inimigo estavam fora de combate, os
árabes suspenderam no braço esquerdo os arcos,
puxaram das massas e das espadas, e carregaram,
em cargas successivas de esquadrões *.
Nas cargas commandadas por Saladino na bata-
lha de Arçufe (1 181) e em outros episódios da guerra
dos cruzados encontramos a mesma manobra; e
que na peninsula era usado o mesmo processo de
guerra prova-o, por exemplo, a recommendação
de D. Jayme de Aragão, quando cercou Murcia
em 1268, para que houvesse cautela e se tomas-
sem todas as precauções, pois, «segundo era cos-
tume das gentes árabes, estas cercavam os caval-
leiros christãos cobertos de armaduras de feiTO e
lhes andavam de roda até cansal-os, antes de os
carregarem a fundo: — «cansaven anan entorn
daquels que tenien cavais armats^.»
E o processo de combate que Delpech descreve Discripçio do
, -. *■ combato.
por esta forma:
«A cavaliaria ai-abe, ao ver approximar-se uma
carga de cavallaria dos christãos dispersava-se em
^ «II Turz aceinterent les noz tout entor, et traistreDt si grani
pi ente de saietes e de quarríaux, que pluie ne grelle ne feist une
8Í grant oscurté, si que inonlt i ot ae navrez de nos genz et de lear
chevaux. Quant les premieres routes de Turz orent vuidié touz leur
carquoiz et tout trait, il se retraistrent arrierez, mes les secondes
routes vindrent tantost traistrent encorez plus espessement assez
que navotent fait li autre. Ms. de Rothelin H, Occi., cit. Delpech,
tomo II, pag. 606.
2 J. de Aragon, cit. de Delpech.
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198
todas as direcções. Para a alcançar, os cavalleiros
christãos tinham também de se dividir em uma
grande quantidade de pequenos pelotões. Estes,
perseguindo á rédea solta objectivos divergentes,
achavam-se em breve demasiadamente afastados
uns dos outros para se poderem reunir. Então os
árabes voltavam em numero infinitamente supe-
rior, e envolvendo cada trosso isolado carrega-
vam-no em columna e isto de uma maneira con-
tinua. O trosso christSo, pouco numeroso para
poder imitar este methodo de combate, lactava sem
descanso, emquanto os adversários iam descan-
sando alternadamente. N'este jogo não havia força
physica que se não esgotasse.»
O combater a cavallo fora sempre cargo honroso
entre os árabes; antes do Propheta elles ser-
viam -se na guerra de cavallos, camellos e onagros;
estes dois últimos, porém, foram a pouco e pouco
postos de parte.
Foi Ámer quem primeiro organisou a cavallaría
árabe, ao invadir o Egypto; formou poderosos cor-
pos com 4:000 cavallos — adi se chamavam — , e
unidades de 100 cavallos, correspondentes a um
esquadrão *.
peôM. Quando entrou em Hespanha o exercito mu-
sulmano era compostos de gente de cavallo e
gente a pé *, «infantes berberes educados por Ju-
lião na táctica romana e endurecidos nas recentes
guerras contra o bizarro Muça^», mas foi nas suas
luctas com o peninsular na Europa, e com os
* Ms.y cit., por Perez de Castro.
2 D. Eduardo Saavedra, baseado nas informações de Benadari,
de Dabi, e do Silense, qnalifíca de paramente phantastico quanto a
penna*de elegantes escríptores se tem comprasido em bordar a
respeito da vertiginosa carreira das nuvens de ginetes árabes. EtU
sobre \a inv. de loa arah, en Esp., pag. 71.
5 Idem.
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199
cruzados no Oriente, que a sua infantería se creou
e se desenvolveu, na necessidade de se oppôr so-
bretudo aos peões que em toda a Hespanha, e
desde tempos immemoraveís, representavam um
importante papel na guerra.
Segundo o testemunho de D. Juan Manuel, o
que os mouros mais temiam entre nós eram os
besteiros e os peões: «et sefialadamente los balles-
teros et los peones, que es cosa de que se recelan
mucho los moros '.»
Os próprios chefes mouros passaram a combater
muitas vezes a pé, e a preoccupação de consolidar
e instruir devidamente a infantería, para o fim de
os habituar a combater a pé firme, e em massa
compacta, levou-os ao ponto de alistar nas suas
fileiras, como vimos, gente christâ que servisse de
núcleo de resistência e elemento de disciplina no
combate.
Combatendo com o arco e flecha e com a lança, Formaçsei de
e mais tarde também com a besta, na oflfensiva a **"* * '
infantería era muitas vezes encarregada de, com o
tiro, iniciar o combate; a sua acção passou a ser
quanto possivel de accordo com a cavallaría. Na
defensiva adoptou dos christãos o principio da
immobilidade, que, muitas vezes, tratando-se de
escravos, tiveram de conseguir prendendo os peões
uns aos outros, com cadeias, como na memorável
batalha das Navas de Tolosa, onde três vezes, em
cargas successivas, a cavallaria christã não logrou
romper aquellas verdadeiras muralhas humanas,
eriçadas de flechas e atrás das quaes Miramolin se
aparapetara.
«E los moros, diz Rodrígo de Toledo, ficieron
en cima de un cabezo a manera de plaza de las
astas de las saetas, e de dentro estaba una haz
^ D. Juan Manuel. Libro de los Estados.
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200
buena de gente de pie. E en médio de esta plaza
se assento el Miramolin . . . . E fuera de aquella
plaza estaban otras haces de peones que hicieron
gran cava e metieron en ella hasta los hinojos: e
estaban dos a dos unos delante e otros detrás e
tenian los nmsclos atados unos con otros: asi que
estuviessen firmes en la lid, por quanto estavan
atados e tapiados e no podian huir *.»
Alem d'esta espécie de reducto derradeiro, a
infanteria tinha ainda, n'esta batalha, as primeiras
posições á frente da cavallaria, formando os bes-
teiros á retaguarda dos piqueiros.
cavaiiaru apea- Sc acrcditarmos na afirmação de Rodrigo de
Toledo dá-se mesmo o facto notável de já então
na peninsula os cavalleiros se apearem no com-
bate, como séculos mais tarde fariam os portugue-
zes em Atoleiros, a exemplo do que n'esta epocha
era frequente, como em Crecy, Pochero, Cocherol,
Auray, Navarette, Monteil, etc.^i
E não era nada para estranhar que os mouros
ahi praticassem o que vinte e um annos antes fora
usado, por exemplo, pelos cavalleiros de Ricardo
Coração de Leão n'uma sortida de forrageadores
em Bombrac.
Infantaria. Comquauto a infanteria árabe nunca viesse a
ter a forte organisação e a disciplina da infanteria
europea, por serem avessas ao seu espirito de raça
e tradicional individualismo as normas austeras de
um combate a pé firme, a verdade é que na penin-
sula ella attingiu um alto grau de solidez, distin-
guindo-se em innumeras batalhas, onde a vemos
empregar regras e principies estabelecidos pela
melhor táctica do seu tempo.
* Mem, hist. de Alonso. 1.* parte Append., pag. 127. Cit. de Del-
pech, tomo i, pag. 321.
2 Bonaparte. Eludes sur Vartillerie, tomo i, pag. 22.
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201
A solidariedade absoluta entre a infanteria e a solidariedade
cavallaria, que os christaos tinham estabelecido '**'*'™"
como norma inflexível, por ler vantagens sobre o
táctica movediça e. dispersadora dos árabes, leva-
ram estes não só a manobrar por forma a separar
nas fileiras inimigas esses dois elementos funda-
mentaes, mas também a adoptar esse principio,
não expondo cada uma d^essas armas sem o apoio
indispensável da outra.
Na batalha da Navas de Tolosa lá vemos a ca-
vallaria mussulmana á retaguarda das fortes linhas
da infanteria, arqueiros e piqueiros, repellindo duas
vezes as cargas da cavallaria christã; depois doesta
ter sido fortemente escarmentada pelo tiro dos
peões, e não ter podido romper a dos piqueiros.
Só depois de três successivos ataques, quando
toda a cavallaria dos christaos coUigados, n'um
supremo esforço de todas as reservas, conseguiu
derrotar e desmantellar a infanteria, é que a ca-
vallai*ia musulmana, sem o appoio da arma sua
irmã, foi também, pela sua vez, derrotada.
N'esta mesma batalha vemos os árabes formar corrai.
o que na linguagem do tempo se chamava entre
nós cerca ou corrcU, pois outra coisa não era a for-
mação empregada para, no cabeço onde se conser-
vava o Miramomelin, se estabelecer a muralha hu-
mana, que pretendia protegel-a.
Segundo a Lei das sete partidas «corral o cerca
facien para guardar sus reyes que estudiesen en
salvo : et esto facien de homes de pie que los pa-
raban en três haces, unos en pos otros, et ataban-
los a los pies por que non se pudiesen ir, e facien-
les tener los cuentos de las lanzas fincadas en
tierra, e las cuchiellas enderezadas contra los ene-
migos; et possien ante ellos piedras o dardos, o
ballestaS; o arcos, o armas con que pudiesen tirar
e defenderse de luefle ; e esto facien por tener hon-
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202
rado su seiior que los enemigos non pudiessem
Uegar a el nin facerly mal ; et que si los suyos
venciecen que sol no semejase que el se moviera
de un logar nin mostrara que los temia en nada:
et si fuesen vencidos que fallasen cobro et esfuerzo
alli do el estudiesse porque pudiesen ellos despues
vencer**.
Compare-se esta definição com a passagem, acima
transcripta, de Rodrigo de Toledo, e ver-se-ha que
se trata' da mesma formação defensiva de com-
bate. É pai'a esta ordem de formações, como por
Mó e moro. cxcmplo Q, mó 6 O murOy também definidos nas
Sete Partidas^j que, segundo Bem Caldum, os so-
beranos árabes do Magrebe recrutavam tropas da
raça christa^
Na batalha do Salado vemos os mouros formar
e dispor as suas tropas em harmonia com o que a
táctica preceituava como o mais efficaz na guerra:
as azes de cunha contra as azes de corral «entrando
por entre os christãos e fendendo-os», as a^es de
corral «para refrescar gentes na lide e para se re-
colherem hi 08 mal chagados e pêra sairem todos
a lidar iuntamente se cumprisse os que perdessem
os cavallos pêra cobrarem hi outros», as azes lonffos
e as azes dobradas, conforme as circumstancias;
o emprego dos arqueires e da cavallaria, consoante
as phases da lucta; a disposição das clássicas li-
nhas de combate: a dianteira, as costaneiras e a
* Partida ii.
' «Et la muela facien otrosi porque si loa enemigos los cercasen
en derredor que los fallasen todavia de cara contra ellos defendien-
doee». «. . .£n el muro fecieron para quando veniesen los enemigos
que pudieeen meter todo lo sujo en médio para tener en salvo, por-
que non gelo pudiesen desbaratar ni furtar». Partida ii.
' «Les souverains maghrebins eurent donc besoin d'un corps de
troupes habituées à combattre de pied ferme, et ils les prirent che2
les Européens. Pour former le cerde des troupes qui les entouridt
pendant la bataille, ils prirent des soldats de cette race». Ibn Kal-
dum. Frologomhnes, trad. Slane, tomo ii, pag. 82.
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203
caga, para ataques de frente e de flanco ; a funcção
judiciosa das reservas, etc*
A acreditar nas informações colhidas por Perez
de Castro no já referido tratado, os árabes conta-
vam diversas espécies de formações: a meia lua,
com a parte concava para a frente da batalha;
a meia lua, com as pontas abertas em forma de
azas; o quadrilátero; a meia lua, com a frente
convexa para o lado do inimigo; o losango ou
rhombo, o triangulo, e o annel*.
Seudo assim, a primeira e segunda seriam em-
pregadas para envolver o inimigo ; a quarta contra
um ataque envolvente ; o triangulo, correspondente
á formação em cunha, para romper a formação
inimiga; as outras formações para a defensiva,
correspondendo o quadrilátero ao nosso murOy e
o annel á cerca ou corral.
Inuumeros exemplos poderíamos citar ainda
para mostrar como outro principio de toda boa
táctica, o aproveitamento do terreno, o conheciam
também os árabes, e o applicavam muitas vezes
vantajosamente, tirando partido das montanhas,
dos valles, dos rios, dos bosques, de todas as de-
fesas naturaes, emfim, e as souberam também
aproveitar para a cónstrucção de obras de defeza,
das quaes ainda hoje muitas mostram na peninsula
a actividade guerreira e a sciencia militar d'aquelle
povo. As fortes posições occupadas pelos mouros
na batalha das Navas de Tolosa, na Serra Morena,
seriam inexpugnáveis, se as hostes christãs não
tivessem tido conhecimento por um pastor árabe
dos caminhos que os levaram, depois da vã tenta-
tiva de um ataque de frente, a torneal-as. Ainda
assim a defeza ali foi formidável.
1 Os livros de linhagens. Descripção da batalha do Solado. Por-
tugaliae Monumenta.
^ Perez de Castro. Ob. cit., pag. 61.
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204
Já na invasão da península, nota o Sr. Eduardo
Saavedra, que a estudou minuciosamente, Taric
«longe de ir buscar aventuras ás planicies gere-
zanas, não quiz perder o apoio das montanhas
nem a proximidade dos seus barcos, e esperou
Rodrigo no porto de Facinas, cuja importância es-
tratégica, para dominar a um tempo os caminhos
de Vejer e Medina, foi posto em relevo pelo illustre
general Arteche», e conhecidas as intenções do
seu adversário, se adiantou até o avistar, «apoiando
a sua esquerda no lago, e a sua direita nos últimos
encostos da serra dos Tahones, com as suaves
vertentes do arroio Cel.emim aos seus pés, e as
charcas e lodaçaes do Barbate, mais longe, na
frente*».
Árabes e christãos iam aperfeiçoando e ao mes-
mo tempo combinando, unificando os seus meios e
processos de guerra, podendo dizer-se que, por fim,
mais se differenciavam pelo traje do que por outro
qualquer característico, e muitas vezes nem isso.
Nobiliário attribuido ao conde D. Pedro, filho
de El-Rei D. Diniz, fallando de um tal Tello
Affonso «que lidou com os filhos de Escalliola a
par de Argona sobre as páreas cento por cento»,
diz que esses filhos de Escalhola «forom os melho-
res caualleiros que ouue antre os mouros em aquell
tempo : e mataromsse o» cauallos todos de hmima
parte e da outra e brítarom em ssí as lamças e as
espadas e as maças e os cuitellos e punhaaes e nunca
se vemcerom huuns nem outros ; e os mouros e os
christaãos todos amdauam armados de perpontos e
longas e de brafoneiras, e davomse com ellas atáa
que cansarem huuns e os outros e non forom vem-
eidos huma parte nem a outra*».
1 £. Saavedra. Eat sobre la inv. de la arab. en Esp., pag. 67.
* Livro de linhagens do conde D. Pedi*o, titulo xv. PortugaUat
Monumenta.
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205
A esta igualdade de armamento correspondia a
semelhança dos processos de combate, como na
batalha do Salado, em que vimos que da parte dos
mouros se empregaram os dispositivos e formações
mais preconisadas na sciencia da guerra da epocha.
Desde o seu refugio nas Astúrias, os neo-godos
procuraram vivificar a alma goda pela resurreiçao
das leis, das tradições, dos hábitos visigotliicos;
mas o dominio árabe, durante sete séculos, havia
transformado completamente a maneira de ser do
antigo povo romano-godo que dominara na penin-
sula. Destas duas causas, destas duas tendências,
destas duas correntes, se gerou a sociedade, o povo
que se encontrava em toda Hespanha, ao fundarse
a monarchia portugueza, povo em parte romano,
sobretudo no que respeita a leis, em parle teuto-
nico, principalmente nas tradições, e em muito
árabe, pela acção secular de um povo mais tran-
sigente e mais culto.
Não podia, portanto, deixar de confundir-se,
mesclar-se, unificar-se também a arte da guerra,
como se unificavam as demais artes e as industrias,
a sciencia, os costumes e as raças ^
D'ahi o caracter especial dos primeiros tempos
da nacionalidade portugueza, que vamos estudar.
1 Alem dos exemplos que apresentei no capitulo anterior da fu-
são do sangue árabe com o neo-gothico nas famílias de maior nobreza
de Portugal, encontramos, por exemplo, no precioso Livro de Li-
nhagens do conde D. Pedro inúmeros exemplos a citar : Na descen-
dência do conde D. Henrique, cuja uma filha casara com o filho
do conde Vermuin, lá temos D. Aldara Lopes, que é neta de uma
moura de Salamanca; D. Soeiro Mendes tem de uma moura de San-
tarém um filho D. Gonçalo Soares Mouro; um neto de Gonçalo
Mendes da Maja, o Lidador, D. Mem Viega, casou com a filha de
um mouro de Toledo, Fernão Afibnso, christào novo; e tantissimos
outros, cheios de descendências aumerosas e i Ilustres. Portugaliae
Monumenta. — Escriptores, pag. 173, 182, 289, ctc.
13
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o CONDADO DE POETUGAL
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o CONDADO DE PORTUGAL
CAPITULO I
Um episodio da Reconquista
UNCA a bri-
lhante epopeia
da Reconquis-
ta, que tivera ^
emCovadonga
o seu prologo
heróico, levara
mais alto o seu
esforço; estava
no auge da sua
gloria! AíFon-
so VI de Cas-
tella represen-
ta essa culmi-
nação luminosa, entre tantos reis esforçados e illus-
tres, entre tantos heroes e martyres, que, com o
seu sangue e o seu braço iam erguendo, dia a dia,
o throno de oiro em que se havia de assentar Isabel
a Catholica.
A constituição do Condado Portucalense, cellula ^ii^^^^^''^ ^°^"-
fundamental do reino portuguez, 6 um episodio da
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210
Reconquista. Nao quizera o conquistador de Toledo
crear apenas uma situação a sua fillia Tareja,
havida de uma das muitas mulheres que amara;
tendo levado o seu dominio até Chantarin (Santa-
rém), ao norte da provincia de Belatha, para as-
segurar a base estratégica do Tejo, houvera ne-
cessidade de crear nm condado fronteiriço que
guardasse em respeito os moiros do Garb, e or-
ganisasse algaradas de conquista n'esses apetecidos
territórios onde Lixbona (Lisboa) e Shelb (Silves)
eram empórios florescentes, e duas chaves de do-
minio no extremo Andaluz. Lisboa, juntamente
com Cintra, já mesmo tinham feito parte do impé-
rio christao.
Confiando a Henrique de Borgonha que, ao seu
lado e em seu serviço, manifestara dotes de esfor-
çado guerreiro nas rudes campanhas contra a in-
vasão dos almoravidas africanos comandados por
Inçufe, Affonso VI, rei de Leão, Castella e Galliza,
cujo sonho era levar os seus fossados até as arribas
do Mediterrâneo, expulsando da Peninsula os mu-
sulmanos, dividira militarmente o seu território em
condados, incumbidos de manter as conquistas
realisadas, e de as adquirir novas, no encalço de
um ideal commum ; e d'entre esses era, decerto, dos
de maior responsabilidade o condado de Portugal,
pelos importantes territórios musulmanos que de-
frontava e alcateava.
Teremos ainda de esboçar o quadro geral da
Estudo da Ke. Reconquista, em cujos episódios tiveram os por-
conquisu. tuguczcs um papcl importante, quer na integra-
ção do nosso território, quer nas brilhantes cru-
zadas das Navas de Tolosa e do Salado; é isso
indispensável, para a harmonia e proporção doeste
trabalho, e para a comprehensão dos factos que
interessam á nossa historia, os quaes não podem
ser estudados senão nas suas relações com a
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211
historia geral, não só da Hespanha, mas dos
paizes de onde recebemos inspirações, influxos,
modelos e auxílios. Por hoje tomaremos como ponto
de partida a época em que se constituiu o condado
de Portugal, analysando, em ligeiro escorço, a si-
tuação da peninsula n'esse momento e a doesse con-
dado dentro do grande estado christão, em cres-
cente progresso.
Fernando, filho segundo de Sancho o Maior de Pcmando, rei
XT . -]• • N* do Castella e
iSavarra, a quem seu pae por morte, e na divisão LeSo.
dos vastos territórios que conquistara, deixou her-
deiro do condado de Castella, que militarmente
occupára e dos seus recentes domínios leoneses
entre os rios Pisuerga e Cea, logrou por um acaso
da fortuna reunir sob o seu poderio os reinos de
Castella e de Leão. Por morte de Sancho o Maior,
Bermudo III, rei de Leão, que por aquelle fora
despojado da maior parte do seu reino, rehavia sem
esforço os seus antigos domínios, voltava á capital
do seu reino, cujas rédeas pretendia reassumir.
A mão armada quiz reconquistar no anno seguinte
os territórios entre o Pisuerga e Cea; mas sendo
atacado junto do Carrion pelas forças combinadas
de Fernando e de seu irmão Garcia, rei de Na-
varra, succumbiu nas mãos doestes na batalha de
Tamaron (1037), e passando a successão do seu
reino a sua irmã D. Sancha, por falta de varonia,
a Fernando de Navarra, seu marido, vinha a caber
também a coroa de Leão.
Monarcha disciplinador, buscou, por um lado, a 8u» ©br»,
apaziguar as dissensões que lavravam entre os seus
vassallos e cimentar no espirito tradicional das
leis e dos costumes gothicos o caracter fundamen-
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212
tal do seu reino, onde tantas influencias diversas
lhe dav^am unia feição incaracteristica, própria dos
períodos de transição, e, por outro, ampliar os seus
dominios. O concilio de Coyanza (hoje Valência de
Don Juan) de onde saíram, á maneira dos antigos
concilios de Toledo, tantas leis vivificadoras das
crenças e doutrinas de outr'ora, é um marco millia-
rio na historia da evolução neogotliica na Penin-
sula. A derrota inflingida em Atapuerca, perto de
Burgos, a seu h-mão D. Garcia de Navarra, que lhe
invadira o reino e que succumbiu n'uma embos-
cada, derrota que lhe permittiu apoderar-se de
Najera e dos povos da direita do Ebro; a tomada
ao Vali de Uadajoz das praças de Ceia, Vizeu,
Lamego, dos hoje extinctos Castros de S, Justo
e Tarouca*, (1057); a vassallagem imposta ao rei
mouro de Saragoça ; a posse de San Estevan de
Gormaz e outras fortalezas; as incurções arma-
das desde Medinacelli a Tarragona (1058); as ope-
rações nos territórios d'alem do Guadarrama, pondo
cerco apertado a Alcalá de Henares, e obrigando
a tornar-se seu tributário a Almamum, rei de To-
ledo (1060); a vassallagem de Almotadide, rei
* Tudense. Hesp, Illtisfr. 93". — Referindo-se a esta conquista e
á opinião do Tudense de ser difficii dizer onde estivessem situadas
as fortalezas de S. Justo e Tarouca, escreve Fr. Manuel da Rocha: —
»De dous castellos, a quo ainda hoje chamão Castros, contao os na-
turaes, que forâo em outro tempo dos Mouros; hum sobre ciado
esquerdo do rio Barósa, cujos vestipos se vem em hum alto monte,
que se chamou Castro Rey, e em Escrituras do Real Mosteiro de
S. João de Tarouca achey ser a Tarouca antiga: Ubi quondam fuit
Tarouca; outro sobre o lado direito da corrente do mesmo rio, im-
minente á Villa de Mondim. Em ambos se descobrem yestigios de
Fortaleza; e no segundo dos dous se acharão n^estes annos próxi-
mos vários instrumentos de guerra, como sâo, ferros de lanças,
martcUos, e outros mais, entre os quaes se acharão também algumas
moedas dos Imperadores Romanos, que conservo em meu poder, e
entre ellas huma do Constantino Júnior. E ponderando eu o que
Tudense relata, não deixo de formar juizo, de que estes sao os Cas-
tellos mencionados, que destruio El Rey D. Fernando, os quaes pe-
las moedas que nelles se acharão, me parecem ser ainda muito mais
antigos e do tempo dos Romanos.» — Portugal Benatcido, pag. 168
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213
de Sevilha (1063); a rendição de Coimbra (1064); chega & coim-
depois de um cerco de seis mezea, dando o Mon-
dego por fronteira ao reino christão, e finalmente
(1065) as correrias até o reino de Valência, em
auxilio de Almamum, que ficara alliado e amigo do
rei christaOí tudo isto representa um engrandeci-
mento considerável nos domínios e prestigio do seu
estado e a preparação de futuros importantes em-
prehendimentos da Reconquista. Por isso Fernando
foi justamente appellidado o Magno.
Coramettera porem o seu amor de pae, e a idéaDwiBaodoroino
Tl . . . « , 1 por saa morte.
errada de que assim evitava futuras desavenças, o
mesmo erro que já tantas perturbações trouxera á
grandiosa herança territorial de Sancho, o Maior.
Pelos seus três filhos repartiu, em resolução fir-
mada em cortes, o seu nascente império, legando
a D. Sancho o reino de Castella, desde o rio
Pisuerga até ao Ebro, a D. AíFonso o reino de
Leão com Astúrias e Transmiera, até o Deva, e a
D. Garcia o da Galliza, com as cidades de Vizeu.
Lamego, Coimbra e outras villas e logares em Por-
tugal; ás suas filhas deixou: a D. Urraca a cidade
de Zamora, e a D. Elvira a de Touro.
Ficava assim retalhado o que tanto sangue,
tanto esforço e tanta fortuna haviam logrado reunir
nas mãos de um só homem, creando a esperança
de ver consolidado um poder assaz forte para se
impor aos múltiplos estados em que se dividia a
Hespanha musulmana, e para conter as alterosas
vagas humanas, que vindas de Africa, ameaçavam
subverter e subplantar o poderio christão.
Alem de que, essa partilha do reino ia contra protesto de d.
08 tradicionaes principies da legislação visigothica,
que mandava passar indivisa a quem a eleição in-
dicasse, o que geralmente recaía no primogénito
do rei, quando senão tornava indigno de sufrágio.
D. Sancho, o primogénito, assim o fez sentir ao pae,
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cias do erro.
214
mesmo em vida, apoiado no parecer de muitos pró-
ceres do reino.
As couseqaon- Estava lançado o gérmen funesto de futuras dis-
senções e guerras profundas, Alexandre Herculano
attribue esta divisão, nâo tanto ao amor do príncipe
para com os seus filhos, como ás circumstancias
que haviam acompanhado o crescimento da mo-
narchia fundada por Pelagio, que tendia constante-
mente a desmembrar-se em pequenos principados.
€ Palpando esse espirito de desmembraçao, que
nascia das cousas, depois que os estados christãos
adquiriram pela conquista mais remotos limites,
Fernando Magno procurou que as tendências de
separação, em vez de aproveitarem a estranhos, re-
vertessem em proveito dos membros da sua familia,
e que assim se evitassem as luctas civis, cedendo
a essas tendências, em vez de tentar, talvez inutil-
mente, reprimil-as * » . Se isto assim fosse, mais forte
rasao teria D. Fernando para não auxiliar, antes
combater, esse espiríto separatista; tudo o aconse-
lhava a reunir os elementos dispersos e nao a di-
vidil-os.
Pelo respeito que consagrava a Dona Sancha, sua
mãe viuva, nâo rompeu desde logo D. Sancho II
as hostilidades contra os irmãos, apezar do pro-
testo que mesmo em vida do pae formulara.
Biinciio_ contra Ambicioso 6 iusoffrido, porém, voltou as suas
attenções para a Navarra; ha quem diga, todavia,
que foi D. Sancho de Navarra quem aproveitou o
ensejo de ver assim dividido o grande estado que se
formara, á custa também dos despojos do seu reino,
para rehaver Najera e todo o território até á ri-
beira do Ebro que Fernando Magno lhe arrebatara.
Fosse como fosse, é Sancho de Castella quena
invade os teriitorios de Sancho de Navarra, o qual
1 A. Ucrculano. UiaUnna de Portugal, — Introd.
^'«va^^a.
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215
se allia com Sancho Ramirez, rei de Aragão, daii- Bataiha dos tros
do-se a batalha que se passou a chamar dos três ®*"''^®'-
SancJws, ou dos três Primos^ nos Campos da Ver-
dade, nos plainos onde se fundou mais tarde a ci-
dade de Vianna, perto de Logroíio.
Derrotado, e fortemente escarmentado o caste-
lhano, viu os seus domínios por sua vez invadidos
por navarros e aragonezes, arrancando á coroa de
Castella tudo que ella lhes havia tirado, na Rioja
principalmente (1067),
Figura pela primeira vez n^esta campanha, como Rodrigo Dia^ de
alferes mór de D. Sancho II, Rodrigo Dias de Bi- ^^^^'''
var, que com o cognome de Cid, tâo famoso se havia
de tornar depois na historia da Reconquista, dei-
xando bem accentuado o typo de um condotieri
dessa epocha, com quanto desse origem também a
muita lenda *.
D. Sancho II, que anhelava por uma desforra Bauiha de Lian-
para as suas armas desprestigiadas, mal sua mãe
cerrou os olhos á luz ten-ena, levantou a campanha
da reivindicação dos seus direitos á integral herança
de seu pae, e invadiu Leão, vencendo na batalha
de Llantada (hoje Plantadilla) seu irmão Affonso
(1068); mas nao proseguindo na lucta por ter sido
considerável o desfalque das suas forças. Três
annos depois (1071) renovaram-se as hostilidades;
em Golpejar, nas margens do rio Carrion, se en- Batalha do goi-
trechocaram os dois exércitos, cabendo doesta vez ^*'^""
a victoria aos leonezes, a cujo lado combatiam
também gallegos.
Fora pactuado previamente que o vencido ce-
deria o reino ao vencedor; na boa fé, D. Affonso de
Castella não só não perseguiu o adversário, mas
descansou e abandonou a vigilância dos seus
1 É curioso o estudo feito por Dozy, sobre fontes árabes, da
individualidade do Cid. — Becherches. T. ii.
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n
216
Traiçío do D. uiTaiaes; n'essa madrugada, por conselho de Rodrigo
Dias de Bivar, que não só de bravura, mas de ardis
e traições formara o seu grande renome, D. Sancho
surprehendia e atacava rudemente o irmão, fa-
zia-o prisioneiro, e mandava-o sob custodia a Bur-
gos, obrigando-o depois a entrar no mosteiro de
Sahagum (S. Facundo).
Evatio do D. D' aqui se evadiu D. AflFonso, e foi acolher-se á
A onio. hospitalidade de Almamum, o alliado e amigo de
seu pae, em Toledo, mal suppondo, n'aquelle negro
transe da sua vida, a sorte brilhante que o aguar-
dava!
Chegara a vez da Galliza, onde iam grandes dis-
senções entre os barões e senhores de Entre Douro
e Minho e o rei D. Garcia, que os batia perto de
Bi-aga.
invaBâo da Gai- D. Sancho, aprovcitando o ensejo, e também
nSo esquecendo os auxilies que D. Garcia dera
contra elle a Affonso de Castella, invadiu os ter-
ritórios que áquelle pertenciam do lado da Lusi-
tânia, e derrotou-o perto de Santarém, ao que diz
nntaihapcrtodoa tradiçâo, e portanto ainda além das fronteiras
»aatarem j-^Q^g ^q gç^ dominio, quc dcvia terminar no Mon-
dego, D. Sancho foi feito prisioneiro, encerrado no
castello de Luna, mas breve restituido á liberdade;
na situação de vassallo.
prisso e liberta- Couta-sc quc n'esta batalha devera D. Sancho
çaodcD.san-^ vída a D. Rodrigo Dias de Bivar, o futuro Cid;
pois a sorte das armas estava primeiro do lado de
D. Garcia, que, auxiliado pelo valoroso portuguez
D. Rodrigo Froyaz e seus irmãos e parentes o fi-
íera prisioneiro, no encontro de Santarém. Liber-
tou-o Cid de oito cavalleiros que o traziam em
custodia, matando dois e pondo os outros em fuga;
depois, com os seus homens, rompeu pelo mais
espesso dos esquadrões inimigos, e prendeu D. Gar-
cia.
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217
Este episodio vem narrado no Nobiliário doNarrativadoNo-
Conde de D. Pedro, a propósito dos feitos do nosso de d^ pedro'!'''
conterrâneo D. Rodrigo Froyaz e seus esforçados
companheiros, n'aquella pittoresca linguagem que
o caracterisa; encontra-se porém n'elle a variante
de Ruy Dias ter apparecido com a sua gente só
depois de D. Sancho ter fugido aos que o guarda-
vam, e que cnom posserom em elle guarda quall
deuiam» ^
i «£ este dom Rodrigo Froiaz em seemdo muy moço foy muy
gnerreiro contra os mouros em tempo delrrey dom Fernando o que
partio 08 rreynos per seus filhos o iffamte dum Samcho e o iffamte
dom Garcia e o iffante dom Affomsso. £ desta partíçom seguiosse
ao despois gram dano, porque elldeu a dom Samcho o mayor Cas-
tella e Nauarra e a Estremadura, e deu a dom Garcia Galliza e o
que avia em Portugall, e deu a dom Affomsso o rreyno de Leom.
É como este rrey dom Fernando morreo disse elrrey dom Samclio
aue era moor a Ruuy Diaz çide que as partiçoues que seu padre
nzera em seu deserdamento, e que os rreynos eram seus de de*
reito, e que lhe comsselbaua de hi fazer : e Kuuy Diaz rrespondeo
que bem sabia elle que elle jurara a seu padre que nom fosse contra
as partições de seus irmaSlos e que guardasse a jura, ca melhor era
verdade que os rreynos. E elrrey lhe disse que iura em deserda-
mento nom deuia seer guardada : e en esto perçebeosse de fazer
guerra a seus irmâaos. E dom Rodrigo Froiaz era vassallo delrrey
dom Garcia de Portugal! : e veemdo el como este rrcy dom Garcia
auia hunm priuado em que poinha toda sa fiuza^ e fallaua com ell
todos seus feitos apartadamente, e lhe daua muy máaos comsselhos,
estremadamente em perçebimento de guerra que avia d*auer com
sen irmaâo, e que nom fallaua destes feitos nem com os rricos ho-
meens seus nem com aquelles que em tall feito o aviam de consse-
Ihar e seruir, chamou huum dia os rricos homeens e todos a huuma
voz pidirom a elrrey por mercêe que lamçasso de sa casa aquelle
priuado : e elrrey nom nos creeo, e o priuado acreçentou em seus
máaos comsselhos cada dia mais. E veemdo dom Rodrigo Froiaz a
sua maldade e como fazia perder a elrrey sua terra, huum dia em-
trou pello paaço e matou hi o priuado. Ellrrey ouuesse desto por
muy viltado, e dom Rodrigo Froiaz partiosse delrrey c^ím gramdes
companhas. E hindosse a França a tirar seu comsselho vceo rrecado
a elrrey dom Garcia que o comdc dom Garcia de Cabra, o o comde
dom \íacom, e o conde dom Nuno de Lara lhe viinham correr^
terra com todo o poder delrrey dom Samcho. Em esto ouue comsse-
lho com os boos da terra, e elles todos a huuma o comselharam que
mandasse por dom Rodrigo Froiaz, ca esse era o que lhe pocria
perçibimeuto em todos seus feitos. Elrrey dom Garcia mandoulhe
sa messagem por dous seus caualleiros na quall lhe mandou dizer
que elrrey dom Samcho lhe queria filhar o rreyno e que lhe rogaua
que sse vccsse logo pêra ell, ca elle lhe perdoaua e perdia deli
toda sanha. Esta messagem chegoulhe a Navarra: el veemdo que
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218
vo.r.ao do Ro- O facto d'este encontro d'arnias ter sido perto
menos. ^^ Santarcm explica-se talvez pela versão de
Rodrigo Ximenes, escriptor do século xm, ado-
ptada por Herculano, que aliás a Santarém se nao
cirrcy dom Garcia era boo e de boos feitos verdadeiros e que cm
elle avia toda ucrdade vcosse logo pêra elle, e dobroulhe elrrey a
coiniia. E os coindes dom Nuno de Lara, c o comde dom Garcia de
Cabra, e o comde dom Monçom corriam-lhe já a terra. £ elrrey es-
tamdo cm Agua de Majas apar de Coymbra chegou dom Rodrigo
Froiaz e elrrey foi com cl muy ledo : e demamdou-lhe conssclko
de como avia de fazer aos comdes que lhe corriam a terra^ o elle
lhe respondtío «senhor, eu leixei a terra de Portugall por fazer
aguisado e porque era vosso vassallo, e nom demandei comsselbo
cm elrrey dom 8amcho porque era certo que era vosso inmiigo, e
ora venho nor seruirvos e por deseruir elle : e uós senhor nom aue-
des d'auer batalha com comdes, mais mamdade hi estes boos íidal-
Igos de Portugall com que tenho gramdes diuidos e eu hirei hi
com elles e ou elles vemçerom ou eu hi morrerey com elles.» £1
rrey disse «entemdo que taaes sedes uós que bem posso ser escu-
sado desta fazemda por vós, mais eu quero hi seer.» £ em cato
pareçerom os pemdoues dos comdes, e elrrey disee que os ferissem :
e a batalha foy muy crua amtre os portuguezes e os casteUaaos.
E dom Kodrigo Froiaz entrou pelas aazes e seus irmaSos o comde
dom Pedro Froias e o comde dom Vermun Froiaz : e alli foi a ba-
talha muy grande assy que os castcllaaos a nom poderem sofrer
oE morrerem hi castellãos quinhentos e quorenta, e morreo hi o
conde dom Fafez Çerraçim que era rrichomem muito honrrado c
muitos » dos seus caualleiros, e outra muita companha de Portu-
gal qjc passarem de dosentos e vimte caualleiros. Este dom Ro-
drigo Froiaz foy mal ferido cm pomto do morte. A elrrey dom Sam-
cho forom estas nouas como os seus eram vemçudos e foy desto
muy sanhudo, e jumtou todo seu poder e veo sobre elrrey dom Gar-
cia hu estaua em Samtarcm. Elrrey dom Garcia ouue seu comsselho
com os boos que com elle estauam : e huuns diziam que o poder
delrrey era gramde e que defemdesse suas fortellezas, e os outros
diziam que vinham muito agudos pêra a batalha pollos paremtes
quo lhes matarem em a primeira fazemda, e por esto que era bem
d^espaçar a lide, e quamdo sse quizesse tornar elrrey dom Samcho
que emtom seriam mais poucos e cansados, e achariam a lide mais
refeçe. Dom Rodrigo Froiaz rrespondeo «senhor, elrrey dom Sam-
cho he de maior poder que uós e ha mayores rrendas e aa lomga
pode soster melhor a guerra e hiruos-ha comqueremdo o rreyiio
pouco e pouco, e uós aucdc íiuza em Deus e no juramento que fez
elrrey dom Samcho a uosso padre quamdo uos deu este rreyno quo
vos numca delle desapoderasse, e auede fiúza em estes boos fadallgos
de Portugall que sempre guardarom verdade e lealldade e hide aa
batalha : e mamdade ao conde dom Pêro Froiaz, e a dom Vermun
Froiaz meus irmaãos, e ao comde dom Garcia, e ao comde Fernam
Piriz meus sobrinhos que vaamos de suum, e destes muy boos fídal-
Igos portugueses com que vaamos, c leixade a nós a escolheita deU
les quaaes lii yram e dadenola diAmtoira.» E elrrey c todollos í\-
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219
refere. Segundo essa versão haviam recrudescido
contra D. Garcia as animosidades dos gallegos e
portugalenses, com o redobrar das suas offensas e
tyrannias, pelo que fora fácil a D. Sancho expul-
dallgoa foroin em este comsselho e postaroin suas aazes naquell
campo em que estam ora as vinhas. E dom Rodrigo Froiaz acaude-
lou aquelles que hi estauam, e oolhou hu estaua elrrcy dom Sancho
c rrompeo per todallas aazes. E a lide foy muy gramde e muy crua :
c dom Rodrigo Froiaz esforçaua muito aqueiles que o acompanha -
uam e faziam grandes feitos pello corpo. Al li foy a jierfia gramde
amtre elles de liuns e doutros assy que os castcllaâos nam no pode-
rom sofrer. E chegou alli hu estaua clrrey dom Samcho e prenideo,
e alli forom os castellãos vençudos. E dom Rodrigo Froiaz mamdou
dizer a elrrey dom Garcia que clrrey dom Samcho era preso e que
chegasse hi e emtre^arlhohia : e os mcsscgeiros forom estes, dom
Egas Echigíc que hi ioy muy boo fidalgo, e este foy o primeiro qne
pôs a lamça em elrrey dom Sancho, e de quaes deçemdem achaloe-
des no tituUo XXII dos Sousaílos parrafo II.° : c o outro fuy dom
Moniho Ermigic, este fez em esta lide muito bem pcllo corpo, e na
primeira lide de Coymbra derribou do cauallo o comde dom Garcia
de Cabra e outros muitos caualleiros, ca elle era de gram força o
de gram coraçom, e os que deste vcem mostrasse no titullo XXXVI
de dom Moniho Veegas o Gasto pan*afo II.** : este foy na lide que
oune o comde dom Froyaz Vermuiz com elrrey de Leom o quall se
mostra no titullo VIL" do comde dom Momdo parrafo 1I.° c foy na
cratrada d'Àstorga quamdo a emtrou o comde dom Froyaz Vermuiz
como sse mostra no titullo suso dito do comde doin Momdo. E a
dom Rodrigo Froyaz abriromsclhe as chagas que gaanhara na pri-
meira lide porque aimda nom era bem guarido, e disse aos mcssc-
geiros que fossem aginha com esta mcssagem a clrrey ante que lhe
a alma saisse do corpo : e os raessegeyroh forom a elrrey e dissc-
romlhe a messagem. Elrrey foy muy ledo da prisom de seu irmaão
e foi muy triste porque sse temeo de perder dom Rodrigo Froiaz,
c chegou logo hi. E o conde dom Pêro Froiaz irmaao deste dom
Rodrigo Froiaz donde vêem os rreys de Portugal disse, «senhor,
boo presente vos tem aqui meu irmaao mais pcrdeo o corpo :» disse
clrrey com gramdes sospiros e lagremas «se el perdeo o corpo gaa-
nhou gram prez e homrra aos de seu linhagem.» Disse emtom dom
Rodrigo Froyaz «senhor, sodes emtregue de vosso irmaão queuos
queria deserdar do rreyno .» disso elrrey «ssy ssom : «dom Rodrigo
Froiaz lhe disse «gradeçedeo a Deus e a estes boos fidallgos de
Portugall que sempre forom booa aos senhores e amarom verdade.»
Beyjoulhe emtom a maão e emcomendou a alma a Deus e morreo
ante que elrrey di partisse. E elrrey emtregou logo elrrey dom
Sancho a caualleiros que lho guardassem, e elle foisse pello cm-
calço dos castellaãos. Aquelles caualleiros a que o el emtregou nom
posserom em elle guarda quall deuiam, e fogio e foisse pêra huuma
serra hu achou gram parte doa seus. E estamdo alli pareçco huum
pendam e huuns trezemtos de cauallo, e disserem a elrrey dom
Samcho «senhor, voemos viir huum pcmdam verde e parece de Ruy
Diaz çide : » e ell oolhou por elle c conheçeo e desto foy muy ledo
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220
sal-0 do reino, quasi sem resistência. EUe, porém,
fora pedir o auxilio dos sarracenos, naturalmente da
Estremadura, e com o reforço doestes voltara a as-
senhorar-se de alguns castellos nas terras de Por-
tugal *; d'alií, proventura, a necessidade de D. San-
cho o vir buscar para áquem da sua fronteira do
Mondego, n'aquella zona de dominio fluctuante e
instável, onde comam como rajadas de ventos con-
trários, as algaradas de fronteiras, ora dos nazare-
nos ora dos mahometanos.
As poucas sympathias que este rei conquistara,
haviam feito com que, nao só bem frouxa fosse a
resistência contra a invasão castelhana, mas rece-
bida com agrado a destituição do chefe (1071).
Grande era o peso dos tributos, profundas as dis-
sidências que minavam o estado.
D. Sancho II, que assim ia adquirindo o co-
gnome de FortCy tirava partido da situação para
Tomada de Toa- afastar rcccios d'esse lado. Na sua obra de reivin-
dicação dos domínios, que entendia deverem per-
tencer-lhe, atacou Touro, senhorio de sua irmS
D. Elvira, que se rendeu sem resistência, e Zamora,
senhorio de D. Urraca, que resistiu tenazmente.
e disse aos fidalgos «alegradcaos e esforçade os coracooes caDeas
quer que eu cobre meu rreyno que me tem forçado meu irmaio dom
Uarçia, pois say da prisom, e vi a morte do boo de dom Rodrigo
Froiaz que me premdeo, e me chega o bem avemturado Ruuy Diaz.»
£ clrrei dom Garcia torDamdosse muy ledo de seu emcalço teemdo
que tiinba preso elrrey dom Sancho seu irmaSo, e desto se viloba
muito louuando aos íidallgos pcro que se malldizia da perda que
fezera do boo fiduUgo de dom Kodrigo Froiaz. £ departimdo em
esto virom viir elrrey dom Samcbo e conheçeo o pemdom de Ruuy
Diaz : e alli foi rrey doin Garcia ferir em elles, e a lide foy mny
grande e perfíosa porque os deirrei dom Garcia eram cansaaos da
primeira lide : e polia vertude de Ruuy Diaz foy preso elrrey dom
Garcia e mortos muytos e muy boons de huuma parte e da outra.
£ alli morreo o comde dom Pêro Froiaz, e dom Yermun Froiaz ir-
manes de dom Rodrigo Froyaz, e dous comdes filhos deste dom
Pêro Froyaz».
Livro* dt Unhagtm do Conde D. Podro: Portugália Monumenta Hiêlorica, JStcri-
ptortâj pag. 283.
* A. Herculano. Historia de Forlvgal. — Introd.
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221
Assaltos sobre assaltos se succederam com grandes AtMdio de za.
perdas dos assaltantes e sem nenhum resultado'. "*^'**
Árias Gonçalo dirigia a defeza com denodo e arte;
só restava um recurso : esperar que a fome conse-
guisse o que não logravam as armas. N'isto um ca-
valleiro de Zamora, Bellido Dolfos (ou Bellido Ar-
nulfes), saindo disfarçado da praça, abeirou-se do
D. Sancho 11 e o assassinou á lançada. Ainda Ro-MortedeD.san-
drigo de Bivar correu em perseguição do crimi-
noso, mas não o alcançou. U ferro de um malfeitor
\ânha subitamente mudar toda a face da Hes-
panha.
Os castelhanos levaram para Onha o cadáver do
rei. A hoste, composta de homens de todas as pro-
cedências, leonezes, castelhanos, gallegos, portu-
guezes, navarros, dispersou-se como por encanto,
apenas desfeito o laço do commando que os con-
gregava.
Como filho segundo de D. Fernando, era por Advento d© aí-
sua irmã avisado dos acontecimentos, e convidado (hí^Do/*
a colher a herança paterna, hoje de novo reunida
n'um só sceptro, D. Affonso, homisiado na corte de
Almamum.
Lealmente declarou Affonso ao rei de Toledo a
sua situação: com elle firmou o pacto solemne de
o nào hostilisar, nem a seu filho mais velho, quando
lhe succedesse no throno, antes lhe daria soccor-
ros em caso de necessidade. E apresentou-se em
Zamora a receber a investidura.
Leão acolhe com affectuoso alvoroço o seu an-
tigo rei ; GraUiza com sympathia o seu novo mo-
narcha; Castella não vê com bons olhos a supre-
macia que vae pertencer a Leão, pensa em eleger
outro príncipe para seu rei, o que nào consegue
por falta de herdeiro legitimo, e acaba por se sub-
metter, exigindo comtudo ao monarcha o juramento juramento exi.
de como nada tivera com a morte do irmão. É Ro- ^^'''
14
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222
drigo de Bivar, talhado para as grandes audácias,
quem três vezes lh'o exige.
Em Santa Gadea de Burgos,
Do juran los fijos dalgo
Alli le toma la jura
£1 Cid, ai rej castellano.
Las juras eram tan tuertes,
Que a todos ponen espanto ;
Sobre un cerrojo de hierro
Y una ballestra de paio. ^
D. AfFonso morde os lábios em reprimida re-
volta, faz três vezes a jura, que representa da parte
de quem Ih' a exige uma desconfiança e imia aflronta,
e não mais pôde esquecer nem perdoar a quem por
essa forma lh'a inflingia. Era a segunda vez que
encontrava no seu caminho o traidor de Golpejar.
suuaçio de Ro. Não foi ao scu lado, nem á sua sombra que Ro-
drigo continuou a afirmar a pujança dos seus dotes
guerreiros. Nem era para pautados e palacianos
regramentos esse typo ideal do maior almogavar
do seu tempo, livre como as auras do Guadarrama.
indómito como o génio da Peninsula!
drlgo de Bivar.
Miss&odeAiTon- A Affouso VI prcparava o destino um papel
culminante na historia da Hespanha, e a elle se ia
dever o primeiro passo para a formação de um novo
estado peninsular que, emquanto todos os demais
da Peninsula se fundiam n\im só, creava e manti-
nha, atravez dos séculos, uma individualidade pró-
pria, resistente a todos os esforços que teimavam
em a destruir. Taes foram a força orgânica e o po-
der individualista do organismo portuguez.
1 Romancero dei Cid. 52.
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223
Melhor compenetrado do que seu pae, da ne- Garcia continua
cessidade de manter integral o império nascente, ^°™^**^®-
Affonso VI recusou a supplica que de Sevilha, onde
andava homisiado, lhe veiu fazer seu irmão D. Gar-
cia, para se lhe entregar o reino de Galliza. Contava
o desthronado rei com a commiseração do irmão,
que, como elle, andara também degredado em terra
de mouros, sem throno, sem liberdade, sem pátria,
sem familia. Mas a rasão de Estado? Não ha rasão
mais poderosa no animo de um rei, quando sobretudo
ella se baseia nos fundamentos do seu próprio inte-
resse individual. Ceder a Garcia todo o vasto ter-
ritório que ia desde os Pyrineus gallaicos até o Mon-
dego, era desmembrar um império que já compre-
hendia três partes da Hespanhà, e diminuir a sua
própria influencia e poderio, que a grandes em-
prehendimentos se destinavam. Por causa das du-
vidas, pôl-o a ferros no castello de Luna, d'onde
elle próprio outr'ora se evadira. N 'esses tempos
ásperos, se, para vencer, os pulsos tinham de ser
de ferro, os corações necessitavam ser de bronze.
Filhos contra pães, irmãos contra irmãos, peito
contra peito, era a posição dos combatentes, nos
rudes combates de todo o momento.
Affonso VI era um homem do seu tempo: mixto caracter de Af-
de luz e de sombra, de generosidade e de crueza. *^"**
Quem deshumano se mostrara com seu irmão, apre-
sentava-se leal, generoso, cavalheiresco para com
um mouro seu alliado, Almamum, que o acolhera
na desgraça.
Tendo estabelecido a ordem e a disciplina no conflnnaçio da
. • 1 . . . i alUança com
seu remo, extermmando os crunmosos e impondo Aiiemamum.
castigos severos aos nobres rebelões, foi com um
poderoso exercito acampar a Olias, a duas léguas
de Toledo, com grande assombro e indignação dos
mouros seus alliados; estes, porém, breve serenaram
e alegraram os espirites, ao ver entrar sósinho em
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224
Toledo o rei christão, a renovar o pacto de amizade
e alliança já firmado, e offerecendo-se para o au-
xiliar nas suas guerras com Almotamide Bema-
bade, rei de Córdova e Sevilha, que lhe havia inva-
invasio do «ml. dido OS dominios. Entrando pelas terras d'este, os
l^^ísevHhí*** exércitos alliados talarani-lhe os campos, des-
truiram-lhe as sementeiras, capturaram-lhe gente
e gado, incendiaram-lhe as povoações, apodera-
ram-se de Córdova e Sevilha, e, carregados de opi-
mos despojos, regressaram aos seus reinos (1075).
Nao representava o êxito d*esta expedição aug-
mento de território para os christãos, mas de pres-
posiedeRiojaetigio das Ruas armas e também de riqueza. Ko
anno seguinte, porém (1076), os antigos doniiuius
de Fernando Magno eram accrescidos com a Kioja
e uma parte de Alava, por morte de Sancho Gar-
cia de Navarra. Fel-o sem resistência, porque os
navarros preferiram o jugo do castelhano, que se
apresentava como legitimo herdeiro, por ser neto
de D. Sancho Maior, ao do seu infante e preten-
dente á coroa, D. Baymundo, que por ter assassi-
nado seu irmão, e pelas suas prepotências, era
Tomada de Co- geralmente detestado. Pouco depois (1077) D. Af-
fonso VI tomava Coria ao rei mouro de Badajoz.
Retirado o exercito auxiliar christão, Almota-
Recuperaçio do mide poz rapido cerco a Sevilha e Córdova, de
víLa^' * *" que Almamum se apossara ; n'este ultimo cerco
perdia a vida o rei toledano; a sorte das armas favo-
recia os sevilhanos, que rehaviam as duas cidades.
Ordenou Affonso VI ao Cid, com quem manti-
tinha apparentes relações de cordialidade, que
Kxiseneia de fossc cxiffir dos rcis mouros de Sevilha e de Gra-
nada, n'esse tempo em guerra um com o outro,
os tributos que a Castella se tinham obrigado a
pagar desde Fernando Magno.
Quiz Rodrigo Dias de Bivar conter Abdalá no
seu propósito de invadir o território do rei de Se-
tribatos.
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225
vilha, e nao foi attendido; os granadinos refor-
çados por tropas christas, á frente das quaes figu-
rava Garcia Ordoílez, de nobre estirpe regia, e
antigo alferes-mór de Fernando de Castella, con-
tinuaram em tom de guerra, trouxeram as suas
armas até Cabra, onde os esperou Rodrigo de o grande cid.
Bivar derrotando-os, conquistando nas façanhas
d' esta empreza o cognome de Cid, com que se
perpetuou na historia a sua fama, em parte verda-
deira, em parte mythica. Com os despojos d'esta
campanha e os tributos recebidos em Sevilha, re-
gressou Cid á corte onde fez entrega dos haveres.
Contra a honestidade e honradez d'este acto se
ergueram porém vozes e accusaçoes, a começar por
Garcia Ordoftez, que acusava o Campeador de se
haver locupletado com o que lhe não pertencia.
Ha quem faça partir d'aqui novas prevenções
de Aflfonso VI contra Rodrigo; mas se ellas exis-
tiam, só se manifestaram quando, contra as suas
ordens, e faltando ao pacto que o ligava, este se
atreveu a levar a razzia e a destruição até perto de
Toledo, a pretexto dos mouros terem entrado nas
terras de Castella. O Cid foi desterrado, e por sua
conta continuou as suas proesas de armas, ora ao
lado dos mouros, ora contra elles, n'uma sede de
guerras, de depradações e de conquistas, como
symbolo genial que elle era do guerrilheiro penin-
sular, digno representante de índigo, de Mandonio,
ou de Viriato.
A alliança com o rei de Toledo impedia Affonsopuno» do aí-
VI de levar para esse lado o poder das suas armas;
mas, ao mesmo tempo, vendo o incremento que iam
ali tomando as conquistas do rei de Sevilha, con-
trariava-o a coacção moral em que se encontrava.
Mesmo por morte de Almamum subsistia a al-
liança, porque fora firmado por duas vidas. Mas o
destino guiava-o no caminho dos seus desejos;
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226
Hixeme, que succedera a seu pae no throno tole-
dano, morria pouco depois, victima de uma sedição
que pedia a cabeça do que era accusado de amigo
e connivente com os christãos.
Affonso VI respirou. Chegava o momento de
Favo roce. o a tomar Tolcdo ! Mas essa empreza não era das que
se levam de assalto ; indispensável se tomava ir a
pouco e pouco preparando o golpe. N'este capitulo
da sua historia se mostra o rei leonez, mais do que
nunca, um hábil diplomata e um militar sabedor e
consummado.
AiiiançacomAi- Por um lado, cnfreando as ambições de Almo-
tamide, que tinha vistas persistentes sobre Toledo,
mas que receava principalmente o poder de
' Affonso VI, acceitou a sua alliança e amizade.
Entre os dois príncipes musulmanos e rivaes se
manteve o christão habilmente ; de Almotamide re-
cebeu mesmo por concubina ou por mulher (tudo
era possível n'esse tempo ao rei e aos papas) sua
Casamento com filha Zaida, com O scnhorio de Cuenca, Ocanha,
Huete e outros territórios por elle conquistados ao
rei de Toledo.
Plano de ataque Como um tigrc quc ora agachado, de mansinho,
contra <> «<*<>• Qj.g^ gjjj curtos saltos, vac ganhando terreno, até
poder formar pulo seguro sobre a presa, assim
Affonso VI, durante quatro annos, foi, serena e
pautadamente, preparando as condições favoráveis
ao ataque; foram quatro annos gastos em correrias
que não pareciam ter em vista a capital do antigo
império godo, na occupação de objectivos secun-
dários, que lhe iam dando força para o ataque ao
objectivo principal, e na juncção de dinheiro, ver-
dadeiro nervo da guerra em todos os tempos.
Aproveitando a inacçSo e imprudência de lahia
Alcadir *, que reinava em Toledo, entre moles pra-
^ Uns querem que fosse irmão, outros tio de Hixeme.
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227
zeres e complicações de governo, começou por
tomar Madrid, guarda e sentinella de Toledo, e ou- Tomada de u^^
trás praças, realisando ao mesmo tempo as pri-
meiras algaradas devastadoras (1081). A pretexto
das ligações dos toledanos com os de Bajadoz, no
anno seguinte as correrias arrasavam os territórios
entre esta cidade e Toledo, para impedir a remessa
de tropas; iam os christãos até Ávila; povoavnm e
fortificavam Escalona, que ficava sendo a atalaia ontrM pr«ça«
da fronteira por esse lado ; Talavera, rendida e
fortemente guarnecida, passava a ser a guarda da
passagem do Tejo.
Ao mesmo tempo, mais para o occidente se fazia
sentir o poder das armas nazarenas. Almotamide contra Aimou-
desrespeitava a auctoridade de soberano, de quem
era tributário; refusava o pagamento do tributo,
mandando crucificar o íunccionario hebraico, Bem
Ohalibe, que o fora recolher (1082)*. Era necessário
um castigo severo ! Sevilha foi assediada, arrasados
08 territórios circumvizinhos e os da provincia de
Sidónia; e chegando á praia de Tarifa, AíFonso VI
mettia o seu cavallo á agua, exclamando, com
afrontosa prosápia: «Pisei a terra que é o limite
da Hespanha!)) Um grito de indignação, entre pa-
voroso e ameaçador, echoou em toda a Andaluzia, e
repercutiu em todos os emirados de Hespanha, que
parece terem visto pela primeira vez todo o perigo
que os ameaçava. D'ahi o imprudente appello aos
correligionários do Magrebe, os terríveis almorá- Appeiio aos ai.
. j morávidaa.
vidas.
Em 1083 eram occupadas as posições militares
entre Talavera e Madrid ; os caminhos do Tejo e
as vertentes do Guadarrama e da Somosierra pas-oecupações no-
savam ao poder dos christãos ; para assegurar a
communicação das duas Castellas pela Somosierra,
' Dozy. Hist. deê Mueul. en Esp., tomo 4.® — zii.
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228
era fortificado Biiitrago; Salamanca, Uceda, Hita
e Guadalajara eram occupadas, cemo base de ope-
rações para a posse da parte septentiional do reino
de Toledo *.
Em 1084 com grossas sommas logrou Toledo
evitar um golpe decisivo ; este, porém, nâo se fez
esperar muito tempo.
Ataque e toma- Ltogo uo auuo scg^uinte aoucUa cidade se viu
da de Toledo. 5 •* •
cercada por um numeroso exercito, quasi cosmopo-
lita, pois alem de leonezes, gallegos e castelhanos,
era composto de francezes, italianos e allemães.
A forte posição da cidade e as suas muralhas, já
famosas no tempo dos godos, prestaram-se a uma
defeza em forma, com o auxilio de excellentes ma-
chinas e engenhos de guerra. Longo e persistente
foi o assedio, e mais do que os virotões e as cata-
pultas dos sitiantes, ia disseminando os defensores
a falta de viveres. Os mosarabes que faziam parte
da guarnição, porque preferissem o jugo christào
ao musulmano, os judeus, porque receassem, pela
tomada da fortaleza, o saque aos seus haveres,
conclamavam pedindo a capitulação; alguns mu-
sulmanos mais aguerridos se oppunham a isso
tenazmente. Mas as circumstancias foram aper-
tando, apertando; o bloqueio era cada vez mais
cerrado; as sortidas da cavallaria da praça, ao
principio frequentes e impetuosas, foram amorte-
cendo ; os soccorros que vinham de Merida foram
repellidos; a situação tornou-se insustentável, e aca-
bou por vencer a opinião dos que optavam pela
entrega. Assim se resolveu, e tratou-se das condi-
ções.
coadiç5e-deen. AíFouso VI aprcseutou como condição principal,
sine qua noriy a entrega da cidade. Obtida esta,
mostrou-se generoso, concedendo que os que saís-
^ Sanchcz y Casado. Blem, dt la Hist de Esp.
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229
sem o podessem fazer a são e salvo, levando
comsigo 08 seus bens, e aos que (içassem fossem
concedidas todas as garantias e liberdades, po-
dendo guardar suas leis e culto religioso, com os
seus magistrados e a mesquita maior que lhes foi
conservada. lahia iria para Valença protegido
por um corpo de tropas.
A entrada solemne do rei christao em Toledo, imporuoeu d»
T •. 1 T • • j J tomíd» de To-
antiga e veneranda capital do impeno godo e da ledo.
christandade da Peninsula, foi um acontecimento
de decisiva importância nos destinos da reconquista
e da causa christã. Foi a 25 de maio de 1085 * que
Âffonso VI para lá transladou de Leão a capital
do reino, e reunindo ali um concilio de bispos e no-
bres do reino deu foros e privilégios a mosarabes
e cbristãos para que a viessem povoar, estabeleceu
ali a sé metropolitana da Hespanha, escolheu para
arcebispo a D. Bernardo, abbade de Sahagun,
monje de Cluny, francez de origem, dotando a
igreja com terras, castellos, aldeias, moinhos e
hortas *.
Voltava Toledo ao seu antigo esplendor e grt^n-
deza, politica e religiosa, depois de ter estado 374
annos sob o dominio do Islam ; a base de opera-
ções contra o resto dos dominios mouros passava
a ser, e de vez, o Tejo, com a posse da praça mais
importante no coração da Peninsula, e de posições
importantíssimas nas cordilheiras carpetana e ibé-
rica, que é a espinha dorsal da Peninsula ; a he-
gemonia militar e politica entre os diversos estados
christãos e mouros pertencia agora de direito ao
rei de Leão, Castella, Gralliza e também de Por-
tugal, que já podia ir contando como uma das
gemmas da sua coroa de Imperador, como acabava
* Dozy. HisL dea Musul. en Eap., tomo 4.o — xii
2 D. Manuel Colmeiro. Beyes Cristianos desde Alonso VI hasta
Âlfmiêo XI ^ cap. i.
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230
de ser proclamado. Todos os príncipes reinantes na
Hespanha prestaram homenagem a D. Affonso VI
e se declararam seus tributários.
Mas, mesmo por isso, o temor era grande entre
os musulmanos; e, na realidade, o caso nao era
para menos.
Grave 8ituRção Era gravc a situação d'elles, por todos os lados
do« musauiniR. g^jj^g^çados OU coagidos. A titulo de valer a lahia
Alcadir, expulso de Toledo, acompanhara-o a Va-
lência, como vimos, um corpo de tropas caste-
lhanas, que era mais um corpo de occupação do
que outra cousa; commandava-o Álvaro Fafiez,
que nos apparece como logar-tenente e primo do
Cid*. Saragoça estava fortemente sitiada pelo im-
perador; em nome d'este, Garcia Ximenes apos-
sara-se da praça de Aledo, e d'ahi assolava, com
rijas algaradas, o reino de Almeiria ; até em Gra-
nada, coma vimos, fora AflFònso, a titulo de auxilio
não pedido, fazer alarde da sua força e de haver
attingido os lindes da Hespanha.
N'estas afiBictivas condições que fazer? Emigrar,
diziam alguns, emigrar em massa, o que era dif-
ficiP.
Para se verem livres de um grande mal appel-
laram então para outro mal ainda maior! Quid
Jupiter vult perdere prius dementdt.
Convite ft inçu- Rcunldos cui couciliabulo, em Sevilha, os prín-
cipes mahometanos resolveram, não sem protestos
de alguns, principalmente do vali de Málaga, mas
animados principalmente pelos sacerdotes, mandar
solicitar o auxilio de luçufe bem Texufim, o cele-
1 De Alvar Faíiez, vueso primo,
Recebi vueso presente,
No en feudo vueso, Rodrigo,
Sinoii como de pariente.
Cancionero dd Cid, 68.
2 Dozy. Hist. des mtw. en Esp., tom. 4* — xi.
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231
bre Miramolim das chronicas, rei dos almorá-
vidas de África, mahometanos de recente data, oa aimoràvidu.
gente rude, originaria do Sahará, semi-barbara,
inimiga dos árabes por instincto e por tradição,
espantalho dos chrístaos, e que estendiam os seus
dominios desde o Senegal até Argel. A embaixada
foi composta dos cadis representantes dos princi-
pados musulmanos de Sevilha, Badajoz, Granada
e Córdova*.
Ancioso por entrar em Hespanha estava luçufe; Ambiçse« de
era a Hespanha o paiz tradicional das riquezas, ^"^"^'''
tao appetecidas por todos os povos conquistadores
que chegavam á Mauritânia. Alem de que, a missão
de salvador do islamismo periclitante, n'um pais
onde elle lançara durante quatro séculos raizes tão
fundas, lisonjeava-o e sorria-Ihe. Por mais de uma
vez, mouros e christãos, nas suas dissensões, lhe
haviam accenado com a partilha da Península. A
fama do seu poderio fazia-o apresentar como um
auxiliar valioso; nunca porém se lhe offerecera,
como agora, o ensejo de realisar a entrada appete-
cida na Peninsula, sem nenhum perigo, antes com
o applauso e emboras de todos os musulmanos.
Era uma espécie de cruzada santa que se eflfectuava
contra o poder crescente do christianismo.
Pelo seu lado Affonso VI tratou de reunir asAfroniovi pre-
forças de que dispunha, mandou recolher de Va- ^*'* * '*®^^"'
lencia Álvaro Faiíez com as suas tropas, e appellou
para os paizes christãos d'aquem e d'alem Pyri-
néus, tendo-lhe chegado de França, onde, por sua
mulher D. Constança, mantinha muitas relações,
cavalleiros esforçados que na aventura da guerra
buscavam renome e fortuna.
Entre elles veiu Henrique de Borgonha, filho cbegRHenriqne
j j j T» 1 j de Borgonha.
do duque de Borgonha, do mesmo nome, que no
1 Dozy. Hist. des mustd. en Eap., tomo 4.*» — xi.
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232
condado de Portugal conseguiu lançar os funda-
mentos de uma monarchia independente, guardada
para altos destinos.
A inv«.io doh Foi, portanto, a invasão dos almorávidas na Pe-
o condado por. umsula a causa mdirecta da creaçao de um estado
que, baseando-se nas differenciações que existiam
desde séculos e nas suas tendências constantes de
independência, n'uma região tão caracter istica de
Hespanha, creava para si uma situação de mem-
bro de uma grande e forte familia, que conquis-
tando a sua autonomia a defendia e mantinha pelas
ai-mas e pela sua acção perseverante, no sentido de
nunca perder o que tanto esforço, tanto sangue,
tanta sòmma de intelligencia e de trabalho tem
custado aos seus filhos, em todos os períodos da
sua vida.
iiivuModeiuçu. De Fez saiu luçufe com um poderoso exercito,
atravessou o Estreito, e dirigiu-se pomposamente
de Ceuta a Algeciras, de que se apossou. Como
hábil militar e diplomata quiz elle, não só assegu-
rar a sua retirada, mas firmar pé, definitivamente,
na Península, e para isso impozera como condição
ser-lhe dada a posse da praça de Algeciras, e se-
rem-lhe fornecidos todos os meios para o seu fácil
regresso; assim se fez; e Almotamide, julgando
salvar o reino das mãos do leonez, o foi voluntaria-
mente desmembrar, perdendo um ponto estratégico
importa,nte sobre o Mediterrâneo, a chave do Es-
treito.
Recebido com dadivas e honrarias o almorávida
cnnceniraçaoem Scvílha, juntaram-sc-lhc os exércitos de Al-
em Badaloz. • -wg- •■ /^ i • * j
meria, Málaga e UranadH, e seguiram todos para-
Badajoz, onde Motavaquil o esperava com a sua
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233
hoste, e d'ahi, em soberbo alarde, se moveram todos,
caminho de Toledo.
Affonso VI estava sustentando o cerco de Sara-Affon»o vi rc-
goça quando lhe chegou a noticia do desembarque ""** ^"'^*'**
dos africanos; renunciando a elle, marchou para
Toledo, onde tratou de reunir o seu exercito.
A colligação da mourisma quiz oppor a alliança
dos príncipes christãos ; de D. Sancho Ramirez, de
Aragão, e de D. Berenguer Raymundo, de Barce-
lona recebeu reforços importantes; de França se
apresentaram com as suas gentes, alem de Henri-
que de Borgonha, futuro conde de Portugal, o seu
primo Raymundo, que foi conde da Galliza, o conde
de Tolosa, Raymundo seu primo, e muitos outros
homens illustres. Como na sua corte, que era meio
christã meio musulmana, estranho era o aspecto
da sua hoste, onde ao par dos morriôes dos chris-
tãos se moviam os turbantes mouriscos e os gorros
amarellos e negros dos judeus*.
Não menos luzente que a musulmana, porém a ho>te ohriíu.
muito menos numerosa, era^ a acreditar os chro-
nistas christãos, a hoste nazarena, que, segundo as
boas regras da guerra, não esperou o ataque ; foi ao
encontro do inimigo e em Zalaca (Sacralias para
os christãos) se travou uma renhida batalha, sendo
batidos os christãos, e mortos innumeros d'elles na
retirada, e ferido o próprio rei (23 de outubro
de 1086)'.
Na véspera, 22, uma quinta feira, avistando-se
1 Fundado em Bemalcatibe, Fernandez y Gonzalez, no seu es-
tado sobre os mudejares em Castella, diz : «Cfontabanse en su hueste,
segun un autor arábigo, ochenta mil cabal los, mitad cobertos de
hierro j armados de pies á cabeza, j la otra mitad ec su mayor
parte ginetes muslimes armados á la ligera, que combatian á sus
ordenes, en numero de hasta treinta mil. Tambien yenian con el
cuarenta mil judios, que se destinguiam entre los demás soldados por
su traje tradicional j sus turbantes amarillos 7 negros.»
2 Dozy fixou esta data á yista dos diversos textos árabes: 12
Redjebc Íl\f. — HisL des tnusul. en Eap., tomo 4.° Nota E.
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234
ocarteideiuçu-os dois exercitos, luçufe mandou um altivo cartel
*"' a D. Affonso intimando-o, mal pousara as suas ten-
das, a abraçar o islamismo ou a pagar um tributo,
ameaçando-o com a guerra se não fosse obedecido.
Calcula-se a indignação do imperador, que a si
próprio se appellidava « o soberano dos homens das
duas religiões», ao receber tão insolente quanto au-
daciosa proposta, e feita a elle que tinha por tri-
butários os príncipes mahometanos da Península!
Por um dos mouros ao seu serviço mandou res-
ponder que dispunha de um forte exercito e sa-
beria castigar tamanha ousadia. O almorávida re-
torquiu na mesma carta, com esta phrase concisa:
«Vaes ver o que te succedeli
o ardil. Propoz Affouso VI que a batalha se ferisse, não
no dia seguinte, que era de festa para os musul-
manos, porém no outro, sabbado; o domingo ti-
nham de o guardar os christãos. Foi acceite. Era
um ardil de guerra em que os mouros não se dei-
xaram cair ; estava a historia cheia d'elles, e nem
ai mor ávidas nem andaluzes eram estranhos ás li-
ções da historia. Tomaram as suas precauções.
Mediam-se, antes de accommetter, as duas feras!
Almotamide, com os de Andaluz, constituíam a
dianteira, e o que então se chamava a principal
batalha; luçufe, que tinha o seu plano estratégico
formado, conservara-se em reserva, ao abrigo das
montanhas. Apesar do pacto, o sevilhano não des-
cansou toda a noite; estabeleceu o seu serviço de
segurança com os seus ginetes, e logo aos pri-
meiros alvores da madrugada teve noticia de que
a hoste inimiga se deslocava, caminho das suas
posições. Era a cilada! Ordenando immediatamente
o seu dispositivo de combate, mandou aviso a luçufe
para que lhe enviasse reforços, pois o seu corpo
não era suficientemente forte para receber sósinho
o embate do inimigo; ao que o almorávida, que
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para si guardava a gloria do golpe decisivo, consta
respondera: «Que me importa a mim que sejam
massacrados! Inimigos são todos elles!»
Como duas grandes nuvens que se entrechocam, Bauiiu* do z».
assim se deu o encontro das duas hostes ; os anda- ***"*
luzes vergaram ao peso do numero e ao impeto dos
christãos; em seguida recuaram, e por fim bate-
ram em retirada. Apenas combateram a pé fiime
os de Sevilha, tendo á frente o seu bravo príncipe,
que, ferido no rosto e na mão direita, os estimu-
lava pelo exemplo; á frente dos que lidavam con-
tra os sarracenos do andaluz vinha D. Sancho de
Aragão, e Albar Hanax, como lhe chamavam os
mouros, ou Álvaro Failez, como se encontra na
tradição hespanhola, e que Herculano suppôe ser
porventura Álvaro Eannes; com outra az, acau-
dilhando-a pessoalmente, Afifonso VI atacara as
posições dos almorá vidas. Andaluzes e africanos
eram batidos, os christãos levavam a melhor em toda
a linha. Chegara, porém, a vez de luçufe que, tra-
vado o ataque de frente, e dando uma apparencia
de victoria aos christãos, mandara o grosso da sua
cavallaria e peões proceder a uma marcha de flanco,
atacar de surpreza o acampamento dos christãos,
estabelecer ali o pânico e a desordem com o mor-
ticinio e o incêndio, e em seguida, atacar de revez
os christãos. Assim se fez, e collocados entre dois
fogos, as hostes nazarenas, desmoralisadas, medi-
ram bem todo o perigo em que se encontravam, e
estacaram, ao verem-se envolvidos por toda a parte
pelas levadas de cavalleiros, que voz em grita os
assaltavam, de alfange erguido. Porque não só o
inesperado ataque de revez os obrigava a liictar
em condições de inferioridade, mas animados pela
nova phase da lucta, os andaluzes, refeitos e re-
unidos de novo, voltavam á carga por toda a parte.
A lucta foi terrível, e luçufe, que tinha emboscada
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236
a 8ua guarda negra, caiu com ella n'um ataque de
flanco, sobre o inimigo, tornando-lhe impossível
toda a resistência! Um africano conseguira mesmo
ferir o rei Affonso com uma punhalada na coxa.
luçufe apparecia em toda a parte, gritando: «Co-
ragem musulmanos ! tendes diante de vós os ini-
D«>rrotR doimigos dc Dcus ! O paraiso aguarda aquelles que
d'entre vós succumbirem • . Pelo seu lado Affonso VI
batia-se como um leão, procurando reunir as suas
hostes esfarrapadas; a carnificina era enorme!
sangue de mouros e christãos corria em ondas pelo
chão ; fugiam muitos, mais ainda caíam aos golpes
das lanças e das espadas ; não havia tréguas para
ninguém; durante todo o dia se combateu encar-
niçadamente ! Pela noite a victoria pendeu para o
lado dos musulmanos ! Aflfonso VI, perdida toda
a esperança, logrou, acompanhado de quinhentos
cavalleiros, escapar, fugindo, levando nas feridas
que sangravam o attestado de bravura e pertinácia
com que resistira até final.
Não só o numero, mas a perícia militar, haviam
dado ás armas musulmanas um dos triumphos
maiores e mais sangrentos de que resam as suas
chronicas, confirmadas pelos chronistas christãos,
coniquanto menos pormenorosos na narrativa, e
esta batalha era a confirmação do adiantamento em
que a táctica já se encontrava n^essa epocha.
Perda.. Os arabcs avaliaram, decerto exageradamente,
em 24:000 homens as perdas dos christãos; qual-
quer que seja porém o augmento da cifra, a verdade
é que as baixas foram numerosissimas, e que na
phrase do grande historiador portuguez a batalha
foi «uma das mais terríveis que se pelejaram em
Hespanha»*.
1 Dozy sobre as chronicas árabes e Herculano sobre as ebristas
conseguiram compor o quadro doesta batalha memorável.
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237
O resultado ^'esta batalha pareceu duvidoso conaequenciM.
para os musulmanos : a luçufe augmentara a sua
fama de guerreiro ; era realmente, sob o ponto de
vista militar, um triumpho para as armas mouris*
cas; mas politicamente pouco adiantou, pois nem
08 vencedores poderam levar mais longe, em posse
de terreno ou conquista de praças, o eíFeito da sua
victoria, nem o desastre quebrantou a energia
guen'eira de Affonso VI ou modificou os seus pro-
pósitos de continuar na conquista de toda a Penín-
sula, o que constituia o seu sonho dourado. Amor-
tecia-lhe o impulso, é certo, e atrazava a solução ;
mas nSo era homem para esmorecer, e muito me-
nos para desistir. Tivera de abandonar o cerco de
Saragoça e evacuar Valência, onde já levara as
suas armas; alem d'isso os mouros, que eram seus
tributários, de certo se recusariam agora ao paga-
mento do tributo. Era necessário portanto não per-
der tempo; porque emquanto o sevilhano Bena-
bade começava com correrias nos territórios de
Toledo, as gasivas do almorávida Abu Becre e do
emir de Badajoz assolavam as fronteiras da Gal-
liza. Já algumas povoações ohristãs se haviam
rendido.
luçufe, colhidos os loiros e os fructos immediatos
da victoria, teve de regressar á Africa, onde lhe
morrera um filho muito amado. A Providencia, quci^ç^^ retira «
parecia ter abandonado os christãos, como que para p»** a'"«^*-
lhes incutir melhor o espirito da própria responsa-
bilidade, vinha protegel-os por outra forma.
Comquanto retirasse com o grosso do seu exer-
cito, luçufe deixara quem na Peninsula bastava para
vigiar e manter, entre as dissidias dos mouros, a
influencia que lhe convinha, para os seus planos
de dominio futuro ; ficara-o substituindo Seir ben
Abu Becre, capitão valente e ladino. Os mouros não
estavam tão obcecados que o não viessem a perceber.
15
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DMforrMdaAf- AfiFoRSo VI não quiz demorar o golpe; reuniu
"**** * novo exercito e caiu sobre a Andaluzia, cujas terras
assolou ; Badajoz foi sitiada, do mesmo que Sevi-
lha. Ao mesmo tempo, ao oriente, no coração do
território musulmano, a praça de Aledo (Alid para
08 mouros), entre Murcia e Lorca, onde cabiam doze
a treze mil homens de guarnição, era um baluarte
terrível que, tendo arvorado o pavilhão da Cruz,
golfava expedições, e atormentava com sortidas
continuas os territórios vizinhos, chegando a pôr
cerco a Almería, Murcia, Lorca e Granada: Her-
culano refere-se á opinião de ser aquelle um dos
fojos do Cid, que teria sido alcaide d'aquella forta-
leza * ; o mais certo, porém, é que esse guerreiro
andava por esse tempo fazendo guerra por sua
conta, a favor de Almostaim de Valença, e ali se
conta que tendo AíFonso VI ordenado a sua junc-
çao ao exercito com que marchava em soccoito de
Aledo, não fora obedecido, ou pelo menos não fora
recebida a sua ordem, o que inimisara de novo o
rei, de quem sempre se declarara vassallo sendo
privado das mercês que lhe fizera, e até dos bens
que em Castella lhe pertenciam ^.
AhnotMnideeon. Rcsolvido a tapar aquelle boqueirão guerreiro
do Aledo, saiu Almotamide de Sevilha com três
mil ginetes, entre elles os almorávidas; no caminho,
porém, foi recebido por um forte troço de caval-
laria christã,, que o desbaratou perto de Lorca.
Afeminados e moUes, os soldados andaluzes tinham
perdido a sua antiga virilidade e bravura.
voiu laçnfe á Alcdo rcdobrou de audácia, e as suas algaradas
tornaram-se ainda mais devastadoras. O desespero
leva Almotamide a recorrer a luçufe; pessoalmente
se dirige a Fez ; o Mauritano volta á Peninsula,
* A. Herculano. Historia de Portugal. — Introd.
2 D. Manael Colmeiro. Beyes Criêtianos, cap. x.
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239
desembarca em Álgeciras, reúne como da vez pas-
sada, ao seu exercito as forças andaluzas, com-
quanto em muito menor numero, e vae pôr cerco
a Aledo (1088). As excellentes condições de defeza
doesta praça, ninho de águias sobre um escarpado
rochedo, e as abundantes victualhas de que dispu-
nha permittem-lhe uma resistência tenaz. Quatro
mezes consomem os musulmanos sem nenhum êxito,
quatro mezes que o principe christao aproveita para Aiedo inexpu-
reunir um exercito que se chegou a avaliar, talvez *°*^*''
com exagero, em dezoito mil homens, e propôe-se
marchar em soccorro de Aledo. Quatro mezes de
inacção tinham desmoralisado as tropas mahometa*
nas; ao constar-lhe o grande poder com que o
principe christao ia cair sobre essa gente descon-
juncta, não se quiz sujeitar a um revez que lhe
destruisse a fama e os louros colhidos em Zalaca.
Abandonou o cerco; veiu para Lorca, e sobiaçufe«bandona
qualquer pretexto retirou para Ceuta. Não confiava pi^VAmíl!**^*
nos andaluzes, que receava lhe desertassem;
por isso desistira da idéa de ir ao encontro de
Affonso VI e de lhe ofiferecer batalha na serra gra-
nadina de Tiriza. Teve todo o caracter de uma reti-
rada esta insólita saída. Em vista d'isto Affonso VI
resolveu desmantellar a praça de Aledo, cujas mu-
ralhas muito haviam sofifrido com o assedio, e cuja
guarnição ficara reduzidissima.
Era uma pequena desforra de Zalaca; mas nao
se podia ficar por ali.
luçufe creara prosélitos na Peninsula; se nascriam proi^iy-
classes mais cultas esse príncipe, pouco illustrado e vidM.
rude^ não tinha muitas sympathias, dispunha, em
compensação, de muitas e profundas nas classes
populares, entre a gente de trabalho, que detestava
a ociosidade da corte, e tinha culto por quem lhes
salvara a pátria e a religião das mãos dos infiéis,
dos terríveis inimigos do Propheta. Essa corrente
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fe,
240
de sympathia, apoiada pela classe sacerdotal, avi-
gorava no africano o propósito de nâo largar pé
d'aqui, até poder fazer a conquista da Península.
Planos de luçu- Esta idéa foi tomando vulto no seu cérebro, e
directamente, ou por intermédio dos seus homens
mais intelHgentes e válidos, tratou de a ir pondo
em execução. As dissensões e irredutíveis inimisa-
des entre os príncipes reinantes auxiliavam-n'o ex-
cellentemente.
lahia Alcadír, vendo-se sem as tropas que sob o
Commando de Álvaro Faftez lho dera por auxilio o
rei leonez, ligara- se ao almorávida para pôr dique
ás ambições dos príncipes vizinhos, com os quaes
ora se ligava, ora se inimisava, instnimento e ludi-
brio de uns e outros ; por morte violenta do rei, o
reino de Valência, convertido em republica gover-
nada por uma junta de notáveis, continuou sob a
protecção do luçufe, que deixara em Hespanba
como seu logar tenente o hábil e valente general
Seir. Este general invadira os territórios do rei de
Badajoz (1093), e passara a dominar em grande
parte do nosso Alemtejo, tendo a posse de Évora
e de Silves ; com a morte do Cid, que acaudilhara
a colligação dos príncipes andaluzes contra a
absorção dos afrícanos, estes tornar-se-íam senho-
res de todo o Andaluz ; as Baleares também cai-
riam nas suas niaos.
luçufe pela ler- Pcla tcrccira VOZ tiuha luçufe voltado á Penin-
penrnsuu. °* sula cm 1090; mas já d'esta vez as suas vistas
eram mais contra os mouros do que contra os
christâos, comquanto tivesse feito demonstrações
militares em volta de Toledo, chegando mesmo a
atacal-a.
Afibnío VI toma Emquauto o Cid trazia em cheque os almorá-
bJaêcintra.' vidas, AflFonso VI aproveitava as circumstancias
para uma expedição até ao Tejo Occidental e tomava
aos mouros as cidades de Santarém, Lisboa e
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241
Cintra, e outras povoações de menos importância
(1093), o que tudo em breve nos era tomado pelos
almorávidas, como veremos, sendo batido o conde
D. Raymundo, perto de Lisboa, quando buscou
reconquistal-as, pois faziam parte do condado da
Galliza.
Temos de fixar n'esta epocha (1096-1097) a
posse dada ao fidalgo borgonhez, Henrique do con-
dado de Portugal, com os lindes marcados entre o condado por.
o Minho e a indecisa fronteira ao sul, para áquem *°^"*
do Mondego, com uma individualidade indepen-
dente do senhorio da Galliza, confiado a outro fi-
dalgo borgonhez, D. Raj^ mundo, que até então go«
vernara até ao Tejo.
A creação do condado de Portugal é portanto
consequência da dilatação para o sul dos antigos
domínios christãos na Lusitânia, e da vinda de no-
bres aventureiros francezes á corte de Affonso na
cruzada provocada pela invasão dos almorávidas,
6 também da morte desastrosa, na batalha de Ucles,
do infante I). Sancho, filho da princeza abbácida
Zaida e de Affonso VI, que n'aquelle seu filho único
ia preparando a successão.
Dos diversos núcleos de formação orgânica, que
sob o laço politico guardavam na Península as an-
tigas differenciaçSes características, o núcleo por-
tuguez formou-se e integrou-se, atravez dos tem-
pos e favorecido pelas circumstancias, por forma
a constituir um organismo social que nada tem
podido destruir.
Nada mais interessante do que o estudo da for- sa« organuaçio
mação e desenvolvimento d'esse organismo, desde memo?"'''*
as suas origens; a elle vamos proceder, preparado
como foi já, nos volumes anteriores, o estudo dos
diversos elementos que entraram na sua composi-
ção, com as suas características próprias, resisten-
tes á acção dos tempos.
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242
Romanos, godos, árabes, todos, enxertando-se
no tronco primitivo das incultas raças peninsulares,
deram uma feição particular, inconfundível, ás na-
cionalidades da peninsula, e entre ellas Portugal
logrou guaràar sempre um logar á parte, bem seu.
Fazer a historia das sucus instituições militares,
instrumento e efFeito do desenvolvimento e pro-
gresso de todas as outras suas instituições, o mesmo
é que fazer toda a sua historia!
Esta comprehensão, que a alguns parecerá exa-
gerada, mas que assenta em bases que a sciencia
da historia consagrou como indispensáveis, nos
tem levado a dar largo desenvolvimento ao qua-
dro de onde tem de resaltar os factos militares,
cujo caracter e alcance se não pôde comprehender
sem que se comprehenda o cai^acter geral da civi-
lisação que os produziu.
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CAPITULO II
O condado de Portugal
Estudando, sob VAntogem do es-
o ponto de vista so- ^. *** *'*'
ciai e militar, os
diversos povos que
estacionaram ou
dominaram na pe-
nínsula hispânica,
e mais particular-
mente na região
que hoje repre-
senta o reino de
Portugal, não tive-
mos em vista esta-
belecer filiações
que já não existem,
porque foram des-
truídas pelas repe-
tidas soluções de continuidade produzidas por in-
vasões novas; mas unicamente apurar o que ficou
subsistindo, n'este ou n'aquelle ramo da actividade,
sobretudo militar, em productos d^essas varia-
das influencias; porquanto, se em grande parte,
se obliteraram ou se modificaram os elementos da
N.B. 'A figura que abre este capitulo é reproduzida do impor-
tante códice manuscnpto do século xii Apocalipse de Lorvão, que se
conserva na Torre do Tombo.
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244
elaboração antiga, creando novas individualidades
e typos novos, muitos outros persistiram, principal-
mente dos quatro grandes povos que lograram
o dominio da Hespanha: o púnico, o romano, o
godo e o árabe. #
Estes povos fizeram successi vãmente tábua raza
de quanto representava a feição e o caracter
das antigas tribus que desde Strabão, no rocicler
da historia, nos apparecem habitando a região que
dos phenicios, seus primitivos colonisadores, rece-
beu o nome de Span; mas como a herva dos cam-
pos, que parecendo ressequida e morta, rebenta e
reflorece ás primeiras chuvas, assim as qualidades
primitivas d'aquellas raças repontam na historia
com os seus caracteristicos fundamentaes, que as
distinguem dos outros povos estabelecidos n'outras
regiões e que guardam também, através do tempo
e do espaço, a sua feição peculiar.
Sem nos preoccuparmos, pois, com essas filia-
ções remotas que, a partir dos nossos eruditos es-
criptores da renascença, nos levaram ingenuamente
a reputarmo-nos descendentes e representantes di-
rectos dos antigos lusitanos estacionados ao norte
do Tejo e do Guadiana, em intimas relações de pa-
rentesco com outro povo, o gallaico, que havia fi-
xado os seus arraiaes para alem do Douro, compi'e-
Do!fcfactoBc»r»-hendendo o seu Aa6^7a/ o nosso Entre Douro e Minho
e a Galliza, dois factos apenas deixaremos aponta-
dos aqui, como explicação dos acontecimentos his'
toricos que temos de desenvolver, e são: o accen-
tuado caracter da nossa Beira, a legitima Lusitânia,
com um papel militar tão importante na historia,
desde os tempos mais remotos; e a similhança pro-
funda, que ainda hoje se conserva entre o caracter,
a Índole, os costumes, as tradições da nossa região
de além-Douro e a Galliza. A Galliza ia até ao
Douro no tempo dos romanos, Plinio e Strabão as-
cteristicoa.
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246
sim o deixaram indicado. Os escriptores gallegos
reivindicam para o seu antigo reino a fronteira do
Douro *.
Mas dentro doestes característicos geraes de fami- p«rtiço)»ri«mot.
lia, individualisando ao occidente da peninsula um
povo que se apresentou sempre com uma indole e
feição differentes do resto da Hespanha, ha diflPeren-
ciações, ha núcleos particulares e distinctos, que,
auxiliados pelas condições geographicas do territó-
rio que habitam, se integram no sentido de apre-
sentar uma individualidade inconfundível com as
outras ; é o que se encontra na historia da região
que hoje conhecemos pelo nome da Beira, e, para
além-Douro, nas terras da Maia, entre o Douro e OTems d«M«ia.
Lima *.
N'es8as differenciações se fundavam geralmente
as antigas divisórias territoriaes, para cujo governo
e administração se escolhia um prócere illustre
d'e8sa região ou um membro da familia reinante.
Englobado primeiramente no território que até o condado por-
Aftonso VI se considerava um remo, comprehen-
dendo os territórios dos três conventos jurídicos
de Braga, Lugo e Astorga, e que no tempo d'esse
soberano se instituiu em condado, isto é, a Gal-
liza, — o território que veiu a constituir o núcleo
^ «Importa poço para ol caso que Braga este en poder de Por-
taguesefi. No por eso deja de ser Galicía. Expresamente Io dice Pto-
loraep, temenao los Gallegos Lucenscs e los Gallegos Bracarenses.
No fiay Portugal ó Lusitânia hasta pasado el Duero, como lo dice
Plínio. A durio Lusitânia incipit. Aun llaman los Portugueses en-
tre Duero y Miflo de su dependência Galegaos; y á los dei reyno
de Espana Galegos. Asi es mui vieible necedad la de los que dicen
que Portugal se estendia hasta Ia Torre de Loveira, ai Norte de
Pontevedra. Antes bien Galicia se estendia hasta el rio Duero».
P. Martin Sanniento. Hial. y Geog. de Galicia. Vide Est.rada9 Mili-
tares de Braga a Aèiorga,— Memoria da Acad, fíeal das Sciencias de
Lisboa, 1901.
2 «Estes todos se cbamarom da Maya porque se ganhou por os
seus avóos e Ruiam na por sua : e a Maya chamauasse naquel tempo
dês Doyro atáa Lima*. Liv. de Linh. do Conde D. Pedro.— Pohtdo.
MoKUM. EscRip., pag. 277.
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246
da monarchia portugueza passou, já accrescido por
novas conquistas, á categoria de condado, — o
condado portucalense.
Reuçsos com a Era uuia partc minlma do que no tempo dos ro-
nu. manos se conhecia por Lusitânia, que a pamr de
Tibério, ou, pelo menos, dos fins do império de Au-
gusto (pois é Strabão o primeiro a indical-a como
provincia romana), comprehendia «toda a parte mais
Occidental da peninsula, a começar das bocas do
AnaSy caminhando para cima em direcção do norte
até Noega, perto de Gijon, nas Astúrias ; a sua fron-
teira oriental seguia o curso do Ana^ desde Merida
até perto de Lacimurgis, em direcção de leste a
oeste, e cruzava o Tejo perto de Caesarobriga, hoje
Talavera de la Reina, e o Douro perto de Zamora,
mas sem comprehender Leão nem Astorga». As-
sim delimita Emilio Httbner * a área da nova pro-
vincia, nascida da divisão da grande provincia ro-
mana do tempo da republica, a Ulterior, em Lusitânia
e Betica. N'esta ultima estava comprehendida a
parte do actual reino portuguez ao sul do Tejo, en-
tre o Guadiana e o Atlântico.
proTineiuroma. A partir dc Constautino Magno, pelo menos, a
""' peninsula apparece repartida em cinco províncias,
divididas cada uma d'ellas em conventos jurídicos,
das quaes três continham, cada qual, uma parte do
actual território portuguez : a Betica comprehendia
o que fica ao sul do Tejo; a Lusitânia o território
entre o Douro, o Tejo e o Guadiana, com Santa-
rém e Beja como centros de .dois dos três conven-
tos jurídicos de que a provincia se compunha*; e a
Gallecia ficava para cima do Douro, com Braga por
sede de um dos seus três conventos jurídicos'. A
Lusitânia é apenas uma parte d'aquelle território
^ £ Wiibner. La Arqueologia de Empana, pag. 1G5.
2 Merida, Beja, Santarém.
3 Astorga, Lugo, Braga.
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247
habitado pelos celtas do occidente da península, e
que Strabão apresenta como estando delimitado
ao poente e norte pelo mar, e ao sul pelo Tejo,
deixando indeterminados os seus lindes ao nas-
cente.
Referindo-se aos vários limites attribuidos aoqueALu>itanu.
outr'ora se conheceu por Lusitânia, diz Herculano:
«O que, porém, se deduz evidentemente de todos os
geographos antigos, tanto d'aquelles que fallaram
da Lusitânia antes da conquista romana, como dos
que só tomaram por fundamento as divisões esta-
belecidas por esta, é que os territórios a que se deu
tal nome se estendiam pelas provincias hespanho-
las muito além das modernas fronteiras orientaes
de Portugal, ao passo que na primeira epocha não
passavam, pelo sul, além do Tejo, e na segunda
findavam ao norte no Douro. Assim, nos tempos
da independência céltica e do dominio romano,
o território da Lusitânia, abrangendo de leste
a oeste uma extensão mais que duplicada da lar-
gura actual do nosso paiz, dilatava*se a principio,
talvez, até á extremidade septentrional da Gralliza,
emquanto que ficava fora d'ella metade do Alem-
tejo e do Algarve, e, depois de abranger estas pro-
vincias, menos a porção do nosso solo além do
Guadiana, o qual ficou sempre pertencendo á Be-
tica, perdia tudo o que jaz alén> do Douro até o
cabo de Finisterra,- isto é, metade da sua superfí-
cie, suppondo com Strabão que lhe pertenciam os
territórios além doeste ultimo rio». .
Sobre estas antigas divisões territoriaes romanas inTasOea.
passaram as rasouras das invasões dos vândalos e
suevos, dos alanos, dos selingos, dos visigodos, dos
árabes, e destruiram e modificaram tudo ; mas na
tradição e nos interesses locaes permaneceu o querDiff^renciafSeg
que fosse que representava as formações primeiras, p*"^***"*®'-
Ainda hoje, reparae bem e vereis que o Entre-
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Nacionalidade
portngueza.
Douro e Minho diífere da Beira nos seus caracte-
rísticos geraes, e a Beira é diíFerente do Alemtejo
e do Algarve,
Na nacionalidade portngueza fundiram-se ele-
mentos de diversa origem e com características dÍ8-
tinctas ; do trabalho commum veiu a commum von-
tade, que teve^ como meio de se manifestar e de se
ipapor, a unidade do governo, confiada a braços vi-
gorosos e enérgicos nas crises máximas da existen^
cia nacional.
O núcleo de formação d'esta individualidade que
tem sabido, através do tempo, manter ou salvar a
sua integridade, foi o condado portugalense, con-
stituído em unidade á parte por Affonso VI de
Leão e Castella, bem longe da idéa de que seria
não só uma força excêntrica e rebelde, como eram
tantas outras, dentro do systema da unidade pe-
ninsular que elle ia preparando, com mao férrea,
mas o núcleo resistente de uma nacionalidade dis-
tincta.
Qual o território comprehendido por esse con-
dado ? É o que vamos estudar, procurando definir-
lhe, quanto possivel, os limites.
Limites.
Era, na realidade, uma porção da Lusitânia, se-
gundo a primeira divisão territorial romana, e uma
parte da Lusitânia e outra da Gallecia, na segunda
divisão, o que constituía o condado portuguea; mas
a antiga unidade d'estas provincias deixara de ha
muito de existir, dividindo os neo-godos os territó-
rios, que iam successivamente arrebatando aos mou-
ros, consoante as necessidades da conquista e da
administração, embora não deixassem n'Í8So de at*-
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BitamiMtlII
d
AnaasB Bbois
D» Bilnlatiira do Livro ãoê TMmmmIm oa PrMli|^#, qae
•e eoBMrra n* ealhedral de Oriedo, n* attaup* qno
r«pr«Miita Aflbnao o Otito, de CMtalU, «eomiMnlMdo
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249
tender um pouco ás differenciações locaes e tradi-
cionaes.
Doa alcantis das Astúrias, onde os dois primeiros a Reoonquiiu.
reis da restricta monarchia christã de Oviedo e Leão,
Pelagio e Favila, representavam os restos para ali
relegados do antigo poderio godo, e iniciavam as
luctas da reconquista, em algaradas, mais ou menos
violentas, nos territórios musulmanos que os insu-
lavam, Affonso I leva os seus rijos fossados por
Castella Velha dentro e pela Galliza até ao Douro, chega m «o
semeando a devastação e a ruina; Fruela, seu filho, ^"'''
continua a acção de seu pae, mantém o dominio
da Galliza, onde doma rebelliões nascentes, subju-
ga a Vasconia, ao norte; e quando morria, assas-
sinado pelos seus, deixava fundada Oviedo, para
onde, pela dilatação dos dominios ao occidente, se
deslocou a capital da monarchia, que até então fora
Cangas.
Nos pacificos reinados de Aurélio, Silo e Ber-
mudo não se dilatou o reino christão ; mas Affon-
so 11^ filho de Bermudo, já nos apparece repellindo
as gasivas dos sarracenos nos seus territórios, e
desbaratando-os, e mesmo levando, como repre-
sália, até junto do Tejo as suas armas bellicosas,
sitiando Lisboa, colhendo opimos despojos, comsiuodeLuboa.
que sancciona a alliança que celebra com Carlos
Magno. O seu reinado foi, por um lado, de lucta
armada contra os musulmanos, por outro, de re-
vigoração do espirito godo, por meio da adaptação
das suas antigas leis, usos e costumes. E d'esta
epocha o guerreiro, amiiger regis, que damos na
estampa III.
Assim abrira o século ix ; e por morte de Affon- Runovatio go-
80 II (842) pode dizer-se que a alma antiga co- ^^^^'
meçava apenas a palpitar no novo organismo so-
cial, ao qual estava confiada uma alta obra de
reivindicação e de resurreição; o papel de Affonso 11
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250
foi um tentamen, perturbado constantemente pelas
agitações e revoltas que caracterisavam o estado
evolucionário da nova sociedade, onde laboravam
tão desencontrados elementos. A acção da recon-
quista padecia das perturbações internas produzi-
das pela elevação de Ramiro ao throno, succedendo
ao tio, por livre escolha da opinião, segundo os
principies da legislação visigoda, persistentemente
guardada pelos seus novos representantes ; mas o
imporunte p*- rciuado dc Ordonho I, seu filho, livre d'essas dissi-
pei de Ordo> ■%• . a j j •• •
nho 1. dias sangrentas, porque a vontade da nação coin-
cidiu com a sua herança do throno paterno, pôde
assegurar os dominios na parte onde elle estava
decisivamente fixado, isto é, para alem do Douro,
reedificando, povoando, dando largo incremento ás
construcções e trabalhos de paz em Leão, em Cas-
tella e na Galliza; reconquistando aos mouros
Orense, de que estes haviam logrado reassenho-
rear-se ; tomando ao mosarabe Muça o castello que
conseguira edificar em Albaida (Rioja), n'uma in-
cursão pelas terras christãs, e Coria e Salamanca
ao Oriente; dominando as rebelliões dos vasconios,
e repellindo os normandos nas costas da Galliza.
Por morte de Ordonho (866) dá-se um facto que
intimamente se liga com a nossa historia: é a pri-
GaiiiRacomoin-meira manifcstação da constituição de uma indivi-
°* ****** dualidade social: a Galliza. Fruela, governador
doesta provincia, encontra nos ricos homens e pri-
mazes doeste vasto districto apoio para se procla-
mar rei, não acceitando que a successão de Ordo-
nho recaisse no seu filho menor AflFonso.
Esta coUigáção dos ricos homens e barões gal-
Tendenciu re- Icgos prova já a cxistcncia n*esse tempo de ten-
*"* dencias regionalistas na Galliza, que se accentua-
ram depois e até hoje se conservam. Essas tendên-
cias provinham geralmente ou das ambições de um
ou mais senhores, que se apoiavam nos sentimen-
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251
tos locaes, ou (i'e8se8 sentimentos que buscavam a
iniciativa de um ou mais senhores para se mani-
festarem. Esses senhores eram, n'esta epocha, os
Sancho Inigo em Aragão, os Sancho Garcez em
Castella, os Fruela e Menendo Gonsalves na Gal-
liza, os Nuno Mendes em Portugal.
Os processos empregados pelo conde Fruela
para subir ao throno foram adoptados contra elle
para o arrancar d'ali ; pouco tempo depois era as-
sassinado, passando a reinar o filho de Ordonho.
Affonsp m representa um periodo agitado e vio-
lento da monarchia çhristã, n^essa phase de instabi-
lidade e desequilibrio das forças em conflicto : — os
vasconios, novamente rebellados e subjugados pelas
armas ; recuperação de Coria e Salamanca que re-
cairá em poder dos islamitas ; fossados victoriosos
até á base estratégica do Tejo, que era de ha muito
o objectivo dos christãos ; tomada de Lamego, Vi- Tomada de La-
zeu e Coimbra, que povoou com gente da Gallisa, coimira **Sor
e algaradas devastadoras até Idanha e Merida*;
depois da batalha de Polvoraria, junto ao rio
Orbiego, onde os mouros foram desbaratados, uma
fugaz trégua de três annos, para recomeçarem
as hostilidades com maior impulso; finalmente, a
invasão das armas christãs até á Serra Morena,
onde alcançam nova victoria.
As represálias do emir de Córdova, em Castella
Yelha, em Leão, em Navarra, até finaes pazes de-
terminadas pela instabilidade dos resultados da
guerra, que só produziam, de parte a parte, devas-
tações e ruinas, levaram Affonso III a assentar no
Douro os limites septentrionaes e orientaes dos seus
* Conihriam, ah inimicis posaessam, cremavit, et Galloecis poêtea
populavit... 61 — Urbes quoque Bracharensiê, Portucalensie, Aueensis,
Eminenêiê, Vesensis, atqne LamecenHs à ChrUtianis populantur. Is-
tiu8 Victoria Cauriensis, Egitanierutis et ceteraa Ltmtamae limites^
gladio et fame conêumptaey usque Emeritam atque freta maris, cre-
mavU et dextruxit, Chbokicon Albeldense. 62.
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262
domiiiios, em relação ao senhorio árabe para áquem
doeste rio ; assim buscou consagrar os últimos an-
nos do seu reinado em restaurar as povoações e
remediar os destroços da guerra, fortificando na
fronteira as povoações de Zamora, Simancas, Do-
nas e Touro.
N'este8 propósitos de paz nâo logrou demorar-se
muito, porque o pacto com o rei de Córdova nâo
impediu que Alchaman (Ahmede Benalquiti) senho-
reando Toledo e Tala vera, em nome de Ornar Bem
Hafsun, emulo d'aquelle emir, e juntando um forte
exercito, cora reforços vindos de Africa, invadisse
o reino christão e, talando os campos, viesse pôr
cerco a Zamora; aqui o foi buscar Affonso III;
depois de rija peleja Ahmede foi derrotado e morto,
e com elle o vali de Tortosa, seu irmão, Abderra-
Toiedu ameaça- mão. No cucalço dos vcncidos os christãos marcha-
ram sobre Toledo, preferindo, porém, uma forte
indemnisação ás diíficuldades e incertesa do asse-
dio a uma praça que, desde os visigodos, conser-
vava os foros de uma das mais fortes e bem mon-
tadas fortalesas da Peninsula.
Uma rebellião armada de seu filho Gai-cia, au-
xiliada pelos barões da Galliza e das Astúrias, que
continuavam mantendo entre si a unidade regio-
nalista, mais e mais accentuada com o tempo,
usurpou o sceptro a AflFònso III, que larga e pode-
rosamente concorrera para a integração do nas-
cente império christão, mas que nflo pudera evitar
a primeira grande consequência do movimento de
desaggregação realisado pelas aspirações de inde-
pendência local, convertendo Navarra ein reino
aparte, na pessoa de Sancho Inigo, conde de Bi-
gorre, denominado o Forte. Assim, os sempre in-
submissos vasconios realisavam o seu sonho de
autonomia, mais cedo que nenhuma outra região.
Mas Galliza e Astúrias alguma cousa conse-
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253
guiam também n^esse sentido, porque Sancho, suc-
cedendo a seu pae AíFonso III, reconhecialhes a
força própria com que cada um doesse» cantões o
]iaviam auxiliado a usurpar a coroa paterna, por-
quanto, estabelecendo a sua corte em Leão, ,e pas-
sando a chamar-se rei de Leão, dava a seu irmão
Fruela o governo das Astúrias, e a seu irmão Or-
donho o da Galliza, «senão como reinos sepaia-
dos, diz Herculano, ao menos cora certo grau de in-
dependência» ; era isto um symptoma d'essas
«tentativas de independência, que por toda a parte
tendiam a desmembrar a já vasta monarchia das
Astúrias», de que mais adiante fala o mesmo es-
criptor, explicando as causas doeste phenomeno *.
No principio do século x, portanto, com a ele-Fonnaçio do>
vação de Garcia ao throno de Leão, temos Na- dlr'**'* **^
varra independente, e quasi independentes Gal-
liza e Astúrias. Convém ir notando estes factos
para se encontrar explicada a formação dos di-
versos estados que se crearam na Peninsula, mui-
tos dos quaes viveram algum tempo vida própria,
sendo os últimos unificados pelo sábio e poderoso
^ «Cada conde ou goveruador de districto, tendo nece8sarÍHmen-
te, em virtude do estado da guerra continua, juntos em suas mSos
todo4 os poderes militares, judiciaes, administrativos, era quasi um
verdadeiro rei, e nada mais fácil do que esquecer-se de que lá ao
longe, para o lado das montanhas das Astúrias, havia um homem
superior a elle. Sem existir o feudalismo, causas análogas ás que o
tinham gerado no norte da £uropa actuavam na Hespanha, e a es-
tas causas mais fortes nos districtos da fronteira árabe, onde a ener*
gia dos respectivos condes devia ser maior e o seu poder mais illi-
mitado, faziam com que ahi as rebelliões fossem mais frequentes e
algumas coroadas de bom successo, como succedeu, primeiro com a
Navarra ao oriente, depois com Castella no centro, e por ultimo
com Portugal ao occidente. Palpando, por assim dizer, este espirito
de desmembraçâo, que nascia da força das cousas depois que os es-
tados christâos adquiriram pela conquista mais remotos limites,
Fernando Magno procurou que as tendências de separação, em vez
de aproveitarem a estranhos, revertessem em proveito dos membros
da sua familia, e que assim se evitassem as Inctas civis, cedendo a
essas tendências em vez de tentar, talvez inutilmente, repremil-as».
A. Herculano. Hist. de Portugal, introd., iii.
16
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254
Força resist^ite influxo dc Izabel R CathoHca. A essa absorpçao
de Portugal. J.ggJgJJ^ Poitugal pclas suas especiaes condições
de vitalidade que iremos successivamente estu-
dando.
D. Garcia, nos três annos que reinou, limitou-se
a levar para os lados de Toledo as represá-
lias, e a prover á defesa dos seus castellos frontei-
ros ; mas o seu successor e irmão, Ordonho, gover-
nador da Galliza, herdou com o throno a missão
Ordonho na Lu- guerreira de seu pae, e levou o rigor das suas ar-
mas pela Lusitânia dentro, ainda alem do Tejo,
até o Guadiana, recebendo de Merida importantes
resgates para não ser assaltada, dando-se, porém,
mais tarde um sangrento encontro perto de S, Ea-
tevam de Gormaz, em que não levaram a melhor
as armas christas.
Ordonho II ainda se associou, com sorte igual-
mente adversa, ao rei de Navarra na resistência
d'este ás invasões sarracenas; mas como os mou-
ros, animados pelas victorias, transpunham os Py-
reneus e ameaçavam Tolosa, o rei leonez aprovei-
tava o ensejo e devastava a Andaluzia, sem que
isso representasse accrescimo do dominio territo-
rial.
No rápido reinado de Fruela II e do pacifico
AflFonso IV continua a mesma situação; com o
bellicoso e insoíFrido Ramiro II é que a obra da
Tomada de Ma- rccouquista rccomcça intensa; Ramiro toma e des-
mantela Madrid, sentinella e guarda de Toledo; e,
como os sarracenos entrassem em Castella, che-
gando até á Galliza, vae em soccorro do conde
Fernão Gonsalves que governava aquella provin-
cia, e perto de Osma, junto ao Douro, fere-se a
grande batalha que ficou memorável nos annaes
dos dois povos adversos.
Depois de três annos de paz em que, de parte a
parte, se refizeram as forças, recomeçam as hosti-
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255
lidades, que d'esta vez permittiam ao rei christSo,
com o auxilio e quasi submissão do alcaide de San-
tarém, passear as suas armas triumphantes na
Lusitânia, por Badajoz, Merida e Lisboa; o emir
de Córdova, contra quem, por vingança do alcaide
de Santarém Abii lahia, se formara esta colliga-
ção, respondia invadindo os territórios cliristãos,
pondo cerco a Zamora e dando batalha, com um
forte exercito, perto de Simancas, nas margens do
Pisuerga. Indecisa esta batalha, Zamora cae no
poder dos musulmanos, mas é pouco depois recu-
perada,
Por morte de Ramiro (950) succede-lhe seu filho
Ordonho III, que, debelladas as tentativas de re-
belliao dos bâroes e senhores de Castella e de Gal-
Hza, transpõe o Douro, entra pelas actuaes provin-
cias das nossas Beira e Extremadura, e p5e Lisboa
a saque.
Deve datar d'aqui, meados do século x, a trans- TraMUçio d«
lação das fronteiras da Galliza, do Douro para o ©'Sí^dígo^*"
Mondego; era uma crescença a mais ao que se
passaria a chamar o condado portucalense, a partir
do rio Minho para o sul.
O reinado de Sancho I, intercalado pela usurpa-
ção fugaz de. Ordonho, o Mau, não representa ne-
nhum progresso ; os de Ramiro II e Bermudo II
(967 a 999), agitados pelas correrias, devastações
e conquistas do terrível Almançor pelos territórios
christãos, até os alcantis das Astúrias, cobrindo-os
de sangue e de ruinas, eram um retrocesso aos tem-
pos calamitosos para a christandade, ameaçada de
ficar reduzida aos reductos alpestres em que se ti-
nha refugiado nas primeiras invasões dos africanos.
Já não era o Mondego, já mesmo não era o Douro inyu&o de ai-
a meta, embora fluctuante, do dominio christão, "*°*"*
que lembrava um vasto campo, coberto de ruinas,
por onde passava, a cada instante, o fluxo e refluxo
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de uma cheia medonha, subvertendo e desbahsando
tudo!
Teremos ainda occasião de ver o que foi essa in-
vasão de Almançor, realisada por terra e mar.
N'este estado de cousas subiu a um thronOjjá
por muitos reputado fallido, uma creança, que se
passava a chamar na historia Affonso V.
O espirito vigilante de sua mãe Geloira, com o
auxilio de Sancho Garcez, conde de Castella, e Me-
nendo Gonsalves, conde de Galliza, conseguiu man-
ter a flux a avariada nau do estado, ameaçada de
completo naufrágio. Uma espécie de cruzada christâ
reuniu nos campos de Lorca navarros, francezes,
leonezes, castelhanos e gallegos; o embate coma
onda musulmana que avançava temerosa, sem con-
tar com um tão poderoso dique, deu-se, segundo os
chronistas christaos, em Calatalnosor ; batalhou-se
fera e valorosamente ; a victoria ficou indecisa ; mas
durante a noite Almançor eífectuou a relirada,
transpondo o Douro, que passou a ser novamente
a fronteira christã, embora incerta ainda.
A leuda do Ca- Parccc provado ser invenção das chronicas eccle-
siasticas christãs todo este capitulo da campanha
coroada pela victoria de Calatalnosor, com que se
quiz buscar uma desforra á profanação de San-
thiago de Compostella; Gayangos no ^Z??? ara W in-
troduziu por sua conta este episodio tirado da
versão christã; mas Dozy restituiu á verdade os
factos *.
Pouco depois o caudilho mouro succumbia. Era
a Providencia! teriam pensado os christaos que
assim se viam libertos d'aquelle flagello. Abdal-
Maleque, que succede a seu pae, quer renovar os
seus feitos guerreiros, mas não tem nem o arca-
boiço, nem a estrella que a este guiara; os primei-
^ Dozy. Hecherches, tomo i.
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257
ros sete annos do século xi foram ainda assim
agitados, turbulentos, cheios de perigos para os
christãos.
Dentro de Castella, que na pessoa de Sancho
Grarcez quer fazer vingar os seus foros de indepen-
dência, levantam-se rebelliôes que Affonso V tem
de debellar, até que a morte d^aquelle discolo am-
bicioso deixa livre o braço real, o qual, consolidada
no interior a sua auctoridâde, cuida immediata-
mente em rehaver o terreno perdido. Busca firmar
o pé n'aquelle território, que já fora nosso, onde
imperavam ora o crescente, ora a cruz, e que viria
a constituir o núcleo fundamental da monarchia
portugueza.
Em 1027 Affonso V, transpondo o Douro, in- Tentativ» da to-
vade a antiga Lusitânia, e põe cerco a Vizeu, que poV^AffonwT
não logra tomar, pois o virotão de um besteiro,
lançado dos adarves, o prosta em terra e o mata.
Ficaram famosos n'este lance, como depois no
cerco posto por D. Fernando Magno, os besteiros
árabes de Vizeu.
Cerca de trinta annos se passam nas luctas e
guerras que caracterisaram o predominio do rei
de Navarra, D. Sancho, que por vingar seu cu-
nhado, o infantil conde castelhano D. Garcia, as-
sassinado pelos Vigilas ou Velas em caminho de
Leão, se assenhoreou de Castella, entrando tam-
bém em conflicto Leão com o reino unido de Na-
varra e Castella.
O casamento de Fernando, filho segundo do rei
de Navarra, com a primogénita do rei de Leão,
D. Sancha, reuniu n'aquelle príncipe em, 1037,
por morte de seu sogro, as coroas de Castella e
Leão. Depois de una annos de paz, seguiram-se as
luctas com Navarra; dá-se a batalha perto de Bur-
gos, onde o navarro D. Garcia perdeu a vida
(1054). Um anno depois Fernando, que justamente
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258
havia de conquistar o cognome de Magno^ conse-
guia realisar na Lusitânia o que Affonso V mal
Fernando Magno poderá tcutar. Apoderava-se da Beira, vindo por
° '^*' Salamanca e Almeida, começando por tomar Ceia
em 1055, e successivamente Vizeu, n^esse mesmo
anno *, e Lamego, Tarouca e outras praças no
outomno de 1057. Depois de uma pequena trégua,
ia em 1064 pôr cerco a Coimbra, que se rendia no
fim de seis mezes.
Tomada de coim- Esta couquista foi fcita por conselho e instan-
cias de Sizenando, filho de David, opulento mosa-
rabe, possuidor de Tentúgal e outras terras im-
portantes em Coimbra, e que tendo sido alvazir
ou ministro na corte de Alniotamides e um dos
seus melhores guerreiros, passara, não se sabe
porque motivos, ao serviço de Fernando Magno.
Esta mudança de opiniões e de partidos, tanto da
parte dos musulmanos como dos christãos, é um
facto frequentissimo n'essa epocha; e a personifi-
cação d'esse estado de crenças e consciências foi o
famoso Cid.
o moMrabo Se- Os cousclhos, bous scrviços c auxilios prcstados
por Sizenando foram recompensados por Fernando
Magno, dando-lhe o governo do condado de Coim-
bra, que creou, distincto do de Portucale, compre-
hendendo o território portuguez ao sul do Douro.
Sizenando foi um leal servidor dos monarchas chris-
tãos e da causa christã, oppondo-se efficazmente ás
invasões árabes, acompanhando AíFonso VI na ba-
talha de Zalaca, e dotando o districto de Coinabra
de edificações consagradas á sua nova fé. Na parte
exterior, da Sé Velha, d'aquella cidade, se vê hoje
o seu modesto sarcophago.
* Vizeu era defendido por um corpo de besteiros tão dextros e
fortes que os christãos tiveram de ren)rçar as suas armaduras. Na
tomada da praça ficou captivo o arqueiro que trinta annos antes
matara Affonso V, quando poz cerco áquella cidade, e foi ordenado
que se lhe cortassem as mãos.
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259
Assim ficava constituído, do Douro ao Mondego, Nucieo do cou«
o núcleo do que foi, primeiro o condado, e depois o ien«ê. p**'*"^**
reino de Portugal *.
Mas esse núcleo nao creára ainda individuali-
dade própria, estava englobado na unidade, já re-
conhecida e característica, que se chamava Galliza,
e que, não menos que Gastella, trabalhava por ac-
centuar a sua independência. No dizer criterioso
de Herculano, foi fundado n^esse espirito de des-
membração que se manifestava na peninsula, nas-
cido da força das cousas, que, por sua morte,
Fernando I fez entre os seus filhos a partilha do
reino, dividindo-o em três reinos distinctos e in-
dependentes. A seu filho Garcia, como sabemos,
deixou a Galliza, comprehendendo também o
«território já denominado Portugal, que abran-
gia não só toda a porção d^aquella provincia ao
sul do Minho e ao norte do Douro, mas também
o districto que, ao sul d'este ultimo rio até o Mon-
dego, tinha sido conquistado aos sarracenos^». De-
dit dcnnino Garseano totam GaUceciam una cun ioto
Portugale ^.
Já n'esse tempo se dá um facto que mostra queprodromoidoin.
já então começavam em Portugal a manifestar-se ^^p*'"'**"*'**-
aquelles symptomas caracteristicos das tentativas
de independentisação e de um viver sobre si : é a
rebellião dos barões e senhores de Entre o Douro e
Minho, que, reunidos ^fín volta do pendão de Nuno
Menendez, — vir illustris et magnae potentiae in Mo
Portugale — se quizeram impor a Garcia; este in-
flingiu-lhes uma rude derrota em Pertalani *, entre
* Expulsa itaqne de PovtucdU Maurontm ralie^ omnes ultra flu-
vium Mondego^ qui ulramque a Gallecia separai provinciam, Fer-
nandus rex ire eogit. Chronicon Silensis 90
2 A. Herculano. HisL de Porlvgal^ tomo i. Introd. iii.
5 Pelayo Ovetense. 8.
* •Ohtinuit atitem rex de illis victoriam in loco que dicilur Per-
talani, inter BracJiaram et fluvium Cavado», Rod. de Toled., De
Reb. Hisp. L. V. 17.
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260
Braga e o Cavado. Essa nascente individualidade,
antes de se poder impor como tal, continuou absor-
vida no reino da Galliza, cuja autonomia poude
Garcia affirmar nos soccorros que, como alliado,
levou a seu irmão Sancho de Castella nas suas
guerras de ambição contra seu outro irinao, Af-
Ibnso de Leão. Quando este reino é absorvido por
Castella, Garcia continua á frente da Galliza,
acrescida com as novas conquistas e acquisições
em Portugal.
A nova Gauiza. Estc rciuo uão é precisameutc a antiga forma-
ção orgânica, de origem sueva, que comprehendia,
reunidas, a Galliza asturica, a Galliza lucence e a
Galliza bracarense, porque d'elle não fazia já parte
a região asturica (Astorga e Leão); mas vinha em
compensação accrescida com a região portugueza,
luzitana, adquirida por D. Fernando, desde o
Douro até ao Mondego.
Este facto levou um escriptor regionalista da
Galliza a escrever o seguinte: — «Respiremos!
Quando reputávamos perdida completamente a
nossa autonomia e a nossa independência nacio-
nal, pela absorpção da coroa de Castella, esta co-
roa fica desligada da Galliza, formando um reino
independente sob o sceptro de Sancho, filho de
Fernando I. Respiremos ! A Galliza Incense e bra-
carense, com todo o território ao sul do Douro que
então se denominava Portucalia, vae constituir um
reino independente sob o sceptro de Garcia, filho
de Fernando I. Respiremos! Vae finalmente renas-
cer a antiga monarchia sueva, a antiga GaUiza,
recuperando para o sul ao árabe quanto perde para
o norte da Peninsula S).
Pouco tempo, porém, respiraram os gallegos,
porque em breve se desvanecia a sua esperança de
* D. Benito Viceto. Hist, de la GcUicia, tomo iv.
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261
independência. D. Garcia nao tinha cabeça nem
pulso para tal empreza; todavia nao deixou de ma-
nifestar o seu pensamento da integração de todo o
território quando, restaurando Braga, ali quiz col-
locar a sua corte, no evidente propósito de dilatar
para o sul os seus dominios. Só a uma parte doesse
território, constituido em reino, pertenceria no fu-
turo a gloria de se constituir em núcleo de um
reino novo, que bem poderia ter dilatado até aos
Pyrineus gallaicos os seus dominios, se as anibi-
ções do conde D. Henrique ou de AíFonso Henri-
ques tivessem encontrado decidido apoio no resto
da Galliza.
Do que se passou depois da morte de Fernando
o Magno, até á integração do condado portuguez
na pessoa de Tareja, filha de Affonso VI, casada
com D. Henrique de Borgonha, dêmos já uma rá-
pida resenha no capitulo antecedente.
Resta-nos tratar aqui propriamente da génese
doesse condado.
Vimos já como o reino que Fernando I entre- Aubua© vi.
gara retalhado aos seus três filhos voltara a re-
unir-se nas mãos de um d'elles, AíFonso, que tivera
por partilha o reino de Leão e das Astúrias ; como
doeste fora AíFonso expulso por Sancho de Cas-
tella, depois do ardil de Golpejar (Vulpecularia),
inspirado pelo Cid, e como finalmente, depois da
morte desastrosa de Sancho de Leão, no cerco de
Zamora, voltara a occupar o seu perdido throno,
reunido ao de Castella.
Não contente com isto, sem custo se assenho-
reava AíFonso da Galliza e de Portugal, que seu pae
dilatara definitivamente até ao Mondego, bastan-
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262
do-lhe, para esse fim, . attrahir á sua corte seu ir-
mão Garcia, que reinava n'aquella província, e
prendel-o, sem que nem Galliza nem Portugal se
revoltassem, nem contra o novo soberano, nem con-
tra a forma por que havia adquirido mais uma co-
roa.
Vimos também como Affonso, VI d'este nome,
se servira d'e8ta consolidação do reino de seu pae
nas suas mãos para accrescentar poderosamente o
seu império, obtendo cidades importantes, como
Cuenca, Huete e Ocanha, tomando Toledo, que
tornou capital d'esse império, e com ella o vasto
território contido n'aquelle emirado, e fazendo
«dominar de novo em mais de metade do território
hespanhol a cruz triumphante», porquanto «as
fronteiras ou extremaduras do reino leonez-caste-
Ihano se dilatavam agora por uma linha que cor-
ria de poente a nascente desde a foz do Mondego,
pela Beira Baixa^ direito a Coria, Talavera, To-
ledo, Huete e Cuenca, até ás serras de Albarra-
cim *j).
Para áquem d'esta linha manda AíFonso restau-
rar das perdas e ruinas o seu florescente reino;
para além vigia os movimentos dos musulmanos
que já se arreceiam de um tão crescente império e
até appellam para os almorá vidas africanos; contra
a invasão doestes, colligados com os emires de Hes-
panha, levanta uma cruzada christã, reúne um po-
deroso exercito em Toledo, vae-lhes ao encontro
perto de Badajoz, e se é realmente elle o vencido
(1086), pelo menos os africanos não proseguem na
invasão e abandonam o propósito de se assenho-
rearem de Toledo.
Dois annos depois (1088) é mais feliz, pois re-
pulsa uma nova invasão de luçufe e lhe illaqueia
1 A. Herculano. Hist. de Portugal, iiiti*od., ui.
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263
os movimentos. De parte a parle, entre christaos e
sarracenos, se multiplicam as hostilidades; os al-
morávidas já procedem por conta própria, cônscios
os musulmanos hespanhoes do novo e grave pe-
rigo que haviam attrahido á pátria ; a breve trecho
eram pelo invasor espoliados dos seus melhores do-
minios.
AfFonso VI aproveita o estarem os árabes deTomad*dosaii-
TT 1 1 f ' r tarem, Lisboa
Hespanha a braços com os africanos para fazer ecintra.
avançar até ao Tejo a sua fronteira, tomando San-
tarém, Lisboa e Cintra (1093). Mas essa fronteira
era ainda muito instável, porque tendo aquellas
praças, Lisboa e Cintra mezes depois, e mais tarde
Santarém, recaido nas mãos dos musulmanos, foi
necessário que annos mais tarde Affonso Henri-
ques as reconquistasse para Portugal, e levasse
para aquelle rio a sua definitiva base de operações
contra o Garbe.
Com effeito, nos fins d'esse mesmo anno de 1093 invasão aimora-
o famoso general almoravida, Seir, logar-tenente de
luçufe, invadiu o emirado de Badajoz, e assenho-
reou-se do que hoje chamamos o Alemtejo portu-
guez, tomando-lhes, alem de outras praças, as im-
portantes cidades fortificadas de Évora e Silves.
No impulso das conquistas, entra a nova fronteira
christã e apodera-se de Lisboa e Cintra. Santa-
rém, que é dada também por couquistada nessa
epocha, continua na posse dos christaos, porquanto
data de 1095, dois annos depois, o foral que lhe
foi dado por Affonso VI.
Como as novas possessões que os christaos aca-Derrou do conde
■I 1 -| T^ , 1 Rayniundo de
bavam de perder na nossa Lxtremadura eram uma Borgonha.
parte do condado da Ualliza, o conde D. Ray-
mundo de Borgonha, de que adiante fallaremos,
primo do nosso conde D. Henrique, e casado com
D. Urraca, filha de D. Affonso VI, entendeu do
seu brio e dever recuperai- as ; e como Seir, reali-
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264
sadas as conquistas e expulsa d'ali a dyiDiiastia
dos Benalaftas, fora' acudir a Valência, a braços
com o terrível Cid, veiu estabelecer a sua corte
em Coimbra (1094), aqui reuniu um exercito, re-
solvido não só a rehaver o perdido, mas a estabele-
cer-se n'aquelles territórios, e marchou sobre Lis-
boa, junto da qual assentou arraiaes. Os sarracenos,
congregando um forte exercito, tomaram a oflfen-
siva, romperam-lhe o campo, desbarataram-lhe a
hoste, e obrigaram-no a retirar, seriamente escar-
mentado (1095).
^drdTindep^n- D^cstc dcsastroso acontecimento, resultado ou
dente da Gaiii- ^g^ impcricia OU do infortúnio do conde D. Ray-
mundo, conjectura Alexandre Herculano que pro-
viesse o ser desmembrado da Galliza todo o terri-
tório desde a margem esquerda do Minho até San-
tarém; este novo districto foi confiado ao conde
D. Henrique, com a condição de que servisse o seu
rei, «fosse ás suas cortes e chamados, e sendo caso
que fosse doente ou tivesse legitimo impedimento
a nom poder lá hir, lhe mandasse hum dos mais
principaes da sua terra ha seu serviço com trezen-
tos de cavalo, nom avendo naquelle tempo mais
naquella terra de Portugal; e ainda lhe assinou
mais terra da ^ hos Mouros possoyam, que ha
conquistasse, e tomandoa, acrescentasse em seu
Condado, ho que elle e seus successores com muito
esforço e valentia por muito arriscados perigos e
trabalhos depois fizerão, e que nom querendo ho
conde D. Anrique cumprir assi esto, qualquer que
fosse Rey de Castella pudesse tomar ha terra aho
dito conde e mais toda outra que ho dito conde e
seus successores guanhassem, e fazer delia ho que
lhe aprouvesse, como de cousa sua própria*».
^ Duarte Galvão. Coronica dtlrty D. Âffonso Anrique^^ cap. i.
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265
D'aqiii dataria a primeira organisação, com um^"""*'^*''*^*'^^*-
relativo caracter de independência, do condado de
Portugal, constituído em província ou districto á
parte.
Mas as origens do districto portiicalensey com
um certo caracter próprio, são, pelo menos, de dois
séculos mais antigas.
Vimos já como na instabilidade das guerras, que ^J^;*fj"* *""'
ora favoreciam os christãos ora os sarracenos,
a fronteira da província da Galliza umas vezes
se deslocava até ao Mondego e ao Tejo, outras
se retraía até ao Douro. Com Affonso III, que
conquistara, e com Fernando Magno, que recon-
quistara aos mouros Ceia, Lamego, Vizeu e Coim-
bra, a Galliza dilatou-se até ao Mondego ; com Af-
fonso VI, embora n'um fugaz momento de espe-
rança, cresceu até Lisboa e Cintra; em breve, po-
rem, teve de recuar até Santarém, e mais tarde
até Coimbra.
O vasto território comprehendido no antigo con- 1>»^*'»^<' t*»"''"-
dado ou reino da Galliza era dividido em diversos
dístríctos, não só para recompensa de serviços
prestados por aquelles a quem esses districtos
eram confiados, mas para a boa administração e
melhor defensa do território, principalmente na
fronteira, onde era necessária uma grande unidade
e energia no governo. Um conde governava um só
districto ou uma reunião d'elles; ou uma porção
d'elles juntos, dentro de uma grande província,
estava sujeita A auctoridade de um príncipe ou de
um conde superior.
Era a reproducção do que se passava, como
tivemos occasião de ver, no regimen dos visi-
godos.
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266
O condado portucalense era um d^esses districtos,
primeiramente constituído por uma parte da nossa
actual província do Minho e uma parte dos nossos
Traz os Montes até ao Douro, e mais tarde, no sé-
culo XI, comprehendía o território entre o rio
Vouga e o Minho, querendo alguns que fosse até
Lobeira, perto de Pontevedra *.
Terr» poriuca- A ttvra povtucalense tirava o seu nome do antigo
castro e povoação romana Cale^ indicado na quinta
estrada militar do chamado Itinerário de Antonino,
estrada que ia de Lisboa a Braga, passando por
Santarém, Coimbra, Condeixa a Velha e Gaya
(Calle)^
Cale. Calle, na margem esquerda do Douro, guardava
com o seu castro a entrada doeste rio, e ao mesmo
tempo defendia e atalaiava a passagem do cami-
nho que, por sobre o Douro, ia da Lusitânia á
Gallecia, ligando directamente a segunda cidade
d'aquella província, e importante imporío commer-
cial, com um dos mais afamados conventos jurídi-
cos d'esta. Castmm a/itiquiim se passou a chamar
quando fronteiro a elle se ergueu outro, na mar-
gem direita, protegendo uma povoação nascente
de pescadores, marítimos e commerciantes ^, que
foi o núcleo da futura grande cidade do Porto.
* « . . . outra chamada Dona Tareja deu por molher ha D. Anri-
que sobrinho do conde de Tolosa, dando-Ihe com ella em casamento
Coimbra, com toda ha terra atée ho Castello de Lobeyra, que he
huã leguoa além de ponte Vedra,em Gualisa, ecom toda a terra de
Vizeu e Lamego, que seu pay líl Rey D, Fernando, e elle guanha-
rào nas comarcas da Beyra». Duarte Galvão. Coronica ddrty D. Af-
fonso Anriques^ cap. i.
2 Vide Hist. Org. e Pol. do Exerc. Port., tomo ii.
' «... e ha causa porque ha terra se chamou Portugal, foy que
antigamente sobre ho Douro foy povoado ho Castello de Guaya, e
por aportarS é ahl mercadores, e navios, e avssi pescadores pelo Rio
dentro ancorarem, e estenderem suas redes de outra parte para ieso
maia conveniente, se povoou outro luguar, que se chamou ho Porto,
que ora hee Cidade muy principal, donde ajuntando estes deus no-
mes, foy chamado Portugal». Duarte Galvão. Coronica ddrty D. Âf-
fonso Anriques^ cap. ii.
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267
Portucale castrum Tiovum ficou-se chamando esta
nova povoação afortalezada, em contraposição ao
Portucale castrum anticum, aquelle que é já citado
no tempo dos visigodos.
Do morro onde hoje assenta a sé do Porto, a
nova fortaleza, erguida certamente pelos christãos
quando, com Affonso I, avançaram até ao Douro,
vigiava e ameaçava o castro fronteiro onde cam-
peava ainda o crescente mourisco, e ambos elles
foram testemunhas de muitos episódios, de guer-
ras e de amores, como os que o Nobiliário do
conde D. Pedro nos legou na sua pittoresca lin-
guagem, e que é uma pagina curiosissima para a
historia, não só dos costumes da epocha, mas do
consorcio das duas raças e das duas civilisações
na peninsula *.
 Affonso III devemos attribuir a constituição ori^om do coa-
do primeiro condado portucalense, quando pela
primeira vez as armas christãs recuperaram a re-
gião para áquem do Douro, tomando Portitcalem e
vindo até Coimbra; evidentemente esse rei quepo-
voou de christãos, como diz o Albeldense, aquella
cidade, como também Braga, Eminio, Vizeu e
Lamego, devia ter posto ali um conde, como en-
tão se usava. «Esa sola frase dei Albeldense,
dan Alonso III reconquisto á Portucalensis, diz um
escriptor hespanhol, es la bola de nieve que ro-
dando hácia el sur de nuestros ventisqueros galai-
co-bracarenses, será mas adelante un inmenso alud
6 reino, entre el Miiio y el Mediterrâneo»^; e pre-
tende que o seu conde pode ser um de tantos que
em 899 assignaram a dotação da igreja de Com-
postella. Isto é mais do que uma conjectura, por-
que realmente entre os diversos governos da Gal-
* Vide Documento A no fim do volume.
2 D. Benito Viceto. HUloria de Galliciaf tomo iv.
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268
liza apparece desde o meado do século ix o
districto ou condsiào portucalense^.
Um conde de No anno de 877 reúne AíFonso III um concilio
fuiolf* *''^*^"em Oviedo, e n'elle, segundo Sampiro, tomam
parte e assign.im, entre outros, os seguintes condes:
Hermenegildo, conde de Tuy e Portucale, Árias,
seu fiUio, conde do Eminio (Coimbra), Pelayo,
conde de Bragança, e Ero conde de Lugo *. Alem
d'estes condados vê-se que existiam n'essa data
mais 08 seguintes em que o reino se dividia: Luna,
Leão, Astorga eVierzo, Toral, Deza, Castella e
Oca, e Prusios.
o°»'«? Almacari falia de um conde Luderique Bem
Belasque ou Rodrigo Velasques, um dos mais po-
derosos chefes, com territórios ao occidente da
Galliza, cuja màe foi em 953 (354 H) á corte de
Alaquem II pedir para ser mantida a paz com o
seu filho, e porventura auxilio para se realisar a
idéa da independência que animava os condes
gallegos.
Este conde Rodrigo Velasques seria porventui-a
das terras de Portugal. Esta é a conjectura de Vi-
ceto^ que se baseia da traducçao do Almacari do
Murpliy, que aliás differe da de Gayangos, por-
quanto este traduz: «Roderigo era um poderoso
chefe, cujos estados confinavam com a Galliza»* e
1 A. Herculano. Hiet. de Portugal, liv. i.
2 «Visais itaque Rex Epistolis, magno gáudio gavisus est. Tnnc
conetitnit dicm consecrationis jam dictae Ecclesise, sive et concilium
celebrandum apud Ovetum cum omnibus Episcopis, qui in illius
erant Regno . . . Igitur, auziliante Domino, venit Rez ad statutum
diem cum uxore sua et íiliis et cum proedictis Episcopis, et cum
uni vereis Potcstatibus, eive et cum subscriptis comitibus suis per-
nominatis: Aluarus Luncnsis Comos, Verenumdus Legionensis
Comes, Sarracinus Astorico et Berizo Comes, Veremundus Torrensis
Comes, Betotus in Dcza Comes, Erracnegildus Tude et Portngalle
Comes, Árias filius ejus Eminio Comes, Pelagius Bregâcie Comes,
Oídarius Castellae et Aus Comes, Sylus Prucii Comes, Erua in
Lugo Comes etc.» Chronicon de Saupiro, 9.
^ Vice to. Iliét. de la Galliza, tomo iv.
^ Almacari. Analectes I, pag. 249.
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269
Murphy traduz «poderoso chefe dos territórios ao
occidente da Galliza», o que está em harmonia
com a traducção do nosso amigo sr. David Lopes,
obsequiosamente feita a nosso pedido*.
No tempo de D. Garcia encontramos Nuno o conde Nano
Mendes governando o condado portugalense e
rebellando-se contra o rei; emquanto Sizenando
governava em Coimbra no tempo de D. Fernando,
governa o Porto Munio Hermiges*.
Se não fossem tao escassos de noticias os docu-
mentos conhecidos, seria curioso fazer uma relação
dos condes que estiveram, antes de D. Henrique,
á frente do condado portugalense. O primeiro rei, d. oarcu i rei
com este titulo, da região portugueza, podemos "^"^ ^'■*"8*-
dizer que é Garcia, II da Galliza e I de Portugal,
filho de Fernando Magno; pelo menos é assim
tratado no seu epitaphio ^.
O condado portucalense apparece-nos histori- primeiroa nmi-
camente no tempo de D. Fernando e de D. Af- áL ** *'*'° *"
fonso VI. A principio, o condado seria talhado por
uma forma diversa da que geralmente determinava
* «The mother of Count Luderik Ibn Belask (Rodrigo Velas-
gnez) went also to court of Al-hakem. This Luderic was a power-
fui chief(ain, whose states bordered upon Galicia. Having íiri>t
dispatched the great oflScers of bis court to meet the christian
princesa, the Khalif rocievcd her in state, grantcd the pcace she
reqnested on bebalf of her son, and gave her a large sum of money
to be distributéd among her attendanfs, besides a rich presont for
beraelf». Gayangos, Almacari, liv. vi, cap. vi.
* Vid. doe. nas Dissert. Chron., tomo iii, pag. 42.
3 H. /?. Domintu Garcia
JRex PortvgáUae et Galhedae.
Filias Regia Magni Ferdinandi
Hic ingenio captus
A fratre suo
In vincnliõ ohiit
Era MCXXVni
XI Kal Aprilia,
Traduzido diz : Aqui repousa D. Garcia, rei de Portugal e da
GaHisa, filho de grande rei D. Fernando, o qual foi preso com arte
ou cautela por seu irmão : morreu na prisão no anno de 1090, a 22
de março.
17
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270
os limites das circumscripções administrativas, que
ainda hoje buscam os seus lindes nas indica-
ções naturaes dos rios, serras, etc. Comprehendia
parte de Entre Douro e Minho, e aquella porção
de território, de dominio incerto durante muito
tempo, que as aimas chrístãs conquistaram para
áquem-Douro ; de maneira que era cortado por este
Condado! de rio, cm más condições de unidade. Mas quando
cíííSi * ^* Fernando Magno, auxiliado por Sizenando, o mo-
sarabe, conseguiu arrancar a Beira a Benabade,
assentando a sua auctoridade no território para
além do Alva e do Mondego, muito naturalmente
nasceu a divisão administrativa e militar em dois
districtos : o de Portugal, que ia do Douro ao Mi-
nho, menos a Feira (terra de Santa Maria), com
parte dos Traz os Montes, cujo governo, ao que
parece, foi dado a Nuno Mendes, e o de Coim-
bra, que abrangendo o território desde o Douro até
ao Mondego, limitado pela serra da Estrella ao
sueste, e pela linha de Ceia, Vizeu, Lamego, ao
oriente, ficou ao cargo de Sezinando, feito conde
ou alvasil * christão.
Nuno Mendel em Quc no districto portugucz govcmava Nuno Men-
des, se pôde concluir do facto de ser elle quem ca-
pitaneava a rebellião dos portugalenses contra
D. Garcia, filho de Fernando Magno, a quem seu
pae legara por morte, como vimos, o reino de Gal-
liza, e que, em combate travado com os insurgentes
entre Braga e o Cavado, lhes matái*a o chefe e os
derrotara.
No condado de Coimbra Sizenando mantém in-
tegra a auctoridade da coroa leoneza. Comquanto
não intentasse incursões pelo território dos musul-
manos, não os deixava todavia medrar nas proximi-
* nRegnanie Adfotievs Princeps in GaUicia, in Bracaro Petrus
Episcopusy in CoUmhria Sunandus Alvazirv, Doação no Cartório do
Mosteiro de Arouca. Êra 1108. Diesert, Chron, tomo uí, pag. 9.
Portugal.
Snsfnando em
Coimbra.
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271
dades das suas fronteiras ; auxilia Affonso VI nas
suas emprezas militares, como auxiliara seu pae,
e suppõe-se até que esteve com elle na desastrosa
batalha de Zalaca (1086), conservando-se sempre
fiel á causa que abraçara depois de abandonado o
partido dos musulmanos.
Por sua morte (1091), o condado passa para Martim Monis.
Martim Moniz, casado com a filha de Sizenando,
D. Elvira, o qual em 1093 é transferido para o dis-
tricto de Arouca, para ser dado ao conde D. Ray- d. Raymundo.
mundo de Borgonha o governo directo do distri-
cto de Coimbra, conjunctamente com a auctori-
dade superior em todo o condado da GaUiza, que
até Coimbra se dilatava.
Dá-se n'este anno de 1093 a invasão de Affonso
VI na Extremadura e a tomada das praças de San-
tarém, Lisboa e Cintra; com estes territórios agora Dutricto de san-
adquiridos constitue-se um novo districto, do Mon- "*"*
dego á foz do Tejo, de existência ephemera, com a
sede em Santarém e cujo governo foi confiado ã
Sueiro Mendes, irmão do que, com o cognome de
Lidador, tão notável se havia de tornar pela sua
bravura e esforço.
Todos estes districtos pôz Affonso VI debaixo da Tudo .ob a «.
• .1 • 1 • 1 j j ctoridadedeD.
supermtendencia e auctoridade do seu genro, o Raymundo.
conde D. Raymundo de S. Gil, filho do conde de
Bolonha Guilherme, a quem dera em casamento
sua filha D. Urraca.
«A Galliza, diz Herculano, incluindo debaixo
doesta denominação a extensa provincia portuga-
lense a que naturalmente se devia considerar como
incorporado o território novamente adquirido no
Gharb musulmano, constituia já um vasto estado
remoto do centro da monarchia leoneza. Os condes
que dominavam os districtos em que esse largo tra-
cto de terra se dividia ficavam assas afastados da
acção immediata do rei e eram assas poderosos para
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272
facilmente se possuírem das idéas de independên-
cia e rebelHâo communs n'aquelle tempo, tanto en-
tre os sarracenos, como entre os cliristãos. Affonso
VI poude evitar esse risco convertendo toda a Gal-
Hza, na mais extensa significação d'esta palavra,
em um grande senhorio, cujo governo entregou a
um membro da sua familia, ao qual dera o governo
de Coimbra e Santarém logo depois da conquista
doesta, removendo para o districto de Arouca Mar-
tim Moniz e sujeitando ao novo conde o governador
de Santarém, Sueiro Mendes*.»
Consequências E u^csta situação, como vimos, que se dá a inva-
dainvMod© ^g^ ^^ almorávida Seir na região da antiga Lu-
sitânia, tomando aos christãos Cintra e Lisboa, que
pouco antes haviam conquistado, seguindo-se a
vinda de D. Raymundo para Lisboa, a sua mallo-
grada expedição á Extremadura, sendo derrotado
perto d'aquella cidade, e o desmembramento do seu
vasto condado, que foi dividido em dois, ficando-
Ihe apenas a região para cima do rio Minho, e con-
stituindo- se com o território desde o IVfinho até San-
tarém um condado independente, denominado por
ampliação o condado portucalense; este ficou sob a
ocondcD.iien.auctoridade do (*onde D. Henrique de Borgonha,
'**^"**' que desde fins de 1094, ou princípios de 1095, já
governava no território portuguez, e com certeza
no districto de Braga nos primeiros mezes de 1095,
sob a auctoridade e dependência do conde da Gal-
liza, seu primo, o qual, porém, em 1097 perdera
toda a auctoridade desde o Minho ao Tejo, em-
bora se continuasse a chamar senhor de toda a
Galliza*.
Póde-se dizer que começa propriamente aqui a
historia do condado portuguez.
* A. Herculano. Hist, de Por/ugcd, tomo i, liv. i.
2 A. Herculano. HUt. de Portugal, tomo i, liv. i e nota it.
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273
Liniiles da Oal-
II /.a e d
tauia.
Dos limites dos dois condados, Galliza e Por- 1í"a e'da*LÚ*i
tugaJ, trata Viceto na sua Historia da Galliza:
«A divisória entre os dois condados ou as duas
Gallizas, isto é, a Incense e a bracarense, não obe-
deceu então á idéa de conservar a mesma que os
romanos demarcaram nos dois conventos juridicos,
o lucense e o bracarense. Na epocha dos romanos,
o rio Umia, ou das Caldas *, era o limite divisório,
pela costa do oeste, entre as duas Gallizas, esten-
dendo-se esta linha até ao leste horisontalmente ;
de modo que os povos hoje de Vigo, Tuy, Ponte-
vedra, Rivadavia, AUariz e outros do Lima per-
tenciam, não á Galliza de hoje, á lucense, mas á
Galliza bracarense. A divisória então, no anno de
1097, foi desde a desembocadura do Minho até
onde a linha de aguas d'este rio deixa de figurar
geographicamente, de oeste a leste, para subir ao
norte, mais abaixo de Rivadavia, em frente do cas-
tello portuguez de Melgaço. Desde Melgaço, a fron-
teira do condado portugalense, fazendo um angulo,
descia do noroeste ao sudoeste, na direcção actual,
pela ribeira de Barjas, costeando as serras de Pe-
nagache e Laboreiro, até buscar o pequeno rio de
Castro Lindoso e a sua confluência com o Lima.
D'ahi, voltando n'uma nova linha para o leste, se-
guia a margem do Lima até Lobios, e na mesma
direcção, costeando a serra do Gerez, ia procurar
a nascente do rio Bubal. Descendo em seguida
para o Castello de Monforte do rio Libre, e se-
guindo de oeste para leste até Mauzalvos, formava
^ à CUeneê eonventua Bracarum. Plínio, lib. 4, cap. 20.
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274
entre este ponto e Castrelhor o vértice de um an-
gulo, pois que d'ahi, torneando Bragança, descia
perpendicularmente para o sul até ao Douro.
«Esta era, pois, quasi como hoje, a divisória que
então se estabeleceu entre os dois condados, o da
Galliza e o de Portugal ; de modo que uma grande
porção territorial da Galliza bracarense se veiu re-
unir á Galliza Incense.
AoBui. «Com respeito aos limites ao sul do novo con-
dado portugalense, para alem do Douro (pois
abrangia os districtos de Lamego e Coimbra) estes
limites eram indeterminados pela incessante lucta
contra os mouros; porque forçoso se tornava que
os povos da Peninsula, quer da raça arabe-mauri-
tana, quer da raça romano-germana, se tivessem
habituado a considerar como incerto, e conseguin-
temente sem valor real, o domínio de qualquer ter-
ritório aberto ás invasões do inimigo, no qual não
existisse uma povoação forte, um castello, uma
torre ao menos, aonde, ao passarem essas conti-
nuas hordas de desolação e morte, podessem salvar
as vidas e os seus pobres haveres.
E»tado da a^i- «Da força das cousas, da prolongação d'aquella
*"" '''** cruel lucta, á qual não era então fácil calcular o
termo, nasceu um facto necessário no systema da
povoação: a agricultura tinha de ser exclusiva-
mente annual, transitória e, podemos dizel-o, nó-
mada; e ainda assim, apesar d'isso, os resultados
do trabalho agrícola tinham de ser muitas vezes
nullos. Os documentos d'aquella epocha, princi-
palmente os dos concelhos das fronteiras, nos
dizem que o ir roubar ou destruir as proprieda-
des, e sobretudo as colheitas dos inimigos, era uma
empreza que se renovava quasi annualmente. Re-
sultava d'ahí que os terrenos amparados por al-
gum logar forte, onde o agricultor podesse rapida-
mente pôr-se a salvo, ^e com elle os ^roductos da
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276
industria, se tinham tornado forçosamente culti-
váveis: os trabalhos agrícolas, portanto, cingiam
apenas as povoações fortificadas; o mais era um
deserto.
«Por isso, marcar os limites da fronteira da 6al- DiAcuidadespa.
-■• /• •« i'raa demarca-
liza com os mouros é impossível ; e quando, com çio exacta,
os foraes do século xu xiii, se vão seguindo aquel-
las extensas demarcações dos limites dos concelhos
para esse lado, as quaes se dilatam por muitas lé-
guas em faixas enredadas e tortuosas ; quando ve-
mos frequentes vezes indicar-se ah, como balisas,
apenas a vertente dentada que orla a lomba das
serras, o carvalho que nasceu isolado, a velha ata-
laya mourisca, a pedra que sobresae entre as ou-
tras pela sua côr, a torrente que se despenha pelas
ladeiras, o rio que passa por entre as brenhas, o
vUlar antigo de que já se nao sabe o nome, porque
não ha ali quem o diga, e nunca a casaria, a choça,
a habitação humana, emfim, quasi que sentimos
aquelle zumbido que o excesso do silencio parece
produzir, e opprime-nos o espirito um sentimento
indefinido de solidão.
«Tal era o paiz com respeito ás fronteiras mu-
sulmanas^»
Realmente, se ao norte e oriente se podem deter-
minar approximadamente os limites do condado
portuguez n'essa epocha, para o sul a fronteira
é indicisiva, oscillando no tempo do conde D. Hen
rique entre o Mondego e o Tejo, servindo junto
d'este ultimo rio de forte atalaia o castello de
Santarém, até que este mesmo se perde, sendo
reconquistado, com Lisboa, Cintra e Palmella
por AflFonso Henriques, que definitivamente con-
verte o Tejo em fronteira militar do seu reino.
D.' Benito Viceto. Historia de Qalieia, liv 11, xxii
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270
iie.umo. Temos, portanto, em resumo, que o castro an-
tigo de Cale data, pelo menos, do tempo dos roma-
nos; que o porto, que com o nome Portucale appa-
rece no século v, deu o nome á terra portucalefiue,
desde o tempo dos godos; que este nome abran-
gia territórios para áquem e para além do Douro;
que o districto de Portugal, apparecendo desde os
meiados do século ix, comprebendia^ no período
instável da reconquista, parte de nossas provincias
de Entre Douro e. Minho e de Traz os Montes, na
margem direita do Douro, e na esquerda um tra-
cto de terreno até ao Vouga ; que, com a conquista
de Coimbra, no tempo de Fernando Magno, se
creou novo districto com o nome d'esta cidade, sua
capital, ficando o districto de Portugal a ser con-
stituido pelo território entre o Douro e o Minlio e
parte de Traz os Montes ; que o fidalgo borgonhez
D. Henrique já em fins de 1094, talvez, e com
certeza nos primeiros mezes de 1095, governa esse
território portuguez, ou, pelo menos, o districto de
Braga, embora o conde D. Raymundo governe em
toda a Galliza, que vae dos Pyrineus Gallaicos a
Santarém ; que, finalmente, depois das derrotas de
D. Raymundo, perto de Lisboa, na sua mallo-
grada expedição contra os almorávidas (1095), do
grande principado da Galliza se separa o condado
portugalense, que fica comprehendido entre o Mi-
nho e o Mondego, pelo menos, ou até Santai*em,
cidade que ainda continuou em poder dos christâos
depois da queda de Cintra e Lisboa (1093), por-
quanto em 1095 Afl^onso VI lhe dá foral; e que,
finalmente, em 1096, talvez, mas com certeza em
1097, já nenhuma auctoridade tem o conde D. Ray-
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277
mundo sobre o condado portuguez, que fica defini-
tivamente sob a auctoridade do conde D. Henrique.
Do Minho ao Tejo, portanto, e emquadrado pe-D^minioii^dcD.
los contrafortes transmontanos e pela serra da Es-
trella, se estendia o território que o conde D. Hen-
rique recebera do sogro para governar em seu
nome, em recompensa talvez dos seus serviços,
mas de certo pela justa esperança que o rei
fundava nos seus dotes de guerreiro e no desejo
de honrar na sua pessoa o marido de uma sua fi-
lha, embora bastarda.
Que esse favor provinha, em. grande parte, da suai qualidade.
confiança que inspirava a seu sogro e rei, legitimo
é suppôr, porquanto não era natural que, depois
dos desastres do conde Ray mundo, que mais ac-
centuavam e faziam valer as vantagens e progressos
das armas musulmanas nos territórios por ellas
rehavido, fosse AíFonso VI nomear para o governo
de um districto da fronteira, tão importante como
este era, um homem que lhe não desse garantias,
ou pelo menos esperanças, de que saberia desem-
penhar-se bem da difficil missão que lhe era con-
fiada.
E D. Henrique provou ser digno d^essa con-
fiança, em todo o sentido, não só porque soube
conter em respeito os mussulmanos, mas porque as
tendências de desmembramento não se accentua-
ram na sua administração, embora o movimento
n'es8e sentido não podesse deixar de tomar um
certo incremento e força pela unidade de acção ad*-
ministrativa e politica, dada agora ao nascente or-
ganismo.
Em Herculano, que não podia deixar de nos^ índwidaaiu.
'A r mo portagnes.
guiar n este trabalho, encontramos bem estudadas
e explicadas as causas que, desde o principio, con-
correram para determinar e definir a individuali-
dade da região que constituía o núcleo do condado
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278
• portuguez. Nas tendências regionalistas se apoia-
vam os barões e senhores, para se crearem como que
uma relativa independência no meio do grande or-
ganismo, que naturalmente os pretendia integrar
n'um único corpo social. Fracos eram os meios de
que a acção de um só homem podia então dispor,
para impor a sua vontade n'um território vasto e
perennemente agitado ; a organisação social, mol-
dada ainda nas instituições barbaras, pondo nas
mãos dos senhores a auctoridade completa, e Kgan-
do-os ao soberano apenas pelo dever de lealdade e
fidelidade, dever que tinha, n'esse tempo de paixões
violentas e insofiridas, uma significação duvidosa,
facilitava o desmembramento, que a maior parte
das vezes só era impedida pela força das armas.
A força local. N^cssa individualisação, n'esse movimento de in-
dependência regionalista, os barões e senhores da
região portugueza mantinham uma orientação po-
litica própria, determinada pelos seus interesses
communs e communs sentimentos. Essa mutua in-
telligencia e accordo creou uma força local de que
mais tarde a condessa, já denominada rainha,
D. Theresa, e seu filho D. AíFonso se serviram
para fundar um novo reino independente. Referin-
do-se ás dissençÕes que não só rebentavam entre
um e outro estado ou entre uma e outra provincia,
mas nasciam de districto para districto e de cas-
tello para castello, e quasi de individuo para indi-
viduo, diz Herculano que os barões ou nobres
principaes, conhecidos vulgarmente pelos nomes
de condes e de ricos-homens, inimigos muitas ve-
zes uns dos outros, tomavam cada qual sua ban-
deira e satisfaziam ódios particulares a pretexto
de seguirem esta ou aquella parcialidade. «Os cál-
culos dos ambiciosos, as mudanças de opinião, as
vinganças de familia, as modificações dos partidos,
diz o grande historiador, davam frequentemente
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279
áquellas discórdias um caracter pessoal. A Galliza,
cuja historia relativa áquelle período chegou até
nós mais particularisada que a das restantes pro-
víncias, não nos oíFerece outro quadro. Leão,
ainda nos últimos annos d'esta sanguinolenta lu-
cta apresenta quasi o mesmo espectáculo, a
ponto que na capital do reino vinham ás mãos
os burguezes com os cavalleiros que guarneciam
as fortificações da cidade, aquelles em nome de
AflFonso Raymundes, estes em nome do conde cas-
telhano Pedro de Lara. Portugal, porém, no meio
de taes divisões, conservou sempre um notável as-
pecto de unidade moral. Fosse qual fosse o partido
a que elle se associasse, todos os barões portugue-
ses se mostravam conformes, ao menos passiva-
mente, com o systema da que, debaixo d'es8e as-
pecto, podemos chamar politica externa do paiz*».
O conde D. Henrique não podia, portanto, ser Deimembràçio
estranho a esse «pensamento de desmembraçao e da.
independência», que veiu a realisar-se no tempo
de AflFonso Henriques, «porque era um pensamento
commum ao chefe do estado e aos membros d'elles,
sendo talvez os actos dos príncipes ainda mais o
resultado da influencia do espirito publico do que
a manifestação expontânea da própria ambição».
Mas a verdade é que os actos do illustre borgonhezpapeideD.Hm-
mais nol-o mostram auxiliando seu rei e sogro, '***"*'
sendo em tudo seu leal vassallo, do que mordido
pela ambição da coroa, que só depois da morte
d'aquelle o obseca.
Seria porque não encontrara ainda azado mo-
mento para erguer o pendão da liberdade? Tal-
vez ! e talvez também por hombridade e gratidão.
Bastante foi, porém, que elle procurasse accen-
tuar a individualização orgânica e moral do dis-
* A. Herculano. Hint de Porttigal, tomo i, liv. i.
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280
tricto que lhe fora confiado^ buscando nâo «I
dar-lhe unidade mas augmento, tanto pelo la^o
dos territórios musulmanos como no próprio do-
mínio christão, para o seu nome ser benemérito aos
portuguezes.
D'es8e accrescimo de força viria naturalmente,
como resultado, a independência, como de uma
cellula mãe se formam duas, por 8CÍ8si[
apenas o seu desenvolvimento o permitte.
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CAPITULO III
O Conde D. Henrique— Seu governo
STA ainda por ave-D. HeDriqa«<m
riguar a data pre-
cisa da vinda a
Hespanha do nobre
caudilho a quem o
destino reservara a
gloria de haver lan-
çado 08 primeiros
■ fundamentos da na-
, cionalidade portu-
gueza; nao deixa,
* porém, de ser inte-
ressante saber o que
' sobre esta matéria
informam os docu-
I mentos antigos.
Herculano não lo-
grou apurar este
ponto, que é real-
mente difficil de des-
trinçar; tudo siiu indicações vagas.
Uns dão-n'o vindo a Hespanha por occasião do
casamento de D. AffonsoVi de Leão e Castella
com D. Constança, uma franceza, que de homens,
gostos e hábitos francezes enchera a corte de seu
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282
marido, corte que, entre goda, árabe e franca, ha-
via de apresentar um caracter singular; outros
fazem-n'o attrahido pelas perigrinações famosas a
S. Thiago de Compostella, onde accorria a christan-
dade em romarias piedosas*; outros querem que
tivesse vindo entre os esforçados cavalleiros que
sob o commando do rei leonez procuraram pôr
um dique á primeira invasão dos almorávidas,
e com elle partilharam os desastres de Zalaca
(1086)^; outros ainda, finalmente, pretendem que
elle só viesse mais tarde, em 1089 ^.
AcruzadanaPe- A avcutura, O cspírito rcligioso, a ambição da
gloría e da riqueza, eram as moUas que impelliam
n'esse tempo os cavalleiros christãos, de toda a
parte, aos paizes onde mais frequente e intensa era
a lucta. Nem só para o Oriente, o Ultramar, como
então se dizia, se organisavam as cruzadas; aHes-
panha, sob o dominio dos árabes, era um perma-
nente theatro de guerra, onde duas religiões,
duas raças, duas civilisações se encarniçavam no
mais acerbo combate, saindo d'elle victoriosos ora
o crescente ora a cruz.
De França, onde já chegara a ameaça das ai'-
mas musulmanas, e que, por mais próxima da
Hespanha, maior interesse tomava no duello de
morte travado entre os dois {grandes povos que
1 «Conta a estoria em este logar que a linhagem dos Reys de Por-
tugal vêem por esta guisa. ElRey dom atfonso tomou toUedo aos
mouros e casou huma sua filha, que auia nome dona tareija, com
huum conde que hauia nome dom anrique. Este casamento fez el-
Rey por duas cousas, a primeira por que este conde era muy fidalgo
e de grande sangue e era primo con irmâao do conde dom Regmon
de tollosa, E ueeram com elle de sua terra pello homrar em seu
casamento por fazer romaria a santiago, e a outra por que era o
milhor homem darmas per seu corpo que se podia saber». Chr. breve
e mem» avulsas de S. Cruz de Coimbra», iii Portugaliae Monumen-
ta-Escrijytores. pag. 26.
2 »tn loco, qvi dicitur Sagalias, uhi vnanimitfr convenerunl cum
Rege nostro christiani à partiíus Alpes, multique Francorum in adju*
torium d afflueruvti), Chr. Goth. ou Lusit.
' Mondejar. Orig. y asceiíd. dei princ, D. Ramon,
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283
dominavam áquem dos Pyrineus, enorme era o
contingente de homens de armas que engrossavam
as hostes nazarenas; e agora que uma infanta
franceza se sentava no throno de Pelayo, engran-
decido pela sua indómita raça, augmentára consi-
deravelmente essa contribuição de guerreiros, mais
ou menos embebidos nos ideaes da Cavallaria, que
tinha por sua principal missão a defeza da cruz.
De três doestes cavalleiros, homens de nobilis-cavaiieiro*fran.
sima estirpe, ficou nome na historia da Hespanha,
pelas suas ligações com a familia reinante, e pelos
seus destinos nos altos feitos da Reconquista.
Um d'elles passou despercebido nos aconteci-Raymundodes.
mentos da Peninsula, estando-lhe, porém, reser-
vado papel eminente no auxilio dado a Gregó-
rio Vil para combater os noi-mandos e na pri-
meira cruzada. Foi Ray mundo IV, Ray mundo de
S. Gil, conde de Tolosa e marquez de Provença,
com quem D. AflFonsso VI casou sua filha bastarda
D. Elvira.
Outro chamava-se também Ray mundo, era ORaymumo de
quarto filho de Guilherme, II do nome, conde de ®*''*'*"''*''
Borgonha, de Vienna e Mascou, senhor de Salins,
por alcunha o Teste Hardie *, e parente portanto
da rainha castelhana D. Constança, segunda mu-
* «Goiilaume II dii nom, eurnonamé Teste Hardie, comte de
BourgODgne, de Viennc et de Mascon, sire de Salins. Guiliaume II
de nom succeda a son pere en la compté de Bourgongne . . . Tant y a
qae le comte Gruillaume eut d'elle plusieurs fila et filies, sçauoir
est,
Benaud II . , ,
Eêtienne ...
Hugues de Bourgongne . . .
Raimond de Bourgongne chercha sa fortune en Espagne, ou il
epoUsa Tune des filies de Hildefonse Roy de Gallice et de Afanes
de Guienoe. £t de ce mariagc nasquit entr'autres Pierre Hilde-
phonse Roi de Gallice, surnommé le Petit Roy, comme escrit Or-
dric Moyne de S. Euroul en Normandie, au XIII. Liure de son
Histoire Ecclesiastíque». Hist, des Roy», Ducs et Comts de Bourgon-
gne et d'Arlea, por André du Chesne Tovrangeav, liv. iv, pag. 523.
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284
Iher de Affonso VI *, que era filha de Roberto,
duque de Borgonha e viuva do conde de Chalons,
Hugo II. Seria esta a rasão por que Raymundo
encontraria na corte hespanhola todas as facilida-
des para o seu casamento com D. Urraca, única
filha legitima de Affonso VI e de D. Constança,
casamento de pura conveniência ou interesse de
família, porque treze a quatorze annos apenas te-
ria a noiva, que ficara sob a tutela de um mestre
ou aio, o presby tero Pedro ^. Este é o nobre fran-
cez que encontramos governando a Galliza em se-
guida á conquista de Santarém pelos christãos,
realisada em 1093, coincidindo naturalmente a
^ Affonso Vr, segundo se pode descortinar no dédalo onde se
embrenha quem sobre o assumpto pretenda alguma luz, foi casado
com as seguintes mulheres legitimas, não fallando nas innnmeras
concubinas que se lhe attribuem :
1.* Ignez, filha de Guido Guilherme, duque daÁqaitana e conde
de Poitou; casou em 1074, e durou o consorcio até 1078; nlo teve
successão.
2.* Constança, filha de Koberto, duque de Borgonha ; mãe de
D. Urraca, casada com o conde de Gallisa D. Raymundo; mãe de
Affonso VII. De 1078 a 1093.
3.* Bertha, repudiada por Henrique IV, rei da Germânia, em
1093, casou em 1093 ; era fallecida em 1095, sem successSo.
4.* Maria Isabel, nome com que se baptison Zaida, filha do emir
de Sevilha Bemabide ; mãe do príncipe D. Sancho, a quem perten-
cia o throno, e que morreu na batalha de Uclés.
5.* D. Isabel filha de Luiz rei de França.
6.* Beatriz, francesa como D. Constância e D. Ignez, casou em
1108. Sobreviveu a seu marido.
D. Pelayo bispo de Oviedo não colloca Zaida no rol das mulhe-
res de Affonso VI, mas no das concubinas, dando-lhe como 4.* mu-
lher uma outra Isabel, mãe de D. Sancho, mulher do Conde Rodrigo,
e de Elvira. mHw kabuit Vuxorea ligitimaSf primam Agnetem, stcun-
dam Constantiam Regínamy ex qtia gtnuit Urracam Regínam Conjun-
gem Camitis Baimundt, de qua ipse gennit Saneiam et Adefofi6fim
fíegem : fertiam Bertam, Tuscia ortumdam : quartam ElisaMhf ex
qua genuit Saneiam conjugem Comitis Boderiei, et Geloiramq^iam
dnxit Rogerius Dux Sieiliae : qiiintam Beatrtcem, miae mortiio to re-
pedavit in patriam 9uam. Habiiit etiam dttcLs conciibiruis, tamen nobi-
lissimas^ priorem Xemenam Munionisy ex qua genuit Geloiram, uxo-
rem Comtis Raimundi Tolosani, Pátria ex ea Urracae, Geloirae et
Adefoftsi, posteriorem nomine Zaydam, filiam Abenaheth Regia Eis-
palensis, quae baptisata Elisabeth fiiit vocata, ex hac genuit ò'ancttffn,
qtn obtit in lite de Udes.n Clir, do Ovetensb.
* A Herculano, Hiêt» de PortugcU, liv. i.
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data da investidura no condado com a do casa-
mento (1094).
O terceiro, finalmente, era Henrique, IV do Henrique do
nome, filho do duque de Borgonha Henrique, e ®**'*^°*^-
neto do duque Roberto I. O duque Henrique tivera
de sua mulher Sybilla quatro filhos: Hugo I, que
herdou o ducado ; Eudo, primeiro do nome, que foi
também duque por morte de seu irmão Hugo;
Roberto, bispo de Langres, e Henrique, conde de
Portugal *i
Estes três cavalleiros francezes eram todos,
como a rainha D. Constança, descendentes de Ro-
berto, irmão de Henrique II, rei de França, a quem
elle quiz disputar a coroa, apoiado por sua mae,
sendo vencido, e recebendo então o ducado de Bor-
gonha. (Ramo Capeto directo) *.
Acompanharam este príncipe, e estabeleceram-se companheiros
com elle em terras de Portugal alguns francezes riqne.*
illustres, que deixaram de si entre nós nome hon-
rado, e fundaram casas de prole e nobreza. Entre
^ «Henry FUs de Robert I, Dac de Bourgongne. Tous les Âu-
theara conuienuent qae cet Henry continua la lij?née des Duos de
Bourgogne. £t pense, ponr mon regard, (me ce rut luy qui assista
au sacre de Philippes I . . . Tant y a que Henry trespassa sembla-
blement devant son père et laissa de sa femme, dont ou ne sçHit le
nom.
Huques T, du nom, Duc de Bourgongne, duquel será traité an
Chapitre suiuant.
Èudes aussi I dn nom et Duc de Bourgongue, apres son frère,
qui continua Ia ligneé, comme il será remarque cy aprés.
Robert Euesque de Langres, suiuant les tesmoignages d'Orde-
ric, des Chroniques de TAbbaye de Beze et de plusieurs Chartes ou
il est quali6é frère d'£udes Duc de Bourgongne.
Henry qui espousa Thtreae^ filie naturelle d*AIphonse Roy de
CastiUe et de Leon, et fut institué par luy Comte de Portugal Tan
MXG. comme enseigne un viel fragment d'Histoire pris de TÂb-
baye de Fleurv. De ce mariage vindrent Alphonse Roy de Portu-
gal Pan MCXaXIX et de luy les autres Roys de Portugal subse-
quents. Ce qui a première ment este descouuert et examine par
Theodore Godofroy Aduocat en Parlement».
HisL des Roys, Duch et Comies de Bourgongne d d* Aries par An-
dré da Chesne Tovrangeav, tomo i, liv. iii, pag. 273.
2 Hago Capeto foi o primeiro rei da 3.* dynastia, a dos Capetos ;
saccedeu-Ihe Roberto II, sen filho, e a este o seu filho Henrique I.
18
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Goterre, cavai- ellcs, Goten^e, € cavalleiro boo e velho e de grande
leiro francês. ij» a l. :!•>• il_
entendimento», homem de sao conselno, que era
sempre ouvido pelo conde nas occasiões difficeis,
viuvo, que trouxe comsigo um filho, Payo Goterrez,
também «grande cavalleiro e mancebo louy de
prol», Fez-lhe D. Henrique mercê de terras em
Guimarães e Braga, e deu-lhe o porto de Varzim;
foi o fundador em Portugal da nobilissima casa
dos condes da Cunha * ; o filho edificou os mostei-
ros de S. Simão, de Souto e de Villela (Santo Es-
tevam),
D.AuyâodeEt- Eutrc outros cavalleiros, não de origem fran-
ceza, mas também muito illustres, que vieram com o
conde D. Henrique a Portugal, contam-se D. Anyão
de Estrada, natural das Astúrias, homem de va-
lor, a quem Afibnso Henrique deu o senhorio de
D.PafeiLut. Gocs com vastos terrenos baldios^, e D. Fafes
Lus, filho do conde D. Fafes Saracim de Lanhoso,
morto no encontro de Aguas de Maias, entre as
tropas de D, Garcia de Portugal e D. Sancho de
Castella; rico homem e honrado, exerceu D. Fafes
Lus o cargo de alferes do conde D. Henrique.
GaaanieiitodeD. Affouso VI dc Lcão c Castclla não escolhera
para gem^o da sua filha Theresa o fidalgo borgo-
nhez unicamente pela sua nobre linhagem, mas
^ «Este dom Gaterre veo com o conde Henrique a Portugall
eeendo caualleiro boo e velho e de grande emtenaimento, e fiaua
de]le e chamavao aos seus cornselhos, e deulhe o conde muitas her-
dades e possiasões em terra de Guimarães e de Bragaa e deulhe o
porto de Varazim. E com este dom Goterre uinha huum sen filho
caualleiro mancebo muy de proll e avia nome dom Pay Goterrez,
e el nom avia molher ca lhe morrera em sa t irra». lAv, de Linha-
gem do Conde D. Pedro. Pobtuo. Monumknta. — Escriptores, pag. 356.
2 «Este dom Anyam foy dos d* Estrada da terra das Esturas apar
de Lhanas de Sam Vicente da Barqueira, e veosse a Portugall com
o conde dom Amrrique senhor de Portugal elrey dom Aflfbmsso seu
filho e da rraynha dona Tareya deu a este dom Anyam o senhorio
de Gooes com todos seus termos que era emtom montanha despo-
brada». Liv, de Linhagem do Conde D. Pedro. Pobt. Mon. — Ebcri-
PTOBES, pag. 367.
Henriqae.
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porque realmente, no dizer de chronista de Santa seasmereeimen'
Cruz de Coimbra, era «o melhor homem darmas ^''
per seu corpo que se podia saber •; encontramos
isso confirmado no desenvolvimento da sua histo-
ria, desde que ella passou a ser inscripta nos
annaes da peninsula, por quanto antes d'isso não
se encontra registo dos seus feitos e mereci-
mentos.
Ha apenas um testemunho do tempo, exarado
na chronica 1.* de Sahagun *, que diz que to conde
D. Henrique emquanto elrey I). Affonso VI vivia,
nobremente domou os mouros, guerreando contra
elles, pelo que o dito rei lhe deu, com sua filha
em casamento, Coimbra e at provincia de Portugal,
que são fronteiras de mouros, nas quaes com ba-
talhador exercicio nobremente engrandeceu sua
cavallariai.
Segundo informa Duarte Galvão, elle trazia em
seu escudo de armas campo branco, sem outro
signal, quando veiu a Hespanha, tendo-se assigna-
lado depois pelos seus feitos ^.
Que na corte do rei castelhano, tanto Henrique suaimportâncu
como Raymundo occupavam logar preeminente,
não o dizem apenas os factos trasmittidos pelos
chronistas, dil-o também a tradição, que os en-
globa no quadro brilhante dos acontecimentos da
epocha.
No Poema dei Od^ o mais antigo dos poemasopoemadocid.
heróicos da Peninsula, encontramos Raymundo
e Henrique ao lado de Affonsso VI, na primeira
1 Vem publicado em Appendice I da Hist dd Monaaterio de Sa-
hagun, de Escalona. Esta 1.* chronica foi escripta por um monge que
foi companheiro do Abbade D. Domingos I, e contem a historia do
mosteiro até aos últimos annos da abbadia do dito D. Domingos, e
vae até o cap. 68 ; foi continuada pelo segundo anonymo, compa-
nheiro do Abade D. Nicolau I que vae até 12Õ5.
- Duarte Galvão. Coronica ddrey O, Affonso Anriques, cap. i
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plana, nas cortes reunidas em Toledo, onde se
apresenta Cid, depois da tomada de Valência:
Logaua el plazo, quierem yr a la cort.
£n los primeros va el buen rey don Alfonsso
£1 conde dou Anrrich e el conde don Remond.
AqucBte fue padre dei buen emperador K
Arbitro. naseòr. Ainda mais. Do que n'esta8 cortes^ se passa
o e o. gj^^j.^ o rei e o Cid, e sobre o conflicto entre este
e os condes de Carrion, que ali se derimiu e jul-
gou, foram os dois condes, D. Raymundo e D. Hen-
rique, escolhidos para árbitros ou juizes, e elles
determinaram que os condes de Carrion restituis-
sem ao Cid as duas espadas e os bens que este
lhes dera quando os casara com suas filhas D. El-
vira e D. Sol :
«Alcaides eean desto el conde Anrrich e el conde don Remenda.
Abaixo do rei nenhum havia mais alto e de
maior gerarchia. El-rei nao tinha filhos; a sua fugaz
esperança, um filho único que tivera de Zaida,
filha do rei mouro de Sevilha, Almotadide, fora
morto na batalha de Uclés. Aos maridos das suas
filhas cabiam pois os primeiros logares junto ao seu
throno, que elles ajudavam a consolidar e a enno-
brecer. •
Qualidade, de Eutrc 08 dois cra D. Henrique o mais esforçado,
ou pelo menos o toais feliz nos destinos da guerra;
foi essa, ao que parece, a opinião do próprio rei.
1 AfFonao VII aasignava-se imperador ; já seu pae Afibnso VI
paeeara a aBsignar-ae asaim depois da conquista de Toledo e maior
engrandecimento do aeu reino.
^ Quer a lenda ^ue nestas côrtea trataase D. Affonso VI do ce-
lebre caao dos dois infantes de Carrion os quaes, quando Cid tomoa
Valência, solicitaram por esposas as duas nlhas do guerreiro, D. El-
vira e D. Sol, mas depois de casados se malquistaram com o sogro,
procedendo muito brutal e cobardemente com aa suas filhas, qae o
campeador teve depois de vingar.
D. Henrique.
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5«59
porque a elle confiou, como vimos, o difficil go-
verno do condado portuguez, desmembrando-o
e tornando-o independente do governo da Galliza,
quando foi dos desastres do conde D. Raymundo,
perto de Lisboa, onde viera recuperar o que pelos
almorávidas lhe havia sido arrebatado, das recentes
acquisições feitas pelas armas christâs.
Natural é também que, mesmo que D. Henrique
nao viesse a Portugal propriamente para tomar
parte na campanha, de que Zalaca foi o terrível
episodio final, elle assistisse a essa memorável ba-
talha, visto achar-se.em Hespanha, e que estando
já á frente do condado portugalense, embora en-
corporado no de Galliza, quando foram os victo-
riosos fossados das armas de AflFonso VI para áquem
do Mondego, elle tivesse também o seu pendão
arvorado entre as lanças christâs. Larga folha de
serviços, e demonstrações de verdadeiro valor
teriam feito jus á confiança que n'elle depositava
o pae que lhe confiara uma filha, e o rei que
punha debaixo da sua guarda um districto da fron-
teira que estava sob a constante ameaça de inva-
sões e insultos da parte do inimigo.
Do que consta dos seus actos e caracter vê-se
que ao par de um homem ambicioso c rude, era
um cavalleiro valoroso, mas prudente, dotado
d'aquellas virtudes que a nobre instituição da
Cavallaria preconisava como sendo o verdadeiro
esmalte de um coração e de um caracter: temente
a Deus, esforçando-se por dar maior lustre á sua
religião, arrostando para isso os trabalhos e os
perigos dos que se aventuravam em longinquas
cruzadas; bom administrador, equitativo e justi-
ceiro para os que tinha debaixo da sua jurisdicção,
que era n'esses tempos absoluta; respeitador dos
direitos de cada classe, orgulhando-se das forças
tradicionaes do estado, que estavam principalmente
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na aristocracia, mas afagando os nascentes pode-
res, que se esboçavam já na vontade dos povos or-
ganisados em concelhos; amigo da verdade, bom
pae e bom vassallo. Taes são as qualidades
que o caracterisaram, e deram relevo á sua
physionomia moral por uma forma indelével. E o
que se pôde deduzir, não só da lição dos factos,
mas da tradição ou da lenda què conservou a sua
memoria :
Atradiçio. «E autc quc morresse chamou seu filho don
affonso anrrique e disse lhe: filho toda esta terra
que te eu leixo de estorga ataa alem de coimbrã
non percas ende huum palmo, qua eu a gaanhey.
E filho, toma do meu coraçam alguum tanto que
sejas esforçado e soy companheiro a filhos d'algo.
E da lhes todos seus direitos. E aos concelhos
faze lhes honra. E aguisa como ajam direitos asi
os grandes como os pequenos. E por rogo nem
por cobyça nom Iheixes a fazer justiça, cá se huum
dia leixares de fazer justiça huum palmo, logo em
houtro dia se arredara de ti huuma braça de teu
coraçom. E porem meu filho tem sempre justiça
em teu coraçom, E aueras deus e as jentes. E nom
consentas em nenhuuma guissa que teus homeens
sejam soberuos nem atreuudos em mal, nem façam
pessar a nenhuum, nem digam torto, ca tu perde-
rias per taas coussas ho teu boo preço se o nom
uedasses*».
Estas palavras que a lenda põe na bocca de
D. Henrique, á hora da morte, como recommen-
dações ao filho, que sendo aliás de dois a três an-
nos de idade * as não podia recolher no espirito,
representam a herança dos altos sentimentos de
1 Chron. Breves e Mem. ÂviiU, de S. Cruz de Coimbra. Portc-
OALIAB MONUMBNTA EsGRlPTORBS, pag. 29.
2. . . mortuo paire, . . cum adhuc ipse puer eseet duorum vel trúm
annorum. Chron. Goth. ou Lusit.
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brio, de dignidade, de justiça, de bondade legada
aos reis de Portugal por aquelle que lançara a
primeira pedra nos fundamentos da monarchia
portugueza, herança, portanto, que podemos cha-
mar nacional. Por isso, perto de quatro séculos de- Quatro lecnioB
pois, em 1434, eram essas palavras recordadas '''*''"'
por um príncipe da Igreja, o bispo do Porto, a
um rei, ponderado e justiceiro, porém pouco ven-
turoso, el-rei D. Duarte, recommendando-lhe que
seguisse aquelles nobres concelhos, os quaes, dando-
os a seu filho e primeiro rei de Portugal, ipso facto
o conde os legava também aos seus descendentes *.
1 «£ nembrevos Sfir que o Conde Dom ÀDnrique vosso oitavo
Âvo Jazendo doente em Ástorga sua cid.* de dor da qual morreo
chamou seu filho Dom AíFonso anrriques vosso 7.<* Avo o prim** Rey
de Portugal e antre as cousas que lhe especialm.*" encommendou
foj que fosse companheiro aos Fidalgos, elhes desse todos seus Di-
reitos, e aos Concelhos que fizesse sempre m.** honra de guisa que
ouvessem todos seus Dir.^** assi grandes, como pequenos, e que por
rogo, nem por cobiça nunca sua justiça perecesse, qua se hum dia
deixando de a faser, a afastasse de si hum palmo, em outro dia se
afastaria de si e de seu coração huma braçada, e que porem tivesse
sempre justiça e amasse em seu coração, que o amaria Deos, e as
gentes e que nom consentisse em nenhua guisa que seus homes
fossem sobervos nem atrevidos em mal, que se o nom vedasse, per-
deria o seu bom preço.
•E porem Sfir, por a S." justiça ser tSo alta virtude, e tanto aos
Reys necessareo, e ser tao aficadam**^ encomendada por vosso 8.<^
Avo a seu filho, e p. conseguit. aquelles que delle descenderom
como vos descendeis vos aves de soceder por benção e herança assi
como soccedos parte daquella terra, e senhorio que seus foro, e
amala, e abraçala comvosco assi estreitam.*** que nunca se parta de
vosso coração, e que vos por mingoa delia nom percaes o vosso bom
preço, de guisa que todo o vosso povo possa dizer de vos o que o
£sp.° S.^*^ disse a David : Porque tu amaste a Justiça e aborreceste
maldade, por esso te ungio Deos em Rey antre todos os de tua Li-
nhagem, e justo he ElRey N. Snr, pois amou justiça e igoaldança
esgardarom os seus olhos, e onde o assi fizerdes, o que esperamos
que fareis, reinareis sobro as cousas, que a vossa alma desfja se-
gundo que he escritto 3.® Reg. c. II. E em esto Snr, honrrareis as
Igrejas Ps." e ministros delias, e lhes gardareis suas liberdades e
franquezas, e os Fidalgos acharão em vos mercês, gasalhado, e
acrecentam*" e os povos favores, defensem e criamento».
Livro da Cartuxa d'Evoba, pag. 86. Conselho do Bispo do Porto a
Et Rei D, Duarte, carta escripta em Santarém aos 5 dias de Dezem-
bro era de 1433. Bibliot N.*' Ms. Z//tf/45.
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Apreciação er-
rada.
Ju»tlficaçSo
Os escriptores hespanhoes, que encaram a indi-
vidualidade de D. Henrique collocando-se no ponto
de vista da unidade da Hespanha, accusam-no de
ambicioso, intrigante, desleal, tendo por única mira
o seu engrandecimento, e chega-se ao ponto de
dizer que «morreu de uma morte tão obscura que
nenhuma historia ou documento logrou esclarecer* » .
E uma grave injustiça. D. Henrique foi leal
com seu sogro, a quem sempre auxiliou e seguiu,
em cuja corte o encontramos frequentes vezes, e
em cujo nome dá foraes ás terras; e se no meio
das turbulências e ambições insoffridas da epocha
procurou engradecer o condado de que era chefe,
engrandecendo-se elle próprio, nunca o fez pelos
processos que a tantos príncipes e a tantos chefes
tingiu de sangue, por vezes parricida e fratri-
cida, as mãos sofiregas, mais aptas para se servirem
do punhal homicida do que da espada libertadora;
serviu-se apenas dos seus talentos, da sua habili-
dade, do seu valor; e o nome illustre.que legou,
longe de ser obscuro, representa uma justa com-
pensação do esforço, coragem e persistência com
que elle emprehendeu uma obra de emancipação,
que dura ha oito séculos.
Era ambicioso, de certo, como todo o senhor de
terras do seu tempo, em que o poder real não es-
tava ainda bastante consolidado para subjugar as
veleidades de mando e de accrescimo de domínio
que animava todo o homem de categoria, investido
n'uma parcella que fosse de poder.
Era um guerreiro, mas era tambemi um politico,
e buscou tirar partido das circumstancias que o
favoreceram, pelos processos que então se usavam ;
mas soube também enfrear a sua ambição em-
quanto viveu o sogro, a quem não consta que ti-
1 Lafuente y Valera. Historia de Espana, Tom. i, liv. u, cap. vi.
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293
vesse creado diflSculdades, antes serviu lealmente;
é nos seus últimos quatro ou seis annos, quando
a disputa era contra uma sua cunhada, D. Úiraca,
feita rainha, ou contra o mando d'esta, 4). Affonso
de Aragão, que elle entende poder legitimamente
adquirir, nao só maior quinhão para o seu domí-
nio, — como já o desejara quando simples vassallo,
durante a vida do sogro, n'aquella instabilidade
de divisões territoriaes que cai-acterisava esse pe-
ríodo de guerra nacional, — mas o império todo.
Affonso VI nao deixara filho varão que lhe suc-
cedesse no throno; a successão n'uma filha não
tinha a mesma força, nem representava o mesmo
direito.
Filha por filha, também sua mulher, a infanta
D. Thereza, o era; e exeniplos de filhos bastardos
terem consquitado a primasia pela força ou pelo
ardil, abundavam na historia de todos os tempos.
Sabe-se.que D. Henrique quando viu seu sogro
próximo da morte, o fora procurar, e não saíra
satisfeito da conferencia; evidentemente, tentara
influir no animo do rei para que legitimamente, e por
vontade do soberano e sua iniciativa, fosse feita
justiça a D. Thereza na partilha do reino, ou na-
quella porção de território com que entendia dever
ser accrescentado o condado de Portugal.
Dava assim ama prova da submissão, que até
final guardara, e do desejo que o animava de evitar
futuras complicações.
Era este o insubmisso?
Com a morte do sogro, á qual não quiz assistir,
apesar de estarem ali presentes quasi todos os no-
bres e condes do reino *, as circumstancias muda-
vam. O direito de D. Urraca ao throno não podia
ter para elle a mesma força.
1 Anonymos de Sahagun, cap. ziv.
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294
Põe então abertamente a questão, sem contem-
plações, nem rodeios.
Oi doii borgo. O conde L). Henrique, de Portugal, que t vénia
° ''^' de sangre real de Francia», era primo co-irmão
do conde L). Raymundo, da Galliza «que vénia
de la ^eracion real de los franceses *» ; Sybilla,
mãe de D. Henrique, era filha do conde de Bor-
gonha Reinaldo, e irmã do pae de D. Raymundo,
o conde de Borgonha Guilherme I.
Sua» mulheres. D. Thcrcza, mulhcr de D. Henrique, era irmã
de D. Urraca, mulher de D. Raymundo, ambas
filhas de D. Affonso VI: esta havida da sua ter-
ceira mulher D. Constança, aquella provinda de
uma sua manceba, «pêro bien noble», no dizer do
chronista do Sahagun, D. Ximena NuÔez ou Mu-
fioz (Muniones)^, asturiana; porque o conquistador
de Toledo foi tão rico de mulheres como de faça-
nhas.
A m&e de D. 1). Ximcua Nuflcz OU Muniones (porque seu pae
ora é chamado Nuilo ora Munio nos documentos
antigos), é tida por alguns escriptores como mu-
lher de D. Affonso VI ^ desde 1078 até 1080, e
querem alguns que por Gregório VII tivesse sido
separada d'elle, por ser parenta próxima de sua pri-
meira mulher; Lafuente não a dá nem como con-
^ Anon, de Sahagun, cap. xvii e xxi.
2 No tempo de Ramiro II, encontramos no Chronican de Sani'
piro nomeado Nunius Muniones, Nuno Munoz, conde de CastellH,
mas de origem fi^allega, como tendo povoado Roa com os seus ho-
mens ; foi depois um dos que se rebellaram contra D. Ramiio, por
quererem ser não condes leudatarios, mas condes soberanos. Chr.
de Sampiro, 23.
3 Sustentou entre nós esta opinião, contraria a antigos e nume-
rosos testemunhos, D. Francisco de S. Luiz.
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295
cubina, nem como mulher legitima, mas sim como
mulher illegitima, por aquelle facto * ; mas a argu-
mentação de Herculano, que se baseia em docu-
mentos irrefragaveis, é dicisiva, e mostra que a
bulia de Gregório VII se referia a D. Constança ^.
De 1074 a 1078 tivera D. Affonso VI por es-
posa D. Ignez, filha de Guido Guilherme, duque
de Aquitania e conde de Poitou, por morte ou
separação d'esta, e reinando já no seu coração
a. asturiana Ximena, recebeu por mulher a infanta
franceza D. Constança, que era, como vimos, filha
do duque de Borgonha Roberto è viuva de Hugo II,
conde de Chalons.
Esta predilecção de Affonso VI pelas princezasprinoo«»i do
de França tem em grande parte explicação nas ""'**
alliahças necessárias com as monarchias christãs
de além Pyrineus, e na grande influencia que a
França ia já exercendo na Hespanha, principal-
mente pelo elemento sacerdotal. Sua primeira mu-
lher, D. Ignez, era franceza; e, alem de D. Cons-
tança, francezas eram também as duas ultimas
suas consortes, D. Bertha ^ e D. Beatriz, que lhe
sobreviveu.
Estas circumstancias explicam a situação espe-
cial desde logo creada pelos fidalgos francezes, que
foram a pedra angular de duas fortes dynastias
da Peninsula.
Desde principies do anno de 1095, pro vavelmen- d. Henrique em
te, e com certeza no anno de 1097, está o conde ^'*'*'*^**'
D. Henrique governando, com uma relativa in-
^ Lafuente 7. Velera. Historia de Espaha, tomo i, liy. 11, cap. iii
2 A. Herculano. Hist. de Port, tomo i, nota iii.
3 Qae era francesa dil-o uma carta de yenda do Mosteiro de
loyba, bispado de Mondoâedo, citada por Prudencio Sandoval, cai'ta
na qaal Uero Rodrigues e outros vendem herdades em Trasancos :
« Era 1134. 15 k. Novemb, regnante Hex Adefansus in Toleto cum con-
iuge 8ua Bertha, de genere IVancorum, in orbe Gcdletiae regnante
comité Raymundo cum coniuge sua filia Adefansi Bex».
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dependência e soberania, como cônsul ou conde,
o território que desde o Minho até ao Tejo havia
sido erigido era districto autónomo, e indepen-
dente do condado da Galliza*; esse território é
o que propriamente paEsou, como vimos, a cha-
mar-se o Condado de Portugal. Esse território, ce-
dido a D. Thereza e a seu marido o conde D. Hen-
rique, como bens hereditários (jure hereditário),
isto é, para ser transmittido aos descendentes, não
constituiam, porém, o dote da infanta, porque era
isso contrario á lei visigoda; o dote levado pela
mulher ao marido, e não dado pelo noivo á noiva,
era disposição legal romana^.
De posse do condado de Portugal, D. Henrique
1 É interessante o capitulo que, no tomo 4.<* das Desêcrtafif*
Chronologicaê e Criticcu, consagra JoSo Pedro Ribeiro ao estndo
das origens de condado portuguez, á vista dos documentos do sé-
culo zi e XII. D'elle se chega ás mesmas conclusões que deixámos ex-
pressas no capitulo anterior, de como pela pidavra Portugal se co-
meçou por entender, não um território separado da Gallisa, mas am
districto da cidade do Porto, em contraposição de Coimbra, tendo
diversos governadores. Affonso YI deu ao seu genro D. Ray-
mnndo o governo da Gallisa unido ao do Porto e Coimbra, por isso
elle se denominava ora — totu8 GàUciat princeps, ora dominantt
Colimbria et Portugal ; quando se conquistou Santarém aos Moaroa
elle paspou a appelidar-se «conde de Gaiisa e Santarém» ; as suas
memorias como governador d'e8tas provindas duram até agosto de
1095 (era 1133).
£m dezembro d'esse anno apparece o conde D. Henriaue gover-
nando Coimbra, com o titulo de Conde PortugaJlenaU, dominando
«a flumine Mineo usqtte in Taguin», restringi ndo-se portanto o go-
verno de Ray mundo a Gallisa, até ao rio Minho.
£ inegável que já no tempo de D. Fernando o Magno o Porto
tinha um governador particular *, e que conquistada Coimbra, esta
passou a ter um governador próprio, o cdvazil ou cônsul Sisenando,
(até 1092), sendo os limites d esse districto : ao sul os dominios
mouriscos, ao norte o Douro, ao poente o oceano, ao nascente La-
mego. No governo de Coimbra, como vimos, scgue-se a Sisenando o
seu genro Martim Muniz (1092) atè ir governar Arouca; a estese-
gue-se o conde D. Raymundo (1094), e a este o conde O. Henrigne
(1095). No governo do Porto encontramos em tempos antigos £r-
menegildo, conde de Tuv e de Portugal, depois Nuno Mendes no
tempo de D. Garcia, Momo Herroiges em 1074, e o conde D. Henri-
que, sob a superintendência do conde D. Raymundo, até assumir
em 1095 o governo independente.
2 Alexandre Herculano. Historia de Portugal, tomo i, nota vi.
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teria, como era natural, começado por cuidar daorganuaç&o do
sua organisação, tratando de o prover dos meios ~°**^'*-
necessários para se defender das agressões dos
almorá vidas, senhores do território ao sul do Tejo,
e de se preparar para a empresa de dilatar os
seus dominios, quer para o lado dos mouros, quer
mesmo para o das outras fronteiras, se as guerras
civis, tão frequentes, lhe permitissem tirar partido
das circumstancias. Era o regimen em que viviam
os diversos senhores, não só em relação aos domi-
nios uns dos outros, mas do próprio soberano, de
quem, nas divisões territoríaes procuravam obter,
de bom grado ou por imposição, um quinhão maior.
Seir, o logar-tenente de luçufe, depois de se as-iavaiaodeseir.
senhoriar de Badajoz e outras praças da antiga
Lusitânia, como vimos, fora, com uma forte arma-
da, sujeitar ao dominio dos almoravidas as ilhas
Baleares ; essa diversão das aimas do novo e ter-
rível invasor da Peninsula, permitira a Affonso VI
a empresa de preparar o alargamento dos seus
dominios, entrando pelos territórios muslimicos.
Assim, em 1097 tomou Consuerga, que os sarra-
cenos, também pelo seu lado, em correrias pelas
terras dos christãos, rehouveram em seguida; e,
nesse mesmo anno, segundo todas as probabilida-
des*, encarregou o conde D. Henrique de repulsar
a invasão que contra Castella vinha commandando
Ali Benalaje, a quem se reunira, com o seu corpo,
Bem Sacun, tendo o conde portuguez de transpor d. Henrique do
-ma- 1 rn li. • • • comb&te de M&«
os Montes de 1 oledo e travar com o mmugo san- ugon.
grenta peleja em Malagon, perto de Ciudad Real ;
mas vendo-se por fim forçado a retirar. O com-
mando d'esta expedição, confiado a D. Henrique,
viria confirmar a confiança que n'este seu genro
depositava, como guerreiro, o rei de Leão.
1 Alexandre Herculano. Historia de Portugal, tomo i; lív. i.
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298
Romaria « Com- De fins dô 1097 a principios de 1098 acha-se
posteiia . j^ Henrique em Compostella, em romaria ao ce-
lebre templo consagrado a S. Thiago, o santo pro-
tector da guerra contra os mouros, em toda a
Hespanha, emquanto S. Jorge não tomou para si
a protecção especial dos portuguezes. Nem por
isso deixou S. Thiago de ser favorável ás nossas
ai-mas, como a fé dos nossos guerreiros teve por
cousa irrefragavel, por exemplo, na segunda to-
mada de Gôa, ao vel-o batalhar ao seu lado, cingido
na sua branca túnica; os próprios mouros o haviam
visto; e Aflfonso de Albuquerque, não só em sua
vida, mas em seu testamento, provou, em valiosas
offerendas, o seu reconhecimento por tão grande
favor *.
Ao raiar o século xii, em 1100, e ainda em 1101,
encontramos D. Henrique na corte do seu sobe-
rano e sogro.
Vê-se que pelo lado do sul a moirama, entre-
tida com as tentativas do lado de Castella, e soli-
citada também pelas turbulências que se davam
em Africa, deixava em paz o districto portuguez.
4P *
viagem de D. Estas trcffuas, que também pelo seu lado D.
Henrique á Pa- TT • ° ^ ^ ,. . ^ ^
leitina. llenrique se nao sentn-ia com lorças para romper,
preferindo a consolidação interna ás aventuras de
conquista, cujos resultados não lhe eram garantidos
pelos recursos de que dispunha, animaram-no a
ausentar-se, temporariamente, dos seus doniinios.
Nos primeiros mezes do anno de 1103 partiu para
a Palestina, para onde um verdadeiro êxodo de
christSos se estabelecera, sobre tudo depois da to-
1 Testamento de Âffonso de Albuquerque, Memoria da Academia
Heal das Seiencias. 1899.
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299
mada de Jerusalém. Da derrota de Zalaca proviera
também a irritação dos christãos da Europa con-
tra os musulmanos.
O século XI representa um periodo orgânico em a idade media.
que as diversas classes da sociedade accentuam
os seus caracteres e desenvolvem aa suas forças
próprias. As classes trabalhadoras começavam a
adquirir os seus foros e liberdades ; a nobreza do
sangue e a nobreza do dinheiro constituíam a forte
e bem ordenada milicia dos homens de armas e
cavalleiros, ávidos de façanhas e proesas; o po-
der sacerdotal, concentrado nas mãos do papa,
representava a força suprema, dirigente, decisiva,
que se interpunha a todos os poderes e os dominava.
Gregório VII é a expressão máxima d'essa força;
Urbano II acha-se em condições favoráveis para a
pôr em acção. D'ahi a primeira cruzada (1095-
1097).
Em todo o Oriente, onde a soberania fora parti- o« ^«bes.
Ihada durante muito tempo entre os nazarenos e
os musulmanos, estes tinham absorvido todos os
estados christãos ; em toda a Ásia ficava apenas, á
sombra da cruz, o estado da Arménia, sobre os
alcantis do Taurus ; em tudo o mais campeava o
crescente.
Em Jerusalém, onde os imperadores romanos o^^^^^^^io de
haviam erguido um tumulo a Christo, ao favor dos
agarenos e á sua tolerância deviam os christãos
o poder ainda continuar as suas perigrinações.
Para a christandade era aquelle o logar por ex-
cellencia das romarias piedosas, manancial de in-
dulgências, fonte de agua lustral para os remor-
sos da alma, objecto de culto e devoção, acrisolada
agora pelo infortúnio de ver um tão sagrado obje-
cto nas mãos dos infiéis.
Já Grefforio VII pensava em se pôr á frente o °»ovimeoto das
. ^ . ^ , ^ cruzadas.
de um exercito onde reunisse todos os que se sen-
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300
tiam attrahidas por esse grande foco de luz que,
melhor que nenhum, illuminava as consciências.
Em 1064 o arcebispo de Maguncia conduzira ali ,
7:000 homens; desde os fiords da Scandinavia, i
até os extremos archipelagos da Itália, companhas,
mais ou menos numerosas, iam em peregrinação
através da Ásia Menor, até ao Santo Sepulchro, i
buscar reliquias, trazer palmas de Jerichó, edifi- 1
car-se na contemplação dos logares sagrados, ba-
nhar-se no Jordão. '
Era necessário canaHsar, ordenar, dirigir essas
correntes humanas, até então dispersas ou desor-
denadas, que muitas vezes se entrechocavam e se
combatiam, é convertel-as em levadas que des-
truissem as muralhas erguidas entre os christâos
e o tumulo do fundador da sua fé,
sea carácter. . Foi cssc O papcl dc Urbauo II, quc realisou o
pensamento de Gregório VII, não commandando
uma expedição de armas, porém, melhor ainda, pre-
gando a guerra, acendendo no coração dos crentes
a febre da conquista do Santo Sepulchro. A essas
correntes puras da fé, viriam juntar-se as enxur-
radas de homens levados pela curiosidade, pela
aventura, pela ambição, pela necessidade de um
empregO; de um meio de vida, e até com o fim de
expurgar peccados e lavar a consciência das macu- '
las da culpa. I
Ao crente, puramente comtemplativo e mystico,
seguiu-se o cavalleiro peregrino, o aventureiro da
fé e da conquista, que teve em mira estabelecer-se
na Terra Santa, adquirir ali poderio e riqueza, e
foi d' esse a obra da reivindicação e da reconquista.
Ainda assim a Europa na idade media não estava
em condições de poder attender ás necessidades
de uma forte eniigração que creasse raizes firmes
no Oriente; não podia isso ser resultado de sim-
ples conquista, mas de colonisação.
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301
Quando D. Henrique de Portugal foi á Pales- a primeir* cru-
tina já se tinha realisado a primeira grande cruzada,
que, em Jerusalém, escolheu para chefe Grodofredo
de Bulhão; promovôra-a Urbano II, incitára-a o
concilio de Clermont; com Adhenar de Monteuil,
bispo de Puy, milhares de indivíduos tinham ob-
tido a sagraçao, e o direito de usarem a cruz sobre
o hombro esquerdo; cruzados se chamaram por
isso. Por toda a parte os monges e os padres, des-
tacando-se entre elles Pedro o Ermita, pregavam
as vantagens e a necessidade da guerra santa; vinda
do norte da França, das margens do Rheno na AUe-
manha, da Provença, da Itália, de toda a parte se
reuniu em Constantinopla uma multidão enorme.
Não se lhe podia dar a nome de exercito, comquanto
se apresentassem armados, em bandos, sob o pen-
dão dos seus chefes e senhores. Transpozeram o
Bosphoro, atravessaram a Ásia Menor; no cami-
nho muitos dos mais poderosos iam dando pasto
á ambição do mando e da riqueza, tomando posse
de cidades e territórios; internas e profundas dis-
senções lavravam entre os cruzados; mas estava
por attingir o objectivo principal; Jerusalém, for-
temente assediada e combatida, rendeu-se no se-
gundo dia. Foi a 15 de julho de 1099.
Conquistar tinha sido relativamente fácil ; man-
ter os dominios christãos, com as pequenas forças
de confiança de que se dispunha era o mais dií&cil;
o grosso das gentes havia regi'essado á Europa,
grande parte ficara nos caminhos^ por esses cli-
mas inhospitos, ou nos campos de batalha.
Mas a predica e a propaganda a favor das ex-
pedições ao Oriente continuavam. Paschoal II pro-
seguia com enthusiasmo a obra de Urbano 11.
A fama das aventuras passadas e dos lucros e cretce o movi.
vantagens por muitos colhidas eram também inci-
tamentos fortes. Recrudesceu o movimento em
19
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302
1100. Organisou-se uma nova cruzada. Em 1101
entrava no Oriente essa poderosa expedição, com-
posta de 50:000 italianos, sob as ordens do arce-
bispo de Milão, de 50:000 homens sob o commando
do duque de Aquitania, e entre os capitães de
troços mais ou menos numerosos, o arcebispo
de Saltzburgo, os bispos de Laon, de Soissons,
de Paris, o margrave da Áustria, o duque de
Baviera, os condes de Bolonha, de Blois, de
Nevers.
Em três grandes exércitos se dividiu esta turba-
multa. O primeiro, composto de aquitanos e alie-
mães, seguiu pela Ásia Menor, e foi disseminado
pelo caminho, batido e destruido perto de Heraclêa,
por um exercito musulmano que fora ao seu en-
contro. O segundo, commandado pelo conde de Ne-
vers, que tendo partido depois do exercito dos lom-
bardos e francezes, esperava fazer com elle juncção,
indo pela Syria, foi assolado e disperso pelas arre-
metidas dos musulmanos e pelas inclemências do
clima. O terceiro, finalmente, o que safra primeiro,
de 260 mil homens, na maior parte francezes do
centro da França e lombardos, ia sob o commando
de Raymundo de S. Gil, IV conde de Tolosa.
muito nosso conhecido, pois é o mesmo que casou
com D. Elvira, innã da condessa de Portugal, e
filha de ÁíFonso VI e de D. Ximena Mufloz, a as-
turiana. Este exercito não teve melhor sorte, por-
que tendo embarcado em Constantinopla, em ju-
nho de 1101, entrou na Ásia Menor, com o fim
de ir contra Bagdad, depois de ter liberto Boa-
monde, príncipe normando, o qual, senhor da An-
tiochia, se aventurara a ir em auxilio de um prin-
cipe arménio na Ásia Menor, e fora ali batido e
feito prisioneiro pelos turcos. Depois de tomar An-
cyra, e tendo seguido pelo curso do Halys, sem
subsistências, em paiz devastado pelos musulma-
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303
nos, foi Raymundo de Tolosa atacado por estes e
desfeito o seu exercito.
Rajmundo de S. Gil tornára-se notável, auxi-iuymundodos.
liando Gregório VII a combater os normandos. Já
na primeira cruzada entregara os seus dominios
a seu filho Bei*trando e partira para a conquista
do Santo Sepulchro. Fora mesmo elle, depois de
Boamonde, e até á tomada de Antiochia, quem ti-
vera o commando superior das forças, tendo este
sido confiado só depois da rendição da cidade a
Godofredo de Bulhão, que aliás tem passado erra-
damente por ser considerado o chefe permanente
e o impulsor d'essa cruzada.
A escolha de Godofredo foi por indicação de Ray-
mundo, que recusou a coroa de rei de Jerusalém.
N'esta segunda cruzada, em que Ray mundo se
fizera acompanhar de sua mulher D. Elvira, foi
infeliz. Desfeito o seu exercito, refugiou-se em An-
tiochia, onde governava Tancredo, sobrinho de
Boamonde, e ali se lhe foram juntar os restos
dispersos da grande expedição que assim se desfi-
zera, com um sopro da sorte adversa, por falta
de cohesão e de plano".
Tancredo aprisionou Raymundo, naturalmente
receiando que o viesse incommodar mais tarde e per-
turbal-o nas suas ambições; e só lhe deu liberdade
sob palavra de que se não assenhoraria de nenhuma
praça entre Antiochia e S. João de Acre. Assim
o compriu o conde de Tolosa; com o auxilio de uma
esquadra genoveza, atacou e tomou Tortosa, onde
fundou um principado, e em seguida estabeleceu-se
defronte de Tripoli, levantando uma fortaleza.
D'ahi em diante continuou nas suas conquistas, e
morreu em 1105, succedendo-lhe seu fiilho Ber-
trand, que, tomando Tripoli, se fez proclamar seu
conde, sob a obediência do imperador de Constan-
tinopla.
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304
Naicimento do Em 1108 cstava Raymundo de S, Gil na Syria,
Affonio ''**' ^.Qj^tjnuando as suas conquistas, e n'esse anuo ti-
nha ali sua mulher um filho que ficou chaman-
do-se Afibnso Jordão *, Aífonso como seu avô ma-
terno, Aflbnso VI de Hespanha, e Jordão por ter
sido banhado nas aguas do rio santo, como era
da devoção dos cruzados.
Teria D. Henri- Tcría a viagcm do conde 1). Henrique de Por-
TcuIiíadoV''" tugal ao Oriente alguma relação com estes factos
em que figura o seu primo e cunhado, o conde de
Tolosa Baymundo de S. Gil?
Iria levar-lhe o seu auxilio, ou pessoal ou de
tropas, nas diflficuldades e emprehendimentos em
que andava, agora que os desastres da cruzada
haviam trazido o desanimo á Europa, vendo-se esta
na necessidade de pensar a serio na desforra?
interrogaçõ€«. Iria apcuas uo dcscjo de visitar os Logares San-
tos, em romaria, ou no propósito de tirar da sua
consciência o peso de algum escrúpulo de alma,
segundo era uso devoto n'aquelle tempo, aprovei-
tando o ensejo para ver seu primo, sua cunhada
e o sobrinho recemnascido, visto a época do nasci-
mento de Affonso Jordão coincidir com a da ida
de D. Henrique á Syria (1103)?
Foi para tomar parte nas operações militares,
mesmo independentemente da situação em que se
encontrava Kaymundo de S. Gil, a exemplo de
tantos senhores, e a despeito da prohibição imposta
aos de Hespanha pelo papa Paschoal II, a fim de
evitar que faltassem braços e cabos de guerra
para a não menos importante empresa de expulsar
do solo europeu o crescente agareno?
Outras tantas perguntas são estas a que os do-
cumentos não dão resposta.
1 Fr. Prudencio de Sandoval Hist. de los Reys de CastiUa y Leon,
tomo I, pag. 84.
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305
A prohibiçao de Roma nao era um impedimento
tao absoluto que o próprio arcebispo de Toledo,
Bernardo, não tivesse ido a Jerusalém na prima-
vera de 1104, e que nflo tivesse também, seguido
para a Syria o bispo de Coimbra, Maurício, que
suppõe-se até ter acompanhado o conde D. Henri-
que. O elemento sacerdotal era o primeiro a ani-
mar, a dar o exemplo, n'essa verdadeira febre que
se apossara dos christaos da Europa, tendo por
objectivo a manutenção dos reinos nazarenos no
Oriente, e o alargamento d'elles. Era um movi-
mento religioso e guerreiro, mas que se tornara
também aventureiro e mercantil.
Conjectura-se que o conde D. Henrique tivesse
seguido na armada genoveza que em 1104 foi
auxiliar Balduino na conquista de Ptolomaida
(S. João de Acre),
O conde D. Henrique regressou a Portugal em Re^resno de d.
1105; pouco tempo se demorou, portanto, no "*"'**'"*•
Oriente.
Estes acontecimentos, comquanto pouco es- innuencu indu
clarecidos pelos documentos, mostram que não MaMÍmp™'.
deixou de ter influencia, embora indirecta, no *"^*''
nascente estado portuguez esse poderoso elemento
que tanta acção teve nos destinos do mundo, as
cruzadas.
O chrístianismo, os árabes, as cruzadas foram
as três fortes causas das transformações sociaes
n'aquella8 épocas, os três grandes agentes da civili-
sação, percursores do renascimento. Das duas pri-
meiras cruzadas recebemos directo influxo ; á ter-
ceira não concorremos com expedições e reforços
militares, porque missão .parecida nos prendia no
campo de acção limitado entre os Piryneus e os
mares, mas tivemos ali representação na pessoa
do chefe do nascente estado, e porventura nos in-
dividuo» que ali o acompanharam'
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306
Cruzada permanente era a que se batalhava oa
Península, onde a cada instante se media a espada
christã com a cimitarra mourisca.
Em 1106 está D. Henrique na corte do sogro;
e é, ora aqui, ora em Coimbra, ora em Guimarães,
que o encontrámos. Na administração do condado,
no povoamento dos seus logares, em algaradas
nos territórios musulmanos do sul estaria então
empregando a sua actividade.
Morte d«Affon. Em junho dc 1109 morreu Affonso VI; os sar-
racenos julgaram o momento asado para levan-
tar a grimpa. Os territórios para o sul de Santarém,
limite do dominio christao, que tinham como nú-
cleos principaes Cintra e Lisboa, hastearam o pen-
KebMiísci mu dão dc gucrra, ou da rebellião, se é que, segundo
conjectura Herculano, esses povos, que se tmham
libertado do poder dos almorávidas, depois das con-
quistas de Seir em 1095, se encontravam colloca-
dos sob a protecção do rei de Leão, como seus
D. Henrique re- tributarios. O condc D. Hcnriquc invadia-os em
junho de 1109 e Cintra caia em seu poder*. — O
conde estava em 29 de julho, em Vizeu, já de re-
gresso da expedição.
inva.ao de Ali. No fim d'esse anno de 1109 dava-se uma nova
invasão almorávida no Garbe. Ali, successor de
Yuçufe nos dominios ao norte de Africa ou em
Hespanha, viera á Península logo no anno se-
guinte a tomar conta do poder (1107) e dispozera
* Era 1147. Mense Júlio Uerum capta fuit Sintria à comité
D. Henrico género D. Alfonsi Regii marito filiae suae Rtginat
D, Tarasiae. Audientes enim Sarraceni mortcm Begis D. Alfmfi
coeperunt rebdlare, Caa. Gota. oc Lubit.
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^V!!, ^W^' ^^v.\P'lliIí?l--
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307
tudo para a forte expedição que no anno irame-
diáto dirigiu pessoalmente (1108), É o anno ter-
rível da derrota de Uclés, ganha por Temin, ir-
mão de Ali, e onde perdeu a vida o único filho
varão de Affonso VI, havido de sua mulher a
moura Zaída. Realisa-se a referida expedição almo-
rávida nos fms de 1109, e tem por fim rehaver os
territórios das nossas actuaes provincias do Alem-
tejo e Extremadura, que dez annos antes haviam
sido trazidas ao seu jugo e que teriam retomado,
por meio da revolução, a sua antiga bandeira.
No anno de 1110 dao-se conquistas dos almo-
rá vidas no centro da Hespanha, tomando Ali pes-
soalmente Talavera, Madrid, Guadalajara; o emir
de Saragoça vae levantar o cerco que os leonezes
haviam posto a Tudela ; e o terrível Seir invade
o antigo emirado de Badajoz, que já soffrera em seir toma cin.
1095 o jugo dos almorávidas, e toma aos sarrace- *'** »n**«í«»-
nos, alem d aquella praça, as de Évora, Lisboa,
e aos christãos a de Cintra, pois que o conde D.
Henrique a sugeitara em 1 109. Na primavera de
1111 Seir põe cerco a Santarém, que de maio a
junho d'esse anno cae em seu poder. É o anno em
que nasce Affonso Henriques, a quem caberia a
gloria de trazer definitivamente aquella praça ao
dominio dos portuguezes *.
Durante os dois annos que vão desde a tomada
de Cintra até á perda, nao só d'esta praça, mas
de Santarém, que fora durante cinco annos pelo
menos o posto de observação e a base de defeza na
fronteira do sul, graves preocupações agitam o es-
pirito do conde D. Henrique e o obrigam a jor-
nadas e peregrinações longas, sendo essa decerto
* O Còronkon Luníano ou Goth. dá o infante nascido na era de
1115 (anno 1103); mas n'outroB pontos contradiz-se, opor duas ve-
zes dá informações que fíxam em 1111 a data doesse nascimento.
Yid. nota zi da Hitit de Port. de Herculano, tomo i.
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308
uma das causas de nao terem encontrado os almo-
rávidas, da nossa parte, a resistência que era de
esperar e que estávamos em condições de lhes
oppor. Mas é que a morte de AflFonso VI sem suc-
cessão varonil trazia a Hespanha christã em grave
crise e sobresalto, e, por esse motivo, animados
e cheios de ousio os musulmanos.
Ainwçce. de D. Nas complicaçôcs da corte tinha o conde D. Hen-
Henrique. • 1*1^ 'iii
rique um papel importante ; espicaçado pelo aculeo
da ambição, as circumstancias pareciam favore-
cel-o.
Tendo sido leal ao seu sogro e rei, não havendo
levado a sua ambição alem do desejo de engran-
decer os domínios do seu condado, mas sob a au-
ctoridade do seu soberano, D. Henrique concebera
o sonho de, por morte d'este, poder ser soberano
Pacto com D. cUc proprío n'uma porção maior ou menor da
Rftymundo. jj^Qn^j-ci^ij^ leoucza. Para isso se tinha encontrado
a sua ambição com a do seu primo e cunhado D.
Raymundo da GalHza, e ambos haviam firmado
um pacto pnra a partilha d'esse reino por morte
do legitimo rei*.
É necessário estar dentro do espirito da época,
é necessário considerar toda a ordem de rasões
ou de sophismas que teriam actuado nos espíritos
d'estes dois homens, ambos casados com filhas do
rei, e portanto no direito de partilharem por qual-
quer forma da herança do sogro, para se compre-
hender bem a situação e a aquilatar.
Qual a ma data? Um pouto importautc a averiguar, e que os do-
cumentos não esclai-ecem, é qual a data d'esse pa-
cto. Nasceria das intenções de D. AffonsoVI de dar
a successão do throno a seu filho D. Sancho, havido
da moura Zaida? Tendo- se patenteado em 1106
essas intenções, dataria d'essa occasião o accordo
* Vide no fira do volume, doe. u.
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309
dos dois condes*? N'es8e caso, D. Urraca, como
filha mais velha e legitima, teria encontrado no
marido o paladino dos seus direitos ; D. Thereza,
embora bastarda, desejaria partilha na situação,
porquanto D. Henrique, seu marido, poderia servir
de forte appoio á causa da sua irmã, e ter uma
justa recompensa d' isso em territórios. D'ahi o
pacto, onde é evidente a superioridade da situação
do conde D. Raymundo, reconhecida por D. Hen-
rique.
Este pacto nao teria sido tão secreto que não
constasse d'elle alguma cousa, ou d'elle teriam
resultado quaesquer demonstrações que determi-
nassem reservas e malquerenças. Mas se de D. Ray-
mundo se pôde dizer que esteve um tempo mal-
quistado com o sogro, o mesmo se não pôde affirmar
de D. Henrique, que até final o seguiu e acompa-
nhou lealmente.
Em 1107 morria o conde D. Raymundo, e comMortedeD.R^y-
elle o pacto dos dois primos e cunhados.
Segundo o anonymo de Sahagun, pouco antes Entrevista de d.
de D. AflFonso VI fallecer, foi ter com elle a Toledo o tíero?* *^'*™
D. Henrique e d'ali saiu irado «no sé porque safta
ó discórdia». Tudo leva a suppor que se tratou
ali da successão do reino ; D. Henrique advogaria
a partilha com I), Thereza, sua mulher; D. Af-
fonso 'VI defenderia a entrega integral do reino
a D. Urraca ; d*ahi o desaccordo, que faria com que
o genro abandonasse agastado a casa do sogro, tão
pouco condescendente e generoso, e que não esti-
vesse presente «quando el-rey queria morir e dis-
ponia de la succession dei reino»*.
A babdha de Uclés foi em 1108. D. Affonso VI, Mort« de aítoii.
a quem este golpe terrível vinha acabar de cortar
* Sobre a provável data do pacto vide as conjecturas de Jouo
Pedro Ribeiro. Díps. Chron, tomo iii, pag. 45, nota 6.
2 Anotiymos tlt Sahagun, cap. xxi.
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310
os fios já ténues da existência, deixava o mundo em
junho de 1109 ; n'esse intervallo teria D. Henrique
empregado esforços para convencer o sogro; essa
entrevista «dias antes que el-rey ficiesse fiu de vi-
vi r» representaria o derradeiro esforço.
Já os almorávidas assolavam o Garbe; já as suas
cimitarras reteniam próximo da fronteira christã.
Era certo que entrando por Badajoz o almorávida
trataria de rehaver o perdido, castigando aquel-
les que se haviam libertado do dominio não ha
muitos annos estabelecido; estavam portanto amea-
çadas até as próprias praças, como Cinti-a, que
D. Henrique acabava de incorporar nos seus domi-
níos, e 08 que constituiam dominio antigo; Santa-
rém estava em imminente perigo.
Ida de D. Henri- A uada d'isto pôde attender ou remediar D. Hen-
.iue a rança, j.-jq^^^ obsccado pcla paixão de ver assim por ter-
ra os seus planos e esperanças. Em agosto de
1110, approximadamente, teria o conde portuguez
deixado o seu dominio, assim ameaçado, para ir a
França e a Aragão ; n'um e n'outro ponto buscava
apoio e elementos para uma desforra, e para a
realisação do seu ideal, que se nao limitava já a
pouco: — pretendia uma parte ou quiçá todo o
reino de Leão e Castella! Pelo menos é essa a opi-
nião do auctor da 1.* chronica anonyma de Saha-
gun que diz: — «por lo qual, por zelo dei Reyno
movido, traspasó los Montes Perineos por haber
ayuda de los franceses, con los quales guarnido e
esforzado, por fuerza tuviese el R^yno de Es-
pafia*».
D. Urraca não estava em condições de ter niao
no barco da governação do estado, batido de en-
* Por ser muito interessante, e apenas conhecida do vulgo pel»"^
citações de Herculano, damos no fira do volume o cap. xxi d'e8tH
chronica anonyma. Vide doe. iii.
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311
centrados ventos e ameaçado por surdas e fortes
correntes. Viuva, ficara com um filho, Aflfonso
Raymundes, que seria o successor do avô no throno,
mas que apenas tinha três annos quando aquelle
morreu.
Previdente, D. Afibnso VI anticipara-se aos
acontecimentos, e determinara que no caso de sua
filha contrahir segundas núpcias, como seria por-
ventura necessário, até mesmo para o bom governo
do estado, pelo menos ficasse ao neto o governo
independente da Galliza. N'este estado, governado
por seu pae, ficou Affonso Raymundes, sob a tutela
e guarda do conde 1). Pedro Froylaz de Trava.
Pensou-se no casamento da rainha viuva; não casamento de
lhe faltariam concorrentes, entre elles o conde ^•^''™''*-
Gomes Gonçalves, prócere illustre, que pertendera
a mao de D. Urraca quando' ainda solteira, e com
quem se lhe attribuiram depois relações de natu-
reza mais intima; mas rasões politicas de maior
alcance, ou porventura mesmo o animo versátil
da rainha, deram preferencia a Affonso I, de Ara-
gão.
Nem em todo o reino teve igual acolhimento
este consorcio, no qual alguns fundavam a espe-
rança da unificação e prestigio do dominio christão,
mas que foi verdadeiramente uma nova origem de
dissidias e de rebelliões.
A Galliza, sempre ciosa do seu individualismo, Dfuençse. em
tinha o seu rei, mas queria para elle a herança total oSíT/"*
de seu pae, quando chegasse á maioridade ; o pre-
dominio do aragonez não lhe podia ser agradável.
Alem de que, D. Affonso 1 de Aragão era pa-
rente próximo de D. Urraca; o clero, que n'esse
tempo morria por desfazer casamentos, sobretudo
quando lobrigava, para justificar o divorcio, uma
rasão de ordem politica, poz-se em campo; o papa
decretou a sepai'ação, o arcebispo de Toledo pro-
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312
niulgou íi bulia ; mas D. Affonso nao esteve pelos
ajustes; era o período em que entre o poder tem-
poral dos reis e o poder espiritual dos papas se
travavam terríveis luctas.
O clero foi directamente atacado. Foram ex-
pulsos das suas sés o arcebispo de Toledo e os bis-
pos de Burgos e de LeSo, e postos a ferros os de
Orense, Osma e Palencia.
Ao mesmo tempo, e para pôr peias ás manifes-
tações hostis dos maioraes de Galliza e de Castella,
foram estes substituídos por aragonezes, nos pos-
tos de confiança. Mas na Galliza os partidários do
príncipe Affonso Raymundes, capitaneados pelo
conde de Trava, D. Pedro Froylaz, não só via
ameaçados os direitos do seu real pupillo, mas as
regalias e foros d aquella provinda, erigida em
reino independente. Este poz-se em armas ; o ara-
gonez invadiu-o com um forte exercito em 1110;
tomou Monteroso, onde um nobre cavalleiro, Pe-
dro, do conhecimento da rainha, se lançou aos pés
d'esta supplicando que o não matasse ; ali mesmo,
ha presença de sua mulher, que intercedia pelo
desgraçado, e surdo ás supplicas d'ella, D. AíFonso
Diicordu entre o varou coui uui vcuabulo. A este acto de crueza
Sindo"*"* ***" inútil se attribue o recrudescimento das antipa-
thias e repulsões creadas pelo rei, e a resolução
da rainha de se divorciar; tinha a seu favor a opi-
nião de todas as classes. Assim o seu tempera-
mento de mulher volúvel nao tergiversasse!
D. Urraca foi para Leão, que se rebellou também
contra D. Affonso; este, fortemente escarmentado
em Galliza, foi sobre Astorga, onde um exercito
leonez lhe veiu ao encontro, o intimou a não inten-
tar contra nenhum castello do reino, e o forçou
a recolher se a Aragão.
D. Henrique bn«. D'e8ta sítuaçSo quiz tirar partido o conde I).
tusinuç?*?.****' Henrique, que acima de tudo era politico. Podia
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'óVò
bem ser o tertius gaudet na contenda entre Affonso
de Aragão e sua mulher, entrando com o poder
das suas armas na resolução do problema que se
apresentava complicado; porque, se Galliza e Leão
eram contrários ao domínio aragonez, cada um
d'e88es reinos pugnava por obter a hegemonia ou o
predomínio. Galliza tinha o deposito sagrado do
neto e successor de Affonso VI, a quem entendia
pertencer, não só o governo d este reino, mas o de
todo o dominio de seu avô; Leão era pela rainha,,
cujas tendências e interesses não se conforma-
vam absolutamente com os do filho. Havia alem
d'ís80 a contar com o genío versátil d'esta senhora.
Era um conjuncto de circumstancías, que, conforme
se determinassem, podiam auxiliar as pre tenções
de D. Henrique, que era homem para não hesitar
diante de nenhum obstáculo.
Durante os primeiros mezes de 1110, conser-
vando-se estranho ao que se passava para alem
das suas fronteiras ao norte e ao oriente, levou a
sua attenção para o sul, onde se dava a invasão
de Seir ; receando um ataque a Santarém enviou-
llie reforço de tropas sob o commando de Soario
Fromariges ; mal acauteladas porém n'um estacio-
naniento, em caminho de Santarém, foram atacadas
subitamente em Vatalandi, sendo morto Soeiro
Fromariges e outro capitão illustre, Mído Ores-
cones ^
Seir deveria ter tomado n^essa occasião Batalíoz
• Factum est magnum infortuninm supra Chrlstianos, qui ibant ad
Sancíareni, in loco qui dicitur Vatalandi, Lhim enim vellent ihi
Christiani figere tenioria, et requtescere, cum súbito ex improviso mvl-
tUudo Sarreeenorum et Moabitorum et Arabum audito numero eorum
venerunt super ens repente, et imparatos eos invenientes, interfecerunt
«J5 tis plurimosj ibi que morluus fuit Suarius Fromarigis pafer Donni
Nuno Stuiriz, qui erat Dux super eos, et Mido Cresconis pater Do-
mini Joannis Midiz. Chron. Lusit.
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ciar tropa*.
314
(Badajoz) e leborah (Évora) e estaria em caminho
de Cintra e Lisboa.
vaeaFranvaaii. Pois foi n'esta altiira, lá por .agosto d'esse anuo,
que 1). Henrique passou a França a aliciar tropas,
ou a buscar talvez o auxilio dos seus parentes, na
realisação do que reputava um direito. D. Thereza
ficou governando o condado, e viu-se que nem o
seu braço nem a sua iniciativa eram bastante for-
tes para constituir barreira contra invasões dos
. almorávidas ; foi assim que Cintra, por D. Hen-
rique tomada aos musulmanos, como vimos, em
junho do anno anterior, caiu em poder de Seir;
por essa mesma occasião ter-se-ia rendido Lisboa,
D. Henrique demora-se em França mais do que
deseja, porque lhe succede ser ali preso por qual-
quer motivo, naturalmente de desconfiança dos
seus propósitos, conseguindo porém evadir-se. Só
isso pôde justificar o ter-se conservado ausente do
condado em occasião tão critica,
voiu por Ara- No regrcsso passa por Aragão e- ali lavra um
"* pacto com Affonso I; dois propósitos de vingança
se reúnem, resolvendo emprehender o dominio e a
partilha do reino de Leão e Castella, e muito pro-
vavelmente o de Galliza, que nem D. Affonso,
d' ali escorraçado recentemente, nem D. Henrique,
que sempre se oppozera á successão, tinham moti-
vos para poupar. Entre si dividiriam os dois o que
fosse conquistado á rainha: «el en uno con el con
todas sus fuerzas contra la Reyna, guerrearia con
esta condicion, que todo aquello que dei fieyno de
la Reyna ganasse, fuese partido por la metad en-
tre ambos*».
Factos grave. Até cutão factos gravcs se passam no con-
01 uffa . ^^^^ . — 2í\ein da tomada de Cintra pelos almorá-
^ Ânonymos de Sahagun, cap. xzi.
gão; pacto com ^
D. Afibnao.
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315
vidas, dá-se em Coimbra uma sublevação de cara- suwevaçâo
, !• j j • • Coimbra.
cter melmdroso e de consequências serias.
«Sesnando, diz Herculano, attrahindo para
Coimbra a população christã não organisara o mu-
nicipio, contentando-se os novos habitadores com
lhes ser assegurada por um titulo geral a posse here-
ditária das propriedades rústicas ou urbanas que se
lhes distribuiam. Depois, por quasi um meio século,
Coimbra fora a capital de um districto, e ainda no
tempo de Henrique se podia considerar como a
principal cidade do condado ou província de Portu-
gal ; mas uma tradição, que os documentos contem-
porâneos parece confirmarem, nos assegura que o
genro de Affonso VI estabelecera em Guimarães a
sua corte, se tal pôde- se dizer de uma residência
incerta e quasi annualmente interrompida. Coim-
bra, posto que, como vimos, fosse frequentada do
conde, o qual por vezes fez ahi larga assistência,
tinha, como todos os logares principaes, governa-
dores próprios sugeitos a elle, segundo o systema
hierarchico da monarchia leoneza. Estes governa-
dores com os seus oflSciaes provavelmente vexa-
vam os habitantes, que não posôuiam ainda os largos
privilégios municipaes attribuidos já n'essa época
a povoações menos importantes. Segundo parece
poder concluir-se das allusões obscuras do diploma
a que nos referimos, os moradores de Coimbra,
opprimidosporuns certos Munio Barroso e Ebraldo
ou Ebrardo, talvez exactores de fazenda, amotina-
ram-se, expulsando-os da cidade. Devia succeder
isto durante a ausência do conde. Voltando, elle
se dirigiu a Coimbra; mas os habitantes resisti-
ram-lhe e Henrique teve de pactuar com elles.
O resultado d'estes successos foi obter a povoa-
ção uma carta de foral com amplos privilégios,
e especificando-se as contribuições e declarando- se
expressamente que nem Munio Barroso, nem
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316
Ebraldo tornariam a ser admittidos dentro dos
seus muros, e que o Conde, satisfeito de o haverem
emíim recebido, poria em esquecimento tudo o que
contra elle tinham até áquelle dia praticado».
Estes factos são interessantes para o estudo da
evolução orgânica da sociedade n'aquella época,
em que já o elemento popular começava a impor-se
pela sua força própria, e para a apreciação das re-
lações entre os diversos elementos d'essa sociedade.
Estas perturbações internas teriam impedido
a acção do conde D. Henrique contra os almorá-
vidas, que estavam ás portas de Santarém. A no-
ticia da perda de Cintra e da approximação dos
almorávidas das verdadeiras fronteiras christãs,
teriam apressado a sua retirada de Aragão, cou-
cluido o pacto com o rei.
Quando Santarém lhe foi tomada em maio ou
junho de 1111, já elle estava em Coimbra, onde
na mesma data assignava o foral d'essa cidade
pelo qual se firmava o accordo entre essa cidade
e o conde.
scir regressa a O quc valcu foi quc Scir teve de sustar, talvez
Heviíha. p^^ motivo de doença, o curso das suas conquistas,
regressando a Sevilha, onde pouco tempo depois
fallecia.
O não ter que pensar nos almorávidas, que se
limitavam a occupar e fortificar as praças conquis-
tadas, sem renovar as correrias, deu azo a D. Hen-
rique poder concentrar as suas attençÕes no pro-
blema da partilha da regia herança do sogro, que
o preoccupou sempre mais do que os árabes, jul-
gando, talvez, que a todo o tempo os podia escor-
raçar, desde o momento que tivesse na mão o
poder de que necessitava. Convinha-lhe não per-
der o ensejo que se lhe oflerecia de tirar partido
das circumstancias para levar a bom recado a sua
idéa.
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317
Mas porque é que, tendo-se realisado em prin-Porqne « nio
cipios de 1111o pacto de alliança entre D. Affonso ctodeD.Hen-
de Aragão e D. Henrique, a nao pozeram os dois aSS»?"
em execução?
Depois da sua campanha na GalKza e Leão no
anno de 1110 fora D. AflFonso, como vimos, obri-
gado a retirar-se para os seus dominios, diante da
attitude xlos dois reinos.
Sua mulher, D. Urraca, separara-se d'elle na
Gralliza, depois das cruezas de Monteroso, e reco-
Ihera-se a Leão ; mas naturalmente tomaram a reu-
nir-se, porquanto os clironistas faliam em serias
discórdias entre os dois, e em sevicias por parte
de D. Affonso, que até prendeu em Castellar a mu-
lher.
Ambos pensaram em divorcio; não faltavam
para isso fundamentos, como vimos. Vieram as
ponderações; o divorcio não evitava a lucta; con-
tando D. Affonso com as forças aragonezas e tendo
ainda as praças de Castella pelo seu lado, a guerra
poderia ter consequências. D'ahi conselhos, instan-
cias no sentido da approximação, e quem sabe se
o natural pendor de D. Urraca para essas aven-
turas agitadas do amor e do casamento? A philo-
sophia profunda d'aquelle dito da mulher de Es-
ganerello, quando lhe acudiram por o marido a
desancar :ye veux qu^U me hatte! é de todos os
tempos.
Mas se D. Urraca era um temperamento com-
plexo, era também um caracter complicado.
Durante as desavenças com o marido, o seu
coração regressara aos enlevos da maternidade;
era toda ella desvelos pelos direitos e regalias do
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filho, que visto ella ter passado a segundas nú-
pcias, devia herdar o throno do avô. Na prisão
de Castellar todo o seu coração ardia em chammas
de dedicação por Affonso Raymuiides, e emissários
por ella expressamente enviados á Galliza trata-
ram de levantar os maioraes d'este reino contra
as pretenções do aragonez e a favor do neto de
AíFonso VI, cuja vontade e testamento queria que
D. Urraca e o fosscm rcalisados ua integra. Ingénuos, os barões
"uam^er*^**"" da Galliza, encaminhavam-se para Leão a fim de
pôr em pratica esse justo ideal da mãe e da rainha,
quando lhes chegou a noticia de que os dois es-
posos estavam outra vez muito a bem um com o
outro! Tinham-se congraçadol
Fauia o plano Tudo SC baralhava, todos os cálculos falhavam
aSe. ' *° ' com a alteração dos dados do problema. Os barões
gallegos, perdendo o auxilio da rainha, viam perdida
a causa do seu rei ; os barões leonezes, um pouco
por dedicação á rainha e muito pelo receio de com-
plicações, sugeitavam-se ; o conde de Portugal,
roto o seu pacto com D. Aflbnso de Aragão, nâo
sabia onde buscar um novo ponto de apoio.
Os acontecimentos lh'o diriam. Era necessário
contar sempre com o espirito leviano de D. Uiraca.
Alem de que, havia muito a esperar do desconten-
tamento que lavrava na Galliza; não era mesmo
esta a peior situação para elle, porque o accordo
da Galliza com a rainha representava uma aggre-
gação de forças n'um corpo, com cuja desmembra-
ção é que D. Henrique tinha a lucrar, ligando-se
a qualquer das parcialidades em litigio; do des-
accordo poderia elle agora tirar algum partido.
D. Urraca, nos períodos das suas dissenções
matrimoniaes, ao mesmo passo que acalentava e
animava nas suas idéas os barões da Galliza, afa-
gava em Leão os sonhos dourados de Gomes Gon-
çalves que, desde menina e solteira, a requestara,
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que teria porventura merecido as suas particulares
graças, e que agora, no meio das tempestades ma-
trímoniaes, esperava lucrar com o divorcio. Ter-
Ihe-ia até sorrido o sceptro de Leão e Castella,
quem sabe? Este, portanto, e com elle os seus par-
tidários, não se rejubilaram também com a re-
concialiação de D. Urraca com o marido. Eram
estes para D. Henrique outros tantos elementos a
explorar.
Se o conde portuguez, vendo por terra o seu Liga-so d. Hen-
primeiro plano, volvera os olhos para a Galliza, os h^ãê ^^T*"^
barões gallegos, pelo seu lado, pensaram também *^''
n'elle, desde logo. Ao conselho que lhe pediam,
respondeu D. Henrique incitando-os á rebellião e
á lucta; era natural que lhes offerecesse também
auxilio para occasião opportuna. Até então iria
preparando os seus elementos a fim de entrar van-
tajosamente na contenda. Conjectura Herculano
que D. Henrique estaria em Aragão quando o fo-
ram procurar os da Galliza, pelo facto d'estes te-
rem voltado por Burgos, mas é natural que não se
demorasse ali ^ O conde Froylaz de Trav^, se bem
o aconselharam melhor o fez. Regressando de Ara-
gão por Burgos veiu pelo caminho co*ncitando gen-
tes, praticando actos de hostilidade contra os par-
tidários do aragonez, e prendendo em Castro
Xeriz alguns d'elles. Agitava-se de novo o facho
da discórdia civil; partidários do rei levantavam
a luva que lhes era lançada, e no caminho das
represálias prendiam a condessa de Trava em
Santa Maria de Castrello, e o bispo de Com-
postella, Gelmires, finalmente decidido a tomar o
partido do principe.
Esperava o conde D. Henrique em Portugal o
resultado d'estas primeiras hostilidades, resolvido
^ Hiõt de Portugal, liv. i.
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Novo rompimen- decerto a lutcrvir no momento opportuno; mas
to de D. Urraca j • j. . i -^ «*• j
com o marido. cLe um lustante para o outro a situação mudava
com um novo rompimento, entre D. Urraca e o
marido. Que fazer n'estas circumstancias ? Voltar
á sua antiga alliança com o aragonez.
A situação d'este não era favorável nem em
Leão e Castella, nem na Galliza, onde a rainha
congregava em volta de si todos os elementos con-
trários ás pertenções do rei de Aragão, que apenas
conservava á sua voz alguns castellos, tendo por
alcaides patrícios seus.
Leonezes e castelhanos, e á frente d'elles Pedro
Ansures, o aio da rainha, e os poderosos condes
Pedro de Lara e Gomes Gonsalves, exultavam
de ver sosinha em acção a sua rainha, a quem
sempre haviam sido fieis; Galliza, quasi que una-
nimemente, via na pessoa da soberana os direitos
do seu filho, e á acção dos velhos e fieis partidá-
rios do príncipe Affonso Raymundes viera juutar-
se a do bispo de Compostella, que se constituirá
em centro de propaganda e de adhesão ao legitimo
herdeiro, não só do throno da Galliza, mas de
toda a herança de Affonso VI.
Nova liffaçio de Affouso dc Aragão, novamente ligado com o
?om T^^^- conde de Portugal, não desistiu das suas pretençoes,
e passou a um estado de lucta permanente com
sua mulher, lucta em que os portuguezes tomaram
parte também, hostilisando D. Urraca e os seus
partidários.
Em novembro de 1111 trava-se a primeira ba-
talha entre D. Affonso de Aragão e o conde D.
Bauiha de cam. Henrique de um lado, que tentam invadir os ter-
podeEipina. j.j^Qj.jQg jnimigos, c OS coudcs Gomes Gonsalves
e Pedro de Lara do outro, os quaes, vindo ao en-
contro dos invasores, se entrechocaram em Campo
de Espina, perto de Sej^ulveda. O conde Pedro de
Lara fraquejava diante da perspectiva da batalha
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321
e voltava costas ao inimigo ; só em campo, o conde
Gomes Gonçalves, com o seu pequeno troço de
gente, succumbia á superioridade numérica do
adversário, perdendo a vida; as hostes alliadas de
aragonezes e portuguezes transpunham o Douro e
entravam nos dominios de Leào, tendo occupado
Sepúlveda*.
N'esta altura dá-se no animo do conde !)• Hen-
rique um d'esses movimentos de pusillanimidade
e de contradicção, próprios dos que c«aminham ao
sabor das impressões de momento e do impulso
da ambiçiio, sem saberem bem o terreno que pi-
sam e sem terem a certeza do fim a que aspiram.
A sua alliança com D. Affonso de Aragão não po-
dia ser sincera, nem grande a sua confiança n'ella,
depois do que se passara quando a Aragão fora
propor e ali obtivera o primeiro accordo, que im-
mediatamente se destruiu.
Depois da victoria das armas alliadas em Campo d. Henriqne .«.
de Espina alguma cousa se deveria ter passado Affonw. *
entre D. Affonso e D. Henrique, para este romper
o pacto, e se apartar do aragonez. Foi só o resul-
tado dos tramas e meneios occultos dos castelha-
nos para os dividir, como pretende Herculano?
Mas é singular que esses meneios vingassem pre-
cisamente quando, derrotados os castelhanos, a in-
vasão do aragonez se apresentava com todos os
visos de um exceli ente êxito, do qual caberia par-
tilha a D. Henrique, se este o auxiliasse efficaz-
mente. Mais provável é que, depois de Campo de
Espina, e tratando-se do quinhão que ao conde
^ «E asi allcgada gran Imeste, ibanse para Scpalvcrla ; lo qual
como oyese el noble Conde Gomez, que en aquella sazon moraba
eri Burgos con Ia Reyna, con poços en el campo de Espana fué con-
tra ellos. E por quanto sin consejo con poços acometió, grande e
difícil cosa, fuertemente peleando murió en Ia batalla, qual vitoria
acabada vinieronse para Sepúlveda». Anonymoa de Sahagun,
eap. zzi.
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telhanoi.
822
portuguez havia de pertencer nas novas conqnis-
tas, se declarasse a divergência, e D. Henrique,
que não estava para trabalhar por conta alheia e
sem proveito próprio, ouvidos em conselho os seus,
fingisse regressar a Portugal, sem alarde de rompi-
mento, «casi como quien va a ver sus herdades»,
na phrase do Anonymo de Sahagun, sendo, po-
rém, o seu propósito ligar-se com D. Urraca.
Meneios dMo&a- Isto uão qucr dizcr que não coincidissem com
este facto os meneios dos castelhanos para fazer
ver a D. Henrique o seu erro em auxiliar as am-
bições do aragonez sobre o antigo reino de Af-
fonso VI, e, naturalmente também as promessas
de futuras compensações territoriaes, se, entregue
ás suas próprias forças, D. AfiFonso abandonasse
a sua empresa diante da acção combinada de gal-
legos e castelhanos, e até de portuguezes, se D.
Henrique se resolvesse, como parecia mais natural,
a auxilial-os. É o que está incurso nas seguintes pa-
lavras de Herculano, que bebeu as suas informa-
ções nas chronicas e documentos antigos, escre-
vendo, pela primeira vez em toda a Hespanha,
a historia completa d'este período: — «Mandaram
(os fidalgos castelhanos) afeiar a Henrique o ha-
ver-se unido ao inimigo commum da monarchia
contra os outros barões de Leão e Castella. Pe-
diam-lhe que se apartasse do aragonez e que viesse
ajuntar as suas forças ás d'elles, promettendo
fazerem-no seu chefe n'estas guerras e induzirem
a rainha a repartir fraternalmente com elle uma
parte dos estados de Affonso VI. Alguns fidalgos,
aos quaes o prendiam laços de antiga amizade,
invocavam, até, recordações do passado para mais
o moverem*».
Na nossa opinião, resta accrescentar a isto a des-
* A. Herculano. Historia de Porf, tomo i, liv. i.
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I
828
illusSo que teria tido D. Henrique com respeito
ás suas esperanças na partilha da alliança com D.
Affonso de Aragão, não menos ambicioso, e muito
mais insoffrido do que elle, ou talvez a promessa
formal da rainha de lhe ceder, desde logo, alem
do commando superior das hostes reunidas ^ uma
parte da monarchia, como parece ter sido assente
entre os dois no pacto que em seguida firmaram.
Pretestando voltar para os seus dominios, D. D.Henriqaejan.
Henrique foi ter com D. Urraca ao castello de í?íí2ca!'*" ^'
Monzon, ou Orsillon*, em Castella a Velha; era o
systema: abandonada uma alliança, buscal-a na
parte adversa. NSo era uma questão de principies,
mas de interesses. É o que se passa hoje ainda na
politica dos partidos e das nações, ás vezes com
a mesma falta de pudor.
No emtanto, Affonso de Aragão avançava pelas
terras de Leão a dentro, e constando-lhe que Bel-
mires, o bispo de Compostella, reunidas as suas
tropas ás dos maioraes da Galliza, se encaminha-
va para Leão, a fim de ali proclamar rei o neto
de Affonso VI, Affonso Raymundes, foi-lhe ao
encontro, surprehendendo-os, atacando-os, e der-B4uih» devia-
rotando-os em Viadangos (Fonte de Angos) entre "***'
Astorga e Leão (novembro ou dezembro de 1111).
Affonso Raymundes foi posto a coberto de qualquer
attentado, sendo levado para o castello de Orsillon,
onde estava sua mãe ; o bispo de Compostella, com
os restos da sua hoste, retirava para Astorga, e d'ahi,
volvidos três dias, para Compostella, furtando-se
ao encontro com o inimigo, por invios caminhos.
^ . . . «é quel seria capitan dellos (nobles de Castilla) e Príncipe
dei Exercito». Anonymos de Sahagun, cap. zxx.
2 Monzon lhe chama a Chron, de Sàhagun: «vinose á nn Cas-
tillo llamado Monzon, onde Ia Rejna entonces estaba». Cap. zxi. A
Hist Compostelana chama-lhc Orsillon : «et genitrici suae Reginae
Duae Urracae sanum et in columen in forti Castello Orzilione (quod
castram est in Castella) restituit. Cap. 68.
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324
Pacto entre D. Realisado O pacto entre D. Urraca e D. Henrique,
H^que! ^' que mais uma vez havia de ser ludibriado e con-
trariado nas suas ambições, combinaram os dois
o plano a seguir; a D. Henrique, prometteria a
cunhada, ou faria mesmo doação de uma parte
do reino; Herculano, contradictando a interpre-
tação de Berganza, deduz de um documento do
mosteiro de Arlanza *, que seria esse o premio do
auxilio das suas armas, e a realisaçao do seu so-
nho, mais modesto *. Ter-lhe-ia sido dada também
a supremacia do commando, não só porque isso
lhe pertencia quasi de direito, dado o seu paren-
tesco com a rainha e a sua hierarchia real, mas
fora essa uma das promessas feitas pelos barões de
Castella e Galliza, para o attrahir.
Manteria elle, no fundo, a ambição de aproveitar
a primeira opportunidade para se tomar senhor
da situação, e pôr de parte D. Urraca? Tudo era
possível ; entre os dois fazia-se um jogo arteiro, a
ver quem conseguia illudir o outro, depois de lhe
haver tirado todo o proveito de momento.
Mas no ponto da narrativa em que chegámos,
vemos cada qual trabalhando na obra commum.
^ •Eegnante Urraca in regno fotris sui et eomiU, • . dric una pa-
riler eum ea». Btrganza. Asteqobd, torno ii, pag. 11.
2 «As palavras «cí. . . comité dric unapariler eum ea» do primeiro
documento attrabiram a attençSo de Berganza, que completa a stI-
laba dric, imaginando que ali se alludia a algum dos dois condes
Rodrigo Munhoz ou Rodrigo de Lara; mas é absolutamente insó-
lito ou antes impossivel que se dissesse que reinava D. Urraca jun-
tamente com um d*aquelles dois condes subalternos, que não consta
tivessem jamais pretensões de soberania, accrescendo que nos di-
plomas d^aquelle tempo o nome de Rodrigo se escreve sempre Bo-
dericus ou Hvderic. Nós nao podemos ver no documento senão um
engano na leitura da primeira letra d*esse fragmento de palavra, e
que se afigurou a Berganza um d por n, devendo ler-se . . ,nric
(Enric, Henric). £m tal presupposto, alludir-se-ia ahi k ceesSo de
uma parte da monarchia feita ao conde de Portugal para o separar
do rei de Aragão, promessa revalidada por D. Urraca em Mouzon.
D*e88e modo o documento de Arlanza confirmaria a narração do
anonymo de Sahagun». A. Herculano. HièU de Portugal^ tomo i,
nota vn.
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D. Affonso de Aragão, vencidos os gallegos em
Viadangos, resolvera pôr cerco a Astorga, para
onde D. Urraca passara, deixando o filho em Orsil-
]on ; lima e outro tinham reforçado as suas hostes :
D. Urraca, no intuito de obstar ás consequências
da invasão estrangeira, e expulsal-a do paíz, D.
Affonso na idéa de decidir definitivamente pelas ar-
mas o seu pleito com a mulher. Os castelhanos
tomaram a peito impedir a concentração das forças
inimigas, que vinham de toda a parte, e principal-
mente de Aragão ; as vantagens por elles adquiridas
tornaram impossivel ao aragonez manter o cerco ;
levantando-o, foi intei-nar-se no forte castello deD.Henriqaeeér-
Penafiel, perto de Valhadolid, que o conde D. Hen- Si ^nílS?*'*
rique se encarregou de cercar com o grosso do seu
exercito, e composto de gente de pé e a cavallo,
convenientemente reforçado ; ia com elle a rainha.
Devia isto passar-se no verão de 1112.
Prolongou-se o cerco porque o castello «la na-che(« d. The-
tura lo fortifico». Aos arraiaes dos sitiadores che- '^"'
gou D. Thereza, que dos seus dominios de Por-
tugal fora ter com o marido, impaciente por com-
partilhar das commoções e tirar partido da situação .
creada pela alliança de D. Henrique com D. Urraca.
Génio ambicioso, insoffrido e intrigante, não podia
ser de bom agouro esta defrontação com sua irmã,
n'aquelle foco de ambições e competência, onde
cada um dos alliados buscava lograr o outro, ou
tirar das circumstancias o melhor proveito.
Ou porque começasse já a lavrar a desconfiança mtrigM e dii-
no animo de D. Henrique, com respeito ás inten- ""* "'
coes da cunhada, ou porque realmente as intrigas
de D. Thereza, com aquelle «saber astuto e enge-
nhoso», de que falia o anonymo de Sahagun, que
a conheceu de perto, calassem no animo do ma-
rido, convencendo-o de que devia exigir desde logo
a partilha do reino, sendo de ingénuo o estar
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326
trabalhando, sem proveito, para os outros, as dis-
senções começaram ; é pelo seu lado, D. Urraca, a
quem se attribue emulações e ciúmes por ouvir
aos portuguezes appellidar de rainha a irmã — «Io
qual oyendo lareynamal le sabia» — , manisfestar-
se-ia mais claramente no sentido dos seus reserva-
dos propósitos. O caracter de D. Urraca, educada
igualmente pelos processos da época, não sobrele-
vava em excellencias o de D. Thereza.
Levanu-Mocêr- Fiogiu ccdcr ; mas entabolou secretas nego-
ciações com o marido. Levantando, o cerco de Pe-
nafiel, encaminharam- se para Falência. Em Fa-
lência se reuniram os árbitros que haviam de
decidir da fallaz partilha do reino entre D. Henri-
que e D. Urraca, que não queria antecipar o rom-
pimento emquanto não renovasse com segurança
o accordo com o marido. Isto dar-se-ia durante o
outono de 1112.
Partilha do rei- Seguudo O foral dc Auka, passado por Diogo
?aca°?^D.Heí-Vermudez, em nome do conde D. Henrique e de
rique. j^ Thcrcza, aquella partilha ter-se-ia tomado
mesmo um facto *. O castello de Ceia foi entregue
ao conde portuguez ; e segundo todas as probabili-
^ «En esta Academia (Real Academia de la Historia de Madrid)
existe una copia simples, escrita en pergamino, letra dei siglo xni,
de los fueros dados á la ciudad de Auka por el conde D. Enrique
de Portugal 7 Dona Teresa, sn muger. Este documento, que do
tiene fecha, j cuja autenticidad no debemos examinar ahora, em-
pieza con una reseâa dei estado laBtimoso de los reinos de Ca8til)a
7 de Leon en tiempos de la reina Dona Urraca, con motivo de las
desavenencias que tuvo con el rey D. Alfonso el Batallador, sn ma-
rido. La reina consulto á sus condes qué deberia hacer en aquellas
circunstancias, y la dijeron que se uniese con el conde D. Enrique,
su cunado, y dividiese con el su reino : «Bene videmus nos ut de
mandetis et iuntetis uos comité Henrico uro. cognato et defendatis
cum illo urm. regnum et diuidatis cum illo per médium. Et ita fa-
ctum fait et diviserunt. Et seeidit is ta patriam (Auka) ad comes
Henricus in sua parti cipatione. Et dedit comes Uenricus ista terra
a Didago Uermudez, qui fuit nepos de sénior Didago Alvares, qui
deuenit suo uasallo» LiOS habitantes de esta tierra se presentaron
á Diego Vermudez y á su muger Sancha Gomez, «qui se debant in
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827
dades, que recebem alguma luz no pacto realisado
depois entre D. Urraca e D. Thereza, os domínios
adstrictos a D. Henrique seriam os que compre-
hendiam Valladolid, Zamora, Toro e Salamanca.
D. Urraca, porém, tinha armado o seu plano puno traiçoeiro
para se sair da difficuldade em que a collocava o
cumprimento do seu pacto, obrigada pelas circum-
stancias; ao passo que fingia cumprir essa obriga-
ção moral, urdia o trama que havia de impedir a
posse do que fingira ceder. Foi assim que reco-
lhendo com sua irmã para Leão, e depois para
Sahagun, aqui deixou no convento D. Thereza,
preparando-lhe uma cilada; auctorisou D. Henri-
que a tomar Zamora e a sonhorear-se d'ella, ao
mesmo tempo que ás tropas da sua confiança, que
lhe dera a pretexto de o auxiliarem na empresa,
ordenava que lh'a não entregassem ; o castello de
Palencia punha-o á disposição de Affonso de Ara-
gão, do mesmo modo que Sahagun, onde fora fa-
zer propaganda a favor do marido com vistas na
prisão de D. Thereza! O aragonez entrou n'esta
cidade, subitamente ; a condessa de Portugal con- pog« d. There-
seguiu lugir do convento, onde a traição da imia
a deixara a fim de cair nas mãos de Affonso, que
lhe não reservaria sorte invejável. Vendo que a
presa se lhe escapava, o aragonez mandou tropas
no seu encalço, mas em vão ; a condessa de Portu-
Castello alba. £t petierunt ad illos mercedem atque consilium, ut
qui facerent de ae populatione ciuitate Okensis unde rememorati
sunt : at illi responderunt : uoluntas nra est, ut populetis eam cuin
Dei adiutorio et misericórdia Saluatoris et ad saluatione et impe-
riam comes Henricus, eenior noster, cum fueros suos antiquos, sicut
legimas sup. que antecessores nostros coníirmauerunt atque sobo-
raueruDt per términos suos. Ego enim Henricus et uxor mea Tara-
sia facimus nobis bane kartam cum consilio de Didago Uermudez
et nxor sua Saneia cum Dei adiutorio ut populetis ea cum istos
fueros». Biguen á continuacion y conduyen sin poner la fecha, con
las maldiciones de costumbre ai que violare 6 infringiere esta
carta». Coleccion de Fueros y Cartas Pueblas de Espaha par la Real
Academia de la Historia de Madrid, Catalogo. 1852.
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328
gal conseguira pôr-se a salvo, sem perigo, indo
naturalmente ter com o marido.
Ligam s* de no- D. Urraca e Affonso de Aragão, reconciliados
o mvidíf**'* ** novamente, d'esta vez pelo receio do incremento
que iam tomando as pretenções do conde de Por-
tugal, reuniram-se em Leão, e d'aqui recollieram-se
em Carriôn. Nem todos os partidários da rainha,
porém, approvaram o seu procedimento; duas
facções se formaram entre elles: uns continua-
ram sendo fieis á sua antiga, comquanto dúplice
e leviana, senhora; outros declaram-se-lhe contrá-
rios, e naturalmente se ligaram com o conde D.
Henrique; este, com os seus, e condjuvado pelos
D. Henrique p5e novos adcptos dc occasião, foi pôr cerco a Carrion
ífoT * ^*''para se vingar dos ludíbrios e das aíírontas a que
a doblez da cunhada o sujeitara ^ Os laços que o
uniam, porém, aos seus auxiliares adventicios, leo-
nezes e castelhanos, não podiam ser duradouros;
cada uma das parcialidades representava interes-
ses diversos que o conde de Portugal nao lograva
conciliar. Alem de que, para que servia aos cas-
telhanos e leonezes combater a união da rainha
com o marido, que podia ser filha de um novo ca-
pricho, e que naturalmente se romperia amanha,
como as intermittentes uniões anteriores*? e com-
bater a rainha, auxiliando as ambições do conde
D. Henrique, não era faltar a todos os interesses
tradicionaes, visto que a filha de AíFonso VI, unida
ou não com o marido, representava a politica da
integridade do império?
* «En aquel tiempo el conde Enrique, é todos Nobles cercaron
ai Rey é a la Reyna dentro de Carrion, habiendo gran ira por el
juramento aue la Reyna con el dicho Conde habia hccho, é des-
pues de queorantado». Anonymos de JSahagun, cnp. xxiii.
2 «Mas considerando la giRu improvidad dei Rey, que le parecia
tener por certo, que antes dc mucbos dias se arrepentiria la Keyna
dei segundo matrimonio, mayormente que la teniam asi como á na-
tural Keyna, por tanto la descercaron». Ibid.
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329
A âlliança de elementos tao heterogéneos desfez-
se; o cerco não se manteve. Porque forma teria
concorrido para isso a astúcia e a diplomacia de
D. Urraca? E natural que tivessem contribuído
em muito.
D. Henrique teria recolhido aos seus dominios; Recolhe a Porta-
e se 08 documentos não fossem tão omissos com *^*^'
relação aos factos do ultimo anno da sua vida,
vel-o-iamos. decerto continuar no seu systema de
pender ora para um lado ora para outro, nas luctas
politicas que continuavam dividindo o reino de
Leão e Castella, não abandonando nunca o seu
sonho de engrandecimento dos seus dominios. Ao
sul eram deixados em paz, no entretanto, os sar^
racenos. Ainda assim, das poucas informações que
se respigam n'esta ou n'aquella fonte, se sabe que,
ao dar-se novo rompimento entre D. Urraca e seu
marido, situação que duraria de janeiro a agosto
de 1113, o conde de Portugal se ligava de novo
com a cunhada; e que, ao voltarem a congraçar-
se os dois esposos, por imposição dos povos e da
nobreza das diversas terras de Leão e Castella,
cujos representantes se reuniram para esse finí em Morro em A>t<rr-
Sahagun, n'um dos primeiros mezes de 1114*, D. ^**
Henrique se conservou ligado á rainha, e em As-
torga moiTeu, estando ali na companhia dos dois
esposos, sujeito, ao que parece, ao novo estado de
cousas, pela impossibilidade de luctar vantajosa-
mente, ou á espera de uma opportunidade que a
morte não deixou aproveitar. Foi a 1 de maio
d'aquelle anno este fúnebre acontecimento ^ ; tinha
o conde cincoenta e sete annos de idade ^.
Por morte do marido foi lá ter D. Thereza, que
1 AnonymoH de Sahagun^ cap. xzix.
2 ^ra ÍÍSI, CaUnd. Maii ohiit Comes D. Henricus, Chbon. Lusit.
^ Hercalaoo. Nota vii da Hist, de Portugal, tomo i.
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330
«con Ia reyna su hermana, é con el-rei gran com-
petência armaba»*, Vê-se que estava resolvida a
continuar a lucta que o mando sustentara com
tanta energia, mas com tao pouco êxito, bobre
o cadáver doeste, ainda quente, começaram as re-
fregas, por emquanto de palavras. De outras armas
lançaria mão a ambiciosa e astuta princeza, que
já se assignava rainha de Portugal, — e até das
armas dos seus vassallos e alliados — , para obter
partilha no legado realengo de seu pae.
Veremos como ella se houve em tão difficil con-
junctura, abandonada agora aos seus próprios re-
cursos, sem o auxilio de uma cabeça viril e de um
pulso forte, que podesse aguentar os embates da
guerra, e tendo nos braços um filho de dois a três
annos ^, herdeiro dos seus doudnios, alem de duas
filhas mais velhas, D. Urraca e D. Elvira ^.
HiMfto de D. Morria D. Henrique sem haver realisado o seu
sonho de ouro do engrandecimento do seu con-
dado com a partilha do reino; mas em com-
pensação deixava consolidada e perfeitamente
accentuada a individualidade de Portugal, que
debaixo do seu governo foi sempre contado como
elemento preponderante e entidade á parte, e com
existência e forças próprias. Não alargara para o
sul os seus domínios, pouca importância tendo,
por esse facto, o seu papel no movimento da re-
conquista, porque de todo o absorvia a idéa de
liquidar primeiro a questão da herança do reino,
para em seguida se occupar de novas conquistas;
* Anonymos de Sáhagunj cap. xxix.
^Mv2. 1166 (anno 1118).. . Siquidem mortuo patre 8Q0 Comité
Domino Henrico, cum ad huc ipse pner esset daornm aat triam
annorom. . , Chron. Lusit.
3 nHahuit ttiam (AdephoDSUs vi) duas concubinas, tamen nobiUs-
slmas, priorem Xemenam Munionis, ex qua gtnuit Goloiramj uxortm
Comitis Raimundi Tolosani, Patris ex ta Adcfonsi Jordani», d Ta-
rasiam vxorem Henrici Comitis, Patris ex ca Urracae Gdoirae et
Adefonsia. Pxilato. Obbtbhbe. 14.
llenriqne.
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331
mas também, depois da perda da base de opera*
ções do Tejo perante o poder dos almorávidas,
soubera fazer respeitar o seu território, mantendo
como fronteira o Mondego. Deu provas de sua
grande ambição, e para a realisar mudou de par-
tido tantas vezes quantas se lhe offereceu en-
sejo. Mas era isso considerado de boa politica;
fazia o mesmo que os outros em iguaes circums-
tancias e o que a politica ainda hoje aconselha
que se faça, arvorando como lemma o principio
de que todos os meios são bons para se alcançar
um fim útil a que se aspira. Vira a necessidade
de, assente a individualidade portugueza, crear o
novo estado em condições de existência prospera
e segura; antes d'esse estado se dilatar para o sul,
o que natural e forçosamente viria a acontecer,
entendia dever avançar mais para o coração da
Feninsula, para que não ficasse reduzido a uma
faixa costeira, sem elementos de acção no interior ;
e para isso nos seus pactos reclamava a parte de
Oastella que comprehendia as terras de Campos
e Estremadura, onde três séculos depois Affonso V
de Portugal buscava também os seus primeiros
objectivos para a conquista da Hespanha. Os seus
processos seriam tortuosos ; o seu plano era bem
estudado, e com bases na geographia e na historia,
que nos dão Braga como um centro intellectual- e
politico de toda a região onde Salamanca. Toro, Za-
mora e Valladolid erguiam no espaço os vultos
graves dos seus castellos.
Morreu D. Henrique sem poder cumprir a mis -Direito á grati-
i« • • • dfto dos porta-
sao que a si próprio se impozera; mas nem por gaeses.
isso lhe devem ser menos gratos os portuguezes,
cujos sentimentos de independência e autonomia,
e cujas aspirações fidalgas elle comprehendeu,
deixando-as superiormente affirmadas na historia
da Hespanha.
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CAPITULO IV
O governo de D. Thereza
ABiDO é, e a historia o comprova,
que lia mulheres que na lucta e no inerg
esforço pelo vencimento de uma
causa a que do coração se dedi-
cam valem por muitos homens;
apparecem em todos os tempos;
mas na historia da idade media
em Hespanha, desde Ingunda, cuja
tenacidade de crença tanto con-
tribuiu para a christiani sacão da
Peninsula, até Izabel a Catholica,
cuja energia no governo unificou
o império hespanhol, ha exemplos
de sobra a confirmar esta verdade.
D. Thereza de Portugal era
d'essa raça. Tanto ella como a
irmã D. Urraca tinham no cara-
cter a tempera do pae. Eneroria e
ambição eram os traços mais pronunciados da sua
individualidade. A escola politica da época tinha-
Ihe ensinado os processos de vencer: quando fal-
tasse a força, empregava-se a astúcia. Nenhuma
arma era vedada; todos os processos se tornavam
bons, comtanto que se alcançasse o fim.
21
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334
D. Thereza con- Esse fim para a condessa de Portugal, que já en-
LwidS.*^**'^*'**' tre os seus tinha o tratamento de rainha, era realisar
a obra que seu marido pertinazmente trabalhava,
embora sem grande êxito, por tornar viável, tendo
deixado estabelecido o programma e indicado o
caminho.
O fim era consolidar a unidade politica que se
iniciara com a creação do condado portucalense,
augmentar-lhe os dominios, e convertel-o de facto
n'um reino independente e autónomo.
O conde D. Henrique, decerto solidário n'esta
ordem de idéas com a condessa sua mulher, dei-
xaria mesmo indicados os limites doesse riovo es-
tado: ás terras que constituiam o condado, e que
se poderia dilatar para o sul pela conquista em
terras musulmanas, seriam accrescentadas, para
o oriente, as actuaes provindas de Zamora, Toro,
Valhadolid e Salamanca (Campos e Extremaduras);
essas seriam as clausulas sobre as quaes assenta-
riam os tratados estabelecidos ora com o rei de
Aragão, ora com D, Urraca, consoante de um ou
outro lado estavam as esperanças da partilha.
D. Henrique morrera na própria sede dos reis,
onde habitava, não como competidor, mas como
vassallo obediente, embora n'uma categoria e si-
tuação especiaes.
Enrcdoí e intri- D. Urraca c o marido estavam n'um dos seus
parentheses de reconciliação. D. Thereza apparecia
ali, em seguida á morte do marido, e o seu «saber
astuto e engenhoso» conseguia Ioga enredar os es-
piritos e desmanchar a ficticia architectura daquel-
las pazes conjugaes*.
* «Muerto el conde Enrique, Doiia Teresa alia se fué, é con la
Reyna su hermana é con el Rey gran competência armaba : consi-
derando que para se rebelar la fortuna no ie abastava, con un sa-
ber astuto e ingenioso envio ai Rey un mensagero confeccionado
para que se guardasse de la Reyna su hermana, porque se dispo-
nia a querelo matar con yerbas». Anonymos de Sáhagun, cap. xxix.
g*».
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335
Começara por ter questões com a irmã, natural-
mente por causa das partilhas, e nada tendo con-
seguido por esse meio, lançara mão da intriga e
denunciara D. Urraca ao marido como tendo que-
rido dar-lhe a morte por meio da peçonha, re-
velando assim um facto tido na opinião como
certo, pois é referido por um escriptor contempo-
râneo, ou inventando essa calumnia. D. Thereza
conseguia o seu fim e estabelecia a discórdia,
promovendo a separação violenta entre D. AfFonso
de Aragão e D. Urraca : aquelle accusava publica-
mente a mulher de criminosa traição, e esta, pro-
testando, affirmava a sua innocencia e appellava
para o juizo de Deus na prova do combate.
Vimos já como esta maneira de justificação, ouojmsodoDeM.
de se dei'imir um pleito era da tradição visigothica, bati!*''*
adoptada provavelmente dos francos ; essas pro-
vas consistiam na da agua a ferver, na do ferro
em braza, na prova do combate, quando alguém
era accusado por outro de um facto grave, tal
como o homicidio, a traição, etc, ou quando dois
partidos queriam resolver uma contenda. Em al-
guns foraes antigos apparecem especificados os
casos que, na respectiva localidade, podiam ser su-
jeitos á prova do combate para se reconhecer a jus-
tiça ou injustiça da accusacão ou da querela.
Dos visigodos passaram para os seus descen-
dentes peninsulares, e em Portugal duraram até
el-rei D. Diniz, que a prohibiu em 1318 sob pena
de morte, que no logar onde o rei estivesse, ou
duas léguas em redor, qualquer fidalgo desafiasse
ou mandasse desafiar outro. Nas Ordoiações Affbnsi'
nas (tit. 64 do liv. i) é prohibida a prova do duelo,
a não ser em caso de traição contra a pessoa real.
N'esses tempos semi-barbaros a intervenção de
Deus, nos pleitos em que a verdade se não podia
apurai' por outra forma, era tida como um tes-
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336
teinunho absoluto a favor da innocencia e da ver-
dade ; negar fosse a quem fosse essa maneira de
se justificar, collocando-se sob a protecção divina,
representava uma das maiores violências á cons-
ciência e á fé. Essa violência commetteu-a Affonso
de Aragão recusando á rainha a prova do combate
a que appellara. A isso se attribue a declarada op-
posição que encontrou, até entre os aragonezes que
tinham voz por elle nas fortalezas de Castella e
Leão, e o haverem-se passado para a rainha aquel-
les que até então o haviam acompanhado..
Animadversôes Essa mauifestaçSo de hostilidade tomou o cara-
fonso de Ar», ctcr út uma verdadeira imposição da parte das
**^' diversas cidades e dos cavalleiros que se lhes reu-
niram em Sahagun, os quaes exigiram do arago-
nez o respeito aos seus antigos compromisisos e o
levaram a pedir tréguas e a voltar descoraçoado
para as suas terras. Burgos abandonara o partido
de D. Affonso. Leão, guardada por aragonezes,
recebia dentro dos seus muros a rainha ultrajada,
e «por D. Urraca ! » era o grito que se ouvia agora
em toda a parte.
E que o homem, mixto de sentimentos egoistas
e generosos, de defeitos e de virtudes, foi sempre o
mesmo em todos os tempos ; tem mudado apenas de
forma exterior, como tem mudado de traje.
congraçam-seat D. Tlicrcza de Portugal, que se inimizara com a
duas irmãs. • -vj • ^i• • ^ . i« j»
n*ma, de cujas ultimas violentas discórdias cora o
marido fora a causadora, e que abraçara o partido
do aragonez, via-se agora n'uma situação difficil e
melindrosa. Astuta e sagaz, tomou o alvitre de se
congraçar com D. Urraca, affectando sujeitar-sc á
sua situação de vassalla.
inflaencfas ec- Hcrculauo faz iutcrvir n'este ponto a figura de
dois prelados, o bispo de Compostella Gelmires, e
o metropolitano bracharense Maurício Bordino, e
no labyrinto das informações da época descor-
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tina um tenuo fio que o leva ao que elle suppõe po-
der ser a causa da approxlmaçao das duas irmãs e
da paz que sobre esses fundamentos se assentou,
não só no que respeita á politica do estado, mas á
politica da Igreja *.
O arcebispo Maurício, metropolitano da Galliza,
no desejo de prover a diocese do Porto, que desde
08 tempos do conde D. Henrique, e antes ainda,
desde Fernando Magno, permanecia vaga, e na idéa
de resolver a questão ecclesiastica de Portugal,
onde quasi todas as dioceses estavam sem bispo, e
onde lavravam dissenções, fora procurar para o ^
provimento da diocese do Porto um tal Hugo, fran-
cez, arcediago de Compostella, creatura e amigo
intimo de Gelmires ; e acompanhou esse propósito
com todas as demonstrações do seu interesse e so-
licitude. Era Maurício um prelado hábil, dotado de
grandes faculdades de intelligencia e de energia,
que o levaram ao throno pontifício, embora em con-
dições extraordinárias e singulares, que breve pro-
moveram a sua queda.
Hugo era sagrado bispo nas proximidades da
morte de D. Henríque; nesta época sô relacionara
^ D. Maurício Bordino foi arcebispo de Braga pelos annos de
1110 a 1119; era franccz de nação e monge de Cluui ; de arcediago
de Toledo foi feito bispo de Coimbra e d'aqui passou para a sede
provincial de Braga, em 1110. Das boas relações e influencia que
tinha no arcebispo de Compostella dâo prova o haver conseguido
que este desse á igreja de Braga em feudo as possessões que ali
tinha a igreja de Compostella, e o haver livrado o seu arcebispado
de vários tributos que pagava ao de Compostella. De D. Thereza
obteve uma doaçilo a Santa Maria da Sé e confirmação da que já
lhe tinha feito seu bisavô, D. AlFonso V de Leão. Também conse-
guiu que os bispos de Coimbra reconhecessem por seus metropoli-
tanos aos arcebispos de Braga.
Foi muito ambicioso ; pretendeu a sede de Toledo, e mais tarde
consentiu ser acclamado papa, com o nome de Gregório VIII, me-
diante as boas graças de Henrique V, exercendo três annos o pon-
tificado. Callixto V, reconhecido como verdadeiro pontifice, man-
dou-o prender e desterrou-o para França, onde falleceu encerrado
n'um mosteiro. —Vide Mofi. Lusit, parte iii e Memorias de Braga,
por B. J. de Senna Freitas, tomo iv.
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Gelmires com D. Thereza, com quem mantinha
«relações estreitas e ás vezes mysteriosas*)).
bispo de Compostella era o centro da acção
em volta do qual se reuniam os elementos políti-
cos que tinham por divisa a legitimidade dos direi-
tos do neto de Affonso VI ao tlirono independente
da Galliza ; como tal não podia deixar de ter grande
influencia no animo de 1). Urraca, agora de novo
voltada á causa do filho, visto ter-se novamente
malquistado com o marido.
Dadas as hostilidades com Portugal, as difficul-
dades de ordem ecclesiastica cresciam e Gelmires
viria n'ellas envolvida a situação do seu intimo
amigo o bispo do Porto.
Tratou portanto de reconciliar 1). Thereza com
* a irmã, que n aquellas alturas nào aspiraria a
outra cousa. Não podia haver melhor intermediário.
Habilmente a infanta de Portugal teria aproveitado
esse auxilio e esse ensejo para se approxiniar da ir-
mã ; esta ter-se-ia sujeitado, não só pela influencia
do bispo, mas porque a lucta com Portugal, que em
Gelmires podia encontrar auxilio, complicaria a
situação do reino. Cada qual fazia o seu jogo, e
neste a condessa de Portugal tinha de ter o melhor
quinhão ; a sua hábil politica ia preparando o gran-
de facto da emancipação portugueza.
siibmisi&o de As demonstrações de submissão á irmã não po-
diam ter melhores apparencias de sinceridade: um
anno depois da morte do marido, ella, que de ha
muito o seu povo tratava pelo titulo de rainha, e
que por morte do marido adoptara esse titulo offi-
cialmente^, apresentava -se na qualidade de vassalla
de I). Urraca, n'uma espécie de cortes ou concilio
1 A. Ilercuiano. Hisi. de Port, liv. i.
2 Doe. do Cartnlario de Refoios de Lima, em que depois da data
vem : Imperante Portugalis Begine Taresie, Kopke. Apont. Archeol;
cit. por Herculano.
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339
reunido em Oviedo, capital das Astúrias, assignan-
do-se infanta^ em seguida a sua irmã D. Elvira *,
conjunctamente com o seu filho e filhas, e decla-
rando-se sujeitos á rainha^. Ao mesmo tempo, a
essas cortes ou concilio não assistiam, como suc-
cedia com as outras províncias, os prelados e no-
bres portuguezes, nem D. Thereza. se assignava,
como sua irmã D. Elvira, em nome dos seus súb-
ditos, mas apenas no dos filhos, o que leva Her-
culano a perguntar se não será mais uma prova
«de que o espirito publico, ainda mais, se é possí-
vel, do que os desejos dos príncipes, tendia ener-
gicamente em Portugal á independência? »
Igual diplomacia á da infanta portugueza não a Attuade do ws-
teve o bispo de Compostella; sob a apparencia de ^
amizade e accordo com D. Urraca, surdos tramas
ia urdindo no sentido de crear um forte partido e
proclamar a independência do reino da Galliza na
pessoa do infante AfFonso Raymundes.
seu poder crescia dia a dia ; uma expedição
maritima, que organisara para devastar as costas
do Garbe como represália das depradações dos
mouros nas costas da Galliza, concorrera para lhe
augmentar o prestigio, comquanto não gosasse de
grandes sympathias no povo.
Por duas vezes já D. Urraca se dirigira á Gal- con«piraç«e«.
liza com idéa de deitar a mão áquelle perigoso ini-
migo; uma vez, em 1115, a energia de Gelmires,
por um lado, e a intervenção dos nobres gallegos,
por outro, conjuraram a porcella; mezes depois,
tendo-se ligado Gelmires com o conde de Trava,
Pedro Froylaz, continuando na propaganda surda
a favor da independência da Galliza, houve novas
1 Filha de D, Affonso VI e da rainha Izabcl, filha de Luiz, rei
de França?. . .
2 Doe. publicado por Sandoval, Cinco Beis, Aguirre. CoU. Max,
ConciL, etc., cit. de Herculano. Hist. de PorL, liv. i.
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340
tentativas de prisão da parte de D. Urraca e resis-
tência á mão armada dã parte dos coUigados, de-
sistindo a rainha dos seus intentos.
Lucta aberta en- Até que nos piimeiros mezes de 1116 á colliga-
D^uíraJâr *çao agora abertamente manifestada oppõe U. Ur-
raca o poder das suas armas, entrando em Galliza,
obrigando Gelraires a render-se e o hesitante con-
de de Trava a fugir, ficando apenas em campo
Gomes Nunes, barão poderoso, a cuja voz muitos
castellos continuaram resistindo, tendo arvorado o
pendão de AfFonso Raimundes, e contra os quaes as
tropas da* rainha se mostraram impotentes nos cer-
cos que lhe pozeram, e que os obrigaram a divi-
dir-se.
D. Thcreza de- N^csta altura apparece-nos de novo em scena a
clara'ie contra , «ii-rk
airn*. mfauta OU antes a rainha de Portugal, porque de
1116 é o primeiro documento em que Portugal fi-
gura com o titulo de reino *. Tendo no anno ante-
rior figurado em Oviedo como vassalla da irmã,
vemol-a agora auxiliando pessoalmente com as
suas tropas o partido de D. Pedro Froylaz, e
aproveitar a dissiminação das forças reaes para as
atacar e obrigar a levantar o cerco dos castellos
que se conservavam fieis á causa de Affonso Ray
mundes.
D. Thereza aproveitava o descanso que do lado
do sul lhe davam os sarracenos entretidos ora
com dissenções intimas, ora com as diversões nas
costas da Galliza, onde levavam o desforço dos
ataques e devastações dos gallegos nas suas costas,
para se metter nas aventuras das guerras civis de
alem-Minho.
D. Urraca viu-se envolvida pelas tropas colUga-
das de gallegos e portuguezes.
1 Carta de Couto de Osseloa feita a Gonsaio Eriz em 1116. Dis.
ChronoLj tom© i, pag. 2á5
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341
Dadas as suas ligações com o bispo de Compos-
tella, que apesar de derrotado não desanimava,
continuando a ser a alma do movimento revolucio-
nário, não era para estranhar que a infanta portu-
gueza tirasse a mascara e fizesse pesar no prato da
balança a sua ambição e o seu interesse.
Estava D. Urraca no assedio do castello de Su- Assedio do ca».
1 j . jivjI 1 tello de Sabe-
beroso quando se viu cercada pelas hostes luzo-gal- roso porponu-
legas. Do encontro que d'ahi naturalmente resultou Sio*!' * *^* '
não ficou noticia, ignorando-se se a rainha teria
batido os adversários ou se unicamente teria con-
seguido illudir o cerco e retirar-se a salvo para
Compostella. Herculano opta pela derrota de
D. Thereza e do conde de Trava, pelo facto de
D. Urraca ter abandonado a Galliza, onde fora no
propósito de castigar os inimigos. Mas, notando em
que, apesar do partido que a favor da rainha e con-
tra o bispo se formara entre os burguezes de Com-
postella, a rainha deixara Gelmires em paz, e em
que I). Thereza recebeu dos seus alliados da Gal-D. Thereza ad-
T j • 1 • qulre Tuy e
liza a recompensa dos seus serviços vendo accresci- orense.
dos os seus dominios para o norte com os distric-
ctos de Tuy e de Orense, o que não nos parece que
acontecesse se houvessem sido mal succedidos,
damos mais pela opinião de ter sido batida a rai-
nha, ou pelo menos obrigada a fugir, o que tem a
auctorisar a informação da llisfoina Compostelíana
que diz; — sed regina ascito cxercitu suo evasit, et
reversa est Cotnpostellaiu^. Alem de que, D. Urraca
não se poderia reputar muito segura desde o mo-
mento que o conde de Trava, com os seus filhos,
e os qve o auxiliavam, evidentemente portuguezes,
avançara sobre Compostella entre saques e morti-
cínios.
Hist. Compostel., liv. i, cap. cxi.
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34^
Amores com D. Mas neiTi só iim accrescimo do seu estado trazia
Trava" " **D. -Thereza do regresso da sua expedição da Gal-
Hza; d'ahi traria também no peito a sua paixão,
que se tornou tào violenta e tão funesta, por Fer-
nando de Trava, um dos filhos do conde Pedro Froy-
laz, escudeiro-mór do reino da Galliza * e compa-
nheiro da condessa nos arraiaes bellicosos.
Recoiicihaçôca. O bispo dc Compostclhi, que via no conde de
Trava um rival capaz de lhe fazer sombra, e que
sentia em volta de si a hostilidade da opinião,
tratou de se reconciliar com a rainha ; d'essa recon-
ciliação participaria 1). Thereza, que a ii-mã deixa
em paz nos seus dominios, agora augmenta.
Ao mesmo tempo surgiram novas preoccupações;
para I). Urraca as correrias dos aragonezes nas
terras de Leão e Castella, ás quaes o marido não
renunciava de modo nenhum ; para D. Thereza as
avançadas dos musulmanos que do Oriente vinham
trazendo as suas gazivas até ás terras da Lusi-
tânia.
D. Affonao con- D. AíFouso dc Aragão, obrigado a deixar oster-
tra o8 ransul* •. • i ^^ t, .
manos no Ara- ritorios dc sua mullicr, voltara para os seus esta-
dos, e ali o seu animo guerreiro levara-o a com-
bater novamente os árabes, apoderarando-se desde
logo de Tudella e pondo cerco a Saragoça, que o
vali de Granada Abu Mohamede Abdalá conseguiu
levantar no anno seguinte (1116).
* A 25 de dezembro de 1110 o bispo Gelmiros para commemorar
o eoiigraçameuto dos dois partidos, numa das muitas vezes em que
a rainlia, ao ver-se em turras com o marido, se approximára do
fiUio, deu era Compostclla um baiKiuete no sou paço episcopal, as-
sistindo a cUe o joven rei, todos os ricos homens da Galliza; «'csti-
banquete o conde D. Pedro de Trava serviu ao rei de dapifero (trin-
chante ou veador) e o seu filho D. Fernando de alferes : Deinde
missa €x more solemniter celebrala, regem novum dcduccU adpalatiuni
suum, episcopits omnes Galaetiae próceres invitarit coinvium, in qun
darissimus Comes Petrus, regnis dapifer extetit, ejusque fívdtricvs
cli/peum et frameam regalís offertorius . . . Hisx. Couposiel.) liv. i,
cap. cxvi.
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343
N^esse mesmo anno o vali de Ce
Texufin, aproveitando o desfalqu
das praças portuguezas pela exp
paiz pela linha do Mondego, toma^
grande mortandade o castello de
Doessa\ assenhora va-se do forti
Santa Eulália, perto de Montem ói
de Soure para evitar o assalto,
legar, fugindo para Coimbra", e
cidade desprovida das suas guai
fronteira ^
Teria D. Thereza regressado r
Galliza'*, ou já estaria em Pori
d'esta investida?
Texufin fora preparar o terre
rada era como que a guarda av
cito que no anno seguinte havia
mais decisivo. Esse golpe vinh;
mente. Ali, filho e successor de
haviam chegado as noticias da
quiridas pelas armas aragoneza
musulmanos ao oriente da Peni
mente nos districtos de Lerida
noticia também, certamente, daí
agitavam o antigo império de A"
vidido agora, buscou aproveitar
forte acção das suas armas. Atac
1 Era MCLiv. Castellum de Miranda a Sa
magna cedes, et captivitas in christianis f
Lttsit.
2 Era MCLiv. Nonis julii eaptum fiiit Cast
raceuis, qnod est situm sub Monte inaiore,
cus coguomento Gallina, et magna captivi
translata eat etiam ultra maré. Chronicon Li
3 Afon. LtisiLy parte in, liv. ix, cap. vii.
Santa Cruz de Coimbra.
4 «Permaneció dona Teresa en Galicia
con que los sarracenos amenazaban las fron
obJigaron a regressar a Portugal para aci
fuente. Hist. de Esp., tomo i, liv. ii, cap. iv.
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344
multaneamente Portugal, cujas veleidades de au-
tonomia provariam a dureza das suas represálias.
Emquanto seu irmão Tei^ain, auxiliado pelos valis
de Córdova e de Valência, atacava Aragão, elle
entrava na Lusitânia com um numeroso exercito,
que a Chronica Lusitana no seu exaggero diz ser
tão sem conto como as arei^-s do mar, — sicut arena
maris.
Awedio da ci- Coimbra, desapoiada dos castellos que a cingiam
dade de coim- ^^^^ quc n'um avançado cinto protector, recebtíu
de frente o choque, tendo dentro dos seus muros
D. Thereza, que nelles se acolhera em junho de
1117 ; o assedio terrivel durou vinte dias; a praça
oppoz uma heróica resistência ás violentas investi-
das dos mouros, que acabaram por desistir. Legoas
em derredor ficou reinando por muitos annos a de-
solação e a ruina *.
Com este pouco se contentou, ou algum motivo
de força maior o obrigou a regressar á Africa,
sem procurar sequer soccorrer Temin e os seus al-
liados, batidos pelo aragonez, nem tentar ataque a
qualquer praça do occidente, aproveitando do ter-
ror que teria produzido a devastação do districto
de Coimbra.
D. Urraca na Valcuse d'estas circumstancias D. Urraca, para
A?ígao.* ^ acabar com as tentativas dos aragonezes contra os
seus estados; agora que os absorviam as luctas
com os almorávidas, resolveu marchar para a fron-
teira de Aragão com uma hoste numerosa composta
* nuSiJra 1155, Rex san-acenorum Hali Iheitjueeph vetiiens de vkra
inare eum multo exercitUy qui erat circa maré, quomm numertt8 trai
innumerabilis sicut arena maris j soli Deo íanium cognitus erat. Ohsedit
aulem Colimbriam viginti diebus quotidie fortiier in totó extraiu
oppugnans eam^ sed per vóluntatem Dei non potuit nocere^ et Civitas
illaesa remansit et inliahitantes in ea». Cubon. Lusit. ou Goth.— «boc
in anoo multis hominum milHbus amissis, subúrbio etiã Colimbriae
cremato intra muros civitatis Regiuam vix yiiam servasse. . .» Carta
do cardeal Bernardo, Legado Apostólico, ao Papa Pascoal II. Lir.
da Sé de Coimbra. Mon. Lusit,, parte iii, liv. ix, cap. tu.
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345
de castellianos, leonezes, asturos e gallegos ; portu-
guezés não figuravam n'ella, pois tinham em casa
luctase preoccupaçôes qtie os prendiam.
Mas se D. Thereza não* podia tomar parte n'esta
contenda, estimava decerto que ella arredasse de
sobre os seus dominios o perigo de quaesquer hos-
tilidades. Sua irmã não poderia ter esquecido o
auxilio que ella prestara aos seus adversários e
muito menos o accrescimo do seu estado sem sua
auctorisação, o que correspondia a desmentir a si-
tuação de vassalla que publicamente fora affirmada
nas cortes ou concilio de Oviedo.
Foram realmente uns annos de socego que du- portugai dea-
raram de 1117 a 1120. O aragonez chamava por ''*°^*'
um lado a attenção de D. Urraca, que não desistia
das hostilidades, e por outra a attenção dos mu-
sulmanos de áquem e d'alem Estreito; porque estes
viam sem resultado as fortes expedições que envia-
vam á Peninsula, aquelles iam successivamente
perdendo territórios e praças importantes, como
Saragoça (1 118) e Catalayud (1 120).
D. Affonso I de Aragão, que nas suas pretenções Prôcsa» de d.
em Leão, Castella e Galliza não tinha grandes fei- gso?'** *
tos a contar, nem grandes proveitos a fruir, illus-
trava-se pelo contrario em Aragão por uma forma
perdurável, em proezas que justamente lhe conquis-
taram o titulo de Batalhado7\ Sobretudo depois
que teve de abandonar as terras de sua mulher,
sendo escorraçado de Burgos, é que elle via luzir
mais brilhante a sua estrella nas campanhas da re-
conquista. Em 1116 veiu em seu auxilio, com uma
comitiva lustrosa e valente, Beltran de Tolosa, fi-
lho de D. Elvira, irmã de D. Thereza, e do conde
Rayniundo de S. Gil, primo do conde D. Henrique;
era elle um cavalleiro esforçado que creara nome e
fama na Terra Santa. A tomada de Saragoça aos
musiilmanos foi o sonho dourado do rei aragonez,
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346
que n'esse anno de 1116, como vimos, lhe pozera
cerco, sendo forçado a abandonal-o deante dos
soccorros commandados por Abú Mohamede; mas
o emir de Saragoça, temendo mais o almorávida
do que o aragonez, ligou-se com este, e successivas
victorias dos christaos sobre os africanos deram a
I). Affonso ousío para, rompendo o pacto, exi-
gir do seu antigo alliado a entrega da cidade.
Diante da recusa formal, D. Affonso reunia seu
forte exercito, em que figuraram numerosos fran-
cezes, e depois de tomar Almodovar, Sariôena,
Gurrea e outros povos, transpoz o Ebro e o Gál-
lego, e foi por apertado cerco a Saragoça, que.se
rendeu pela fome ; havia quatro séculos que nunca
deixara de tremular sobre os seus adarves o cres-
cente mourisco. Animado por esta importante con-
quista, D. Affonso avançou com um forte exercito
até ao Moncayo, occupou as margens do Ebro, to-
mou Tarazona, Borja, Alagon, Mallen, Magallon,
Epila e outros povos, e assenhoreou-se de Cata-
layud, de um alto valor estratégico, por ser fron-
teira de Castella; com este lhe vieram á mâo ou-
tros pontos importantes (1120). O almorávida
Terain buscara tomar-lhe o passo com um forte
exercito; Affonso infligia-lhe uma formidável der-
rota em Cutanda, perto de Daroca, e esta victoria
era tao decisiva para o prestigio e gloria das ar-
mas aragonezas, que se atrevia a fazel-as passear
triumphantes alem dos Pyrinéus, pela Gasconha,
e pelos emirados de Valência e da Andaluzia *.
Ali nao veiu a Refcrc-sc Herculano a uma versão árabe, que
n°íio" oSpiniõ^S dá em 1120 os almora vidas ás portas do condado
líoiai.* ^ *portuguez, tomando Ali a cidade de Lisboa. Mas a
verdade é que nem os monumentos christaos, nem os
árabes se referem a tal facto. Cartaz (Assaleh) dá
^ Lafuente. Hist. de Esparia, tomo i, Uv. n, cap. iy.
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347
Ali em Hespauha em 1120, e Holal, que o nosso
amigo o Sr. David Lopes tenciona publicar tradu-
zido, coUoca essa vinda em 1121, mas para apazi-
guar uma revolta ; depois do que, tendo noticia do
Mahdi se ter levantado em Marrocos passou im-
mediatamente o Estreito. Segundo Cartaz, que
Conde traduz n'este ponto, de Córdova foi Ali con-
tra uma cidade que vem escripta difficilmente nos
exemplares manuscriptos : — Moura leu Lisboa,
"Conde e Tarnberg (tradução latina) leram Sana-
bria e Sambria; mas Cartaz não diz onde ficava
tal cidade, e foi Conde quem accrescentou por sua
conta «no Algharh>^j o que mostra não ter funda-
mento a supposição de Herculano de haverem sido
inventados esses successos para attenuar a má im-
pressão dos desastres nos districtos orientaes; a
responsabilidade é toda de Conde *. E certo, por-
tanto, que Ali não veiu a Portugal, porque não se
sabe que terra era aquella, e a narrativa de Holal
é mais plausivel e explicável.
Estavam portanto livres de ameaça da parte dos
musulmanos os estados christãos do occidente, o
que punha em acção os elementos discordes, que
só o perigo do estrangeiro continha ás vezes.
Em 1121 rebentam as dissenções entre D. Ur- inva.no de Por-
raca e D. Thereza a propósito da posse do distri- *"** "
cto de Tuy. O bispo de Compostella Gelmires
apparece-nos acompanhando com a sua gente
arniada a expedição a Portugal. Como se explica
isto, em quem tão aíFeiçoado se mostrava sempre a
D. Thereza, ao ponto de se attribuir caracter amo-
roso a essas ligações?
Gelmires congrassara-se com D. Urraca, que o bi»po G«imi-
em 1117 até compartilhara com elle das fúrias da
populaça n'uma sedicção em Compostella, onde os
* Devemos estas informações á amabilidade do sr. David Lopes.
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348
dois tinham tido que se acolher á cathedral. Ape-
sar d'isso o bispo continuava a conspirar; affir-
mando a sua adhesão á causa de AflFonso Rajonan-
des, contra o qual se declarara antes, obtivera do
Papa Calixto II, tio do príncipe *, que a sua dio-
cese fosse elevada á categoria de metropolitana,
passando ,5a cadeira episcopal de Braga para Com-
postella ; isto não podia ser indiíferente a D. Urraca,
Pois apesar de tudo, a rainha vae novamente a
Galliza a pretesto de organisar a expedição que
havia de desapossar a irmã do districto de Tuy,
e provavelmente também para affirmar a sua au-
ctoridade e contraminar as conspirações que se
tramavam n^aquella provincia para a enthronisa-
ção do infante, e é Gelmires, que havia pouco ainda
obtivera o auxilio de D. Thereza e a auxiliara
pelo seu lado a augmentar os seus dominios, quem
apparece agora a tomar parte na empresa militar
que d'esses novos dominios a ia desalojar, e mais
ainda conseguia que o acompanhassem na hoste os
cavalleiros-villões de Compostella que não eram
pelo seu foro obrigados a ir alem do seu districto.
Levaria um segundo sentido, e seriam prova
d'isso os factos subsequentes, ou era apenas obrigado
á sinmlação para se equilibrar entre o juramento
de fidelidade ao principe e a necessidade de não
se mostrar adverso á rainha?
D. Urraca invadiu Portugal com um forte exer-
cito, como castigo e revindicta da invasão de
1). Thereza no districto de Tuy de que se apos-
sara. Occupou a rainha este districto e avançou
Combate no rio coui a sua luzcntc tropa ; no -rio Minho, cuja mar-
gem esquerda os portuguezes occupavam, travou-se
combate. «Mais próximo ao lado de Portugal, o rio
* Era irmão do conde D. Raymundo da GaUiza, e muito affectn
á causa do sobrinho.
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340
fazia naquelle sitio uma insua. A posse d^ella faci-
litava a passagem, mas defendiam-na as barcas
portuguezas que vogavam pelo Minho. Os destros *
marinheiros de Padron e alguns compostellanos
com vários cavalleiros escolhidos embarcaram da
parte opposta, e vieram accommettel-as. Vencedo-
res, em breve se apossaram da insua. »Este suç-
cesso levou o terror pânico aos arraiaes de 1). The-
reza, que foram abandonados, e, quasi sem com-
bate, 1). Urraca entrou no território inimigo*».
Seguiram-se depradações, destroços, incêndios, vio- DcpradavSes e
lencias de toda a espécie; diante da dispersão do '"*°*"'
exercito portuguez a marcha invasora foi como
uma cheia rompendo o único, mas fraco, dique que
se lhe quizera oppor. A força moral desapparecera.
As armas da rainha chegaram ao Douro; 1). The-
reza retirou-se para o districto ao oeste de Braga
e acabou por se refugiar no cíistello de Lanhoso ;
tomado este, e feita prisioneira D. Thereza, a causa d. Thercta pri-
de Portugal estava perdida e perdida também a LÍShoso.
conspiração na Galliza. Mas é precisamente quando
mais perigosa se mostrava a situação, que por
uma forma estranha se muda a face dos aconteci-
mentos, e o condado portuguez nos apparece mais
consolidado e accrescido. Quando D. Urraca tem
subjugado com as suas armas a melhor porção
(los dominios de sua irmã, é quando a vemos la-
vrar com ella um tratado de paz, como ven-
cida e não vencedora, em que a troco de fidelidade
jurada, moeda de nenhum preço n*essa epocha, são
dadas a D. Thereza terras comprehendendo Zamo-p«ze« 8ubitK6
ra, Touro, Salamanca, Ávila, Valhadolid e Toledo, gmenSdo. **"'
n'uina área de território que devia corresponder á
que, já pelo pacto que se assentara entre 1). Urraca
e o conde 1). Henrique a este ficariam pertencendo.
* A. Herculano. Historia de Port., tomo i, liv. i.
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350
Taes os limites do condado no anceio peripaiiente
dos que primeiro o goveniaram, e que passou tam-
bém mais tarde, com o nosso 1). Affonso V, a ser o
minimo das aspirações para o accrescimo do reino
de Portugal ao oriente.
luxôcs da revi. A primeira vista, tanta generosidade da parte de
1). Urraca parece incomprehensivel ; é necessário
ir buscar nas circumstancias que se davam em
volta das pretenções da rainha a explicação piau-
sivel.
Ao lado de 1). Thereza, engrandecido e cheio de
o valido de D. valimento, estava em Portugal I). Fernando Peres,
feito já conde ou cônsul de Portugal e de Coimbra ^
tendo o império ou principado de todo o paiz •;
Fernando pertencia na Gallíza ao partido favorá-
vel ao infante, e adverso portanto a I). Urraca;
esse partido, longe de diminuir, augmentava na
Galliza, á proporção que Affonso Raymundes ia
Tramas do Gel- cutraudo uíí pubcrdadc; antes da sua politica dú-
plice ter levado Gelmires, o Mephistopheles clerical,
como lhe chama um escriptor gallego, a mostrar,
apparentemente, que quebrara as suas ligações
com os adversários de Affonso Raymundes, D. Fer-
nando Peres, seu antigo alferes-mór i-ecebera d*elle,
terras e alcaidias, como por exemplo o de Kameta,
mais tarde mandado destniir^. Dada a influencia
' SSo dos annos de 1121 a 1126 os documentos citados por Joio
Pedro Ribeiro, no tomo iii das DitttrL Chron., referentes ao go-
verno de Fernando Peres de Trava em Portugal.
Na doação ao mosteiro de Lorvfto, da era de 11Õ9 (anno 1121 1,
publicada na Monarch. Lunt, parte iii) liv. ix, cap. ii, lê-se: «Gvfi-
discdvo Episcopo regente Colimbriensem sedem, ConmU autem Dom
Fernando Dominante Cólimbrite et PorUtgali:
2 Prova-o níto s6 a forma por que o conde subscreve nos docn-
mentos da epocha, em logar superior ao do próprio infante e igual
ao da condessa ou rainha D. Thereza, e a seguinte informação dft
HisT. CoMPosTEL. : f»et Fernando Petridt qui, ioíi iUilerrae principfi-
batur, . .» Liv. iii, cap. xxiv.
3 Viceto. Hist. de Galicia, tom. v, pag. õO.
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do valido de D. Thereza* em Portugal e o seu
poder sobre a sua amante, o estado portuguez era
um natural auxiliar ás pretençÕes da Galliza. A
rainha, procurando subjugar Portugal, teria que-
rido manietar um adversário importante; supe-
rior á razão de rehaver territórios que annos antes
e de boamente deixara ceder á ii-mã, seria essa
a razão da guerra. O arcebispo Gelmires fingia
estar ao lado de I). Urraca, por conveniências de
ordem pessoal e politica, mas no fundo o seu cora-
ção e até o seu interesse estavam com D. The-
reza, e ao mesmo tempo, pelas suas solemnes pro-
messas a Callixto II, tinha de ser favorável á causa
de AfFonso Raymundes; doesta situação dúbia se
saiu pela manha. Ao principio a guerra de Portu-
gal até o favorecia, por distrahir da Galliza as
attenções de D. Urraca; mas vendo o incremento
que tomava a invasão, e a força que a D. Urraca
d'ahi adviria, pretextou interesses e necessidades
inadiáveis que o reclamavam em Conipostella; in-
vocou o foro dos burguezes d'aquella cidade que
não eram obrigados a servir fora do seu districto,
o que levou D. Urraca a dispensal-os. Ao mesmo
tempo horrorisavam-no as cruezas inúteis da inva-
são, diz a Historia Compostellana. A rainha não se
deixava mover por tão ponderosas razões; .pers-
crutava o fundo de todos esses pretextos. Gelmires
appellou para o legado do Papa, o cardeal Boso,
que, no segredo da situação, conseguiu ser soli-
citado para não faltar ao concilio que se ia reunir
em Sahagun.
D. Urraca, longe de ceder, redobrou de precau- prisa© de oei-
çôes e vigilâncias, deixou sair o bispo, mas resol-
veu prendel-o. Para dar o golpe tinha de se libertar
* Sobre a opinião de ter D. Thereza casado com D. Fernando
Peres vid. Mon. Lusit., parte iii, liv. ix, cap. ii, e Herculano, HisL
de Port.y tomo i, nota xiv.
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;552
de outras preoccupaçôes, que podiam conipliciu- a
aituação ; ao interesse do ódio cederam todos os de-
mais interesses de momento.
Essa seria a razào das pazes com a irmS, a qual
necessitava nao só de não continuar a persegiiil-a,
mas de a chamar á sua causa ; d'alii as largas ge-
nerosidades e os accrescimos do condado portiiguez.
Consentiu eutao que as tropas do bispo regres-
sassem j)ara a sua terra, mas conseguiu retel-o
junto de si; e mal a gente que lhe era affecta trans-
l)oz o Minho, o mandou prender.
lia também a versão de que D. Urraca deixara
sair apenas os cavalleiros villôes e os peões de Com-
postella, tendo ficado com o bispo os seus homens
de armas, á frente dos quaes abertamente mani-
festou a sua desobediência*; mas isso não é accei-
tavel, porquanto a rebellar-se no campo Gelmirrs
tel-o-ía feito quando n'elle tinha a sua hoste.
Segundo esta versão a rebeldia armada, a que
D. Urraca cedeu, foi em frente de Lanhoso; a prisão
foi no regresso das tropas para a Galliza, quando
já os homens de armas do prelado haviam trans-
posto o Minlio.
Evidentemente D. Urraca não quizera apenas
castigar um acto isolado de insubordinação; alguma
cousa de mais complexo se passava em Galliza c
Portugal que ella julgara poder atalhar com um
golpe de mao. Ao mandar prender Gelmires deu
ordem para que fossem postos alcaides de sua con-
fiança nos castellos da diocese compostellana, e
presos três irmãos do prelado e outros seus parti-
dários, mandando-os encerrar a todos no eastcllo
de Orcillon^
* Viccto. Hint. de Oallicia, tom. v, pag 56.
2 Este casteno de OrciUon deve ser o que está na província de
Orense, legua e meia de Hibadabia, hoje cm ruínas. Havia outro
eastcllo de OrciUon entre Astorga e Oviedo.
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Ao mesmo tempo fugiam aterrados o arcebispo
de Braga, D. Paio, e o bispo de Orense, 1). Diogo.
Era extensa a trama.
N'e8ta expedição a Tuy e a Portugal a rainlia nov« ucuca de
fizera-se acompanhar do fillio; affectava fazer com
elle causa commum; procurava assim trazer ac-
comraodados os gallegos que não deixavam por
isso de se agitar; Portugal manter-se-ia quieto
com as novas concessões; toda a força da sua
energia era concentrada na acção directa contra
o bispo de Compostella, que parecia ter ao seu
lado o arcebispo de Braga, D. Paio, e o bispo
de Orense, e porventura, como centro de uma
grande colligaçao, D. Thereza, que indirectamente
o apoiava e ás occultas lhe commuuícava o plano
da irmã de o prender, mandando-lhe mesmo offe-
recer nm dos seus castellos para refugio, ou um
dos seus barcos para se retirar. A condessa de
Portugal trabalhava assim habilmente na sua mis- '
síxo de sustentar a integridade do seu estado, e ao
astuto Gelmires, portanto, deve a nacionalidade
portuguezi o relevante serviço de ter evitado que,
com a derrota e desapparecimento de D. Thereza
se afundasse á nascença o organismo que ella e sen
marido tanto haviam procurado sustentar e en-
grandecer.
No meio d'este jogo de arteirices de nm e outro pnct« com i>.
lado, D. Urraca, mettida entre muitos fogos, pro-
curava desenvencilhar-se pela melhor forma possi-
vel. D. Thereza tirava da situação todo o partido;
um pacto que devia ter sido lavrado em Lanhoso
representou para D. Urraca o preço por que asse-
gurava a paz com Portugal, e para D. Thereza a
sancção official da posse dos territórios que, desde
o tempo do conde D. Henrique, Portugal preten-
dera reivindicar, e que comprehendiam nao só as
provincias de Tuy e Orense, de que ella já se
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354
tinha apossado, mas o domiiiio c o senhorio de
muitas terras nos já referidos districtos de Zamora,
Touro, Salamanca, Avihi, com direitos senho-
reaes, alem dos de Valhadolid e Toledo, com a
promessa de amisade, auxilio e protecção da parte
da rainha, a troco de D. Thereza lhe jurar «amparo
e defeza contra os seus inimigos, quer mouros
quer christaos, e prometter não dar acolhimento a
nenhum vassallo da rainha levantado em terras ou
castellos, nem a nenhum traidor*.!
Ao sueste da Galliza as íiovas acquísiçôes iam
até ás margens do Bivey, por todo o território do
Lima; ao sudoeste comprehendiam Tuy e as suas
dependências ".
1 nJinhn'ra. — Juramcntuni et eoiivciiicntíe que feeit Rejíiua ilo-
iniiia hurraca gorinana sue jnfaiite domnc tarasic.
7>./^;; — Hcc est juramontum et convonicntiam ijuod facit regiim
doinna hurracha ad sua gcritiana infanta domna tarasia, que li sedeat
arnica per fcd sine maio engano quomodo bona germana ad bona
germana, et que uon faciat morte de suo corpo nec prisiono uec con-
siliet pro {ov per) facere, et si lo consiliado tenet que lo disfaciat,
et de la regina ad sua germana zainora cum suos directos. Exima
cum Buos directos. Salamanca et ripa de torme cum suo directo,
avila cum suos directos, arevalo cum suos directos. Conkacumsuoí
directos. Olmedo cum suos directos, portelo cum suos directos mun-
ias et tudiela et medina de zofran^á cum suos directos, tauro cum
suos directos, et torre cum suos directos, medina et pausada cum
suos directos. Senabria et ripeira et valdaria et baronzcU cum suas
directos, talaveira et kouria cum suos directos. Setmancas et mo-
rales que stan pro ad indicio de egas gondesindiz et geda mencndiz
et cl con (conde?) domno monio cum fernando iobaiiis et exemono
lúpus c^ue si potuerint avenire que sed. et si non mittant sorte:*
quales lurent et quos iurarent levent illam. et que sic ista houor
que la rcgina da ad g<^rmana quomodo et altera que illa tcnet qu
li a adiuvet ad ampnrar et defender contra mauros e christianoa
par fé sine maio engano, et berma et populata quomodo bona ger-
mana ad bona germana, et que nou coliat suo vassalo cum sna ho-
nore aur aleivoso que noluerit ex conduzer cum iudítio directo et ú
illa regina isto nou nttcndcrit que des illo die que li deaiander la
infante ad X dies se illa noluerit intregarc que nos scdeamus sotto:?
et vos pcriuratos ex tau' {tantumf) quantum la infiintc volaeritad-
tender adenante.» Do Liher Fidci da Sé de ni*aga. Alex. Heifu-
lano, Historia de Part., tomo i, nota x. Foi publicado pela primeira
vez, mas inexacta e com falbas, na Mwiarchiu Lnidíana. Hv. í»,
pag. 42.
2 Viceto. línt, de Gídlic.ia, tom. v, pag. 68.
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355
Ficava assim o condado de Portugal muito mais AiArgâmcnto do
accrescido, quasi duplicado, mas ficava também ^^J^** '*'*'*"
accentuada a subalternidade de D. Thereza, que
no pacto se assigna apenas infanta, e a sua depen-
dência da irmã, de quem se confessava mera logar-
tenente (tenens}y ou possuidora de um dominio ou
terra do senhorio da rainha. Para o brio soberano
de D. Urraca era isso bastante, porque tanto lhe
fazia que o condado portuguez terminasse no
Minho e nas serras de Tmz-os-Montes ou em
Orense e Toledo, comtanto que permanecesse en-
globado no seu reino; para D. Thereza a consagi*a-
ção oífícial de um dominio directo mais vasto repre-
sentava um grande passo no sentido da sua posse
definitiva; da posse viria a soberania, quando se
oíFerecesse ensejo propicio.
Mas D. Urraca, longe de conjurar o perigo, o
fora directamente provocar, e foi esse o ponto de
partida da sua ruina.
A prisHo do bispo da Compostella irritara na Reacçso »• Oâi-
Galliza os ânimos contra a rainha; do castello de
Orcillon fora o bispo passado para o de Cira;
Gelmires tinha partidários poderosos, e fortes liga-
ções com os que seguiam a parciaHdade de AfFonso
Raymundes, o qual, embora apparentemente ligado
á mãe, não desistia, ou não desistiam por elle,
das suas pretenções e direitos. Compostella excita-
va-se; n^ella e seus arredores se reuniam os agita-
dores,
D. Urraca dirigiu-se á Compostella na idéa
talvez de apasiguar os ânimos ou de se impor. Os
cónegos, em signal de lucto, vestiram paramentos
negros; o legado do Papa, cardeal Boso, conspi-
rava também, e queria tomar uma attitude mais
decisiva.
Via a rainha erguer-se contra ella a opinião; seu Movimento re-
próprio filho e os barões que o cercavam, retira-
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356
ram-se pai a o norte, para alem do Tambre, a duas
léguas de Compostella, e a rainha viu-se obrigada
a dar a liberdade a Gelmires, conservando porém
em seu poder os eastellos que lhe pertenciam, ape-
sar d'elle, segundo a Historia Compostellana, os
ter reclamado logo, apenas saiu da prisão e se di-
rigiu á sé, onde foi recebido procis^sionalmente pelo
cabido, e onde se achava também ás occultas a
rainha.
Gelmires, já sem rebuço e a pretexto de se lhe
nao restituírem os eastellos, tomava a direcção do
movimento; agora eram todos abertamente contra
a rainha, que pelas suas disscnções com o marido,
pela sua opposição aos direitos do filho que queria
sentar-se no throno do pae, pelos seus amores com
o conde Pedro de Lara, e pelo seu espirito irre-
quieto e enredador, trazia por todos os lados irri-
tados os ânimos contra si. Travou-se a guerra,
pr,z do Monte que só tcrmiuou pelo tratado de paz de Monte
Sacro de 21 de dezembro de 1121.
D.Thoroíaaban- D. Thcrcza dc Portugal nao era tao ingénua que
se conservasse ao lado de 1). Urraca, agora que a
estrella desta abertamente declinava no ceu onde
brilhara com tao diversa luz; e alem d'isso as suas
verdadeiras ligações tinham sido sempre com Gel-
mires e os adversários da irmã. O approximar-
se doesta tinha sido um expediente de occasiSo.
Daria força ao grande partido de AíFonso Raymun-
des que assim, elevado ao* throno de seu pae, res-
peitaria os dominios e senhorios da tia, e a deixa-
ria viver em paz, com as suas novas terras c novos
amores. Alem de que, bastaria o facto de Fernando
Peres de Trava, o antigo alferes-mór do bispo de
Compostella, imperar no espirito da condessa, para
se concluir desde logo que o caminho por ella
seguido seria o mesmo que o do conde I). Pe-
dro Froylaz, pae de Fernando, e de outros ba-
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357
roes da GalUza, partidarioa do joveii rei. Affoií-
8o VII reunia em volta de si todos os elementos
valiosos do seu reino; podia bem dizer que repre-
sentava a opinião da nação, se esta palavra tivesse
cabimento n'esta epocha.
Itealmente D. Tliereza, nos primeiros annos ap«z om Portn-
seguir, isto é, de fins de 1121 a primavera de ***"
1127, gosou tranquillamente a posse do seu con-
dado.
l)'este interregno de paz se serviu para cuidar
da organisação interna do condado. Em 1125
mandou povoar e restaurar Soure, que em 1117
fora destruida pelos almorávidas, nomeando capi-
tão d'essa cidade e castello a Gonçalo Gonçalves
que adiante veremos distinguir-se em mais de uma
occasiào; e a igreja foi reediticada por mandado do
bispo de Coimbra, D. Gonçalo. Anteriormente
fora já reediticada e restaurada Santa Eulália,
sendo entregue em novembro de 1122, juncta-
mente com Soure, ao conde D. Fernando Peres
de Trava*. Soure foi depois dada á Ordem dos
Templários em troca do castello de Coja, sobre o
Alva, que, cedido á condessa, esta doou ao bispo de
Coimbra.
Os almorávidas continuavam em lucta com o rei
de Aragão; a irmã mantinha os pactos que as
duas haviam firmado.
> «E porque da entrada dos Mouros estavâo ainda destruídas alguas
fortAlezae, tratou de se restaurarem, fazendo entrcj^a delias aos ca-
pitães de mais confiança. Kra pessoa principalissima no Reyno o
Còde Dom Fernando, e muy favorecido da Rainha, a este fidalgo
fez entrega do Castello de Santa Olaya ja reedificado e cometeo a
restauração de Soure. Ha disto memoria em o livro da Sé de Coim-
bra, como ja em diíFerente lugar temos mostrado. Fortaleceu o con<Ie
a Santa Olaya, lhe pos grosso presidio de soldados; a povoação de
Soure ou por se nâo obrigar a tanto, ou por o tempo nAo dar então
lugar, se reservou para outra occasiâo.» Fr. C. Brandão. Mottmxfi.
Lusit.f parte iii, liv. ix, cap. i e xi. Se^ue-se um outro trecho do
livro da Sé do Coimbra onde se trata da reediiicação do castello,
igreja e povoação de Soure.
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358
E verdade que á proporção que seu filho Affonso
Henriques ia crescendo em idade, mais avoluma-
prodroraos.iiTe.vam cni volta d'elle os elementos que um dia ha-
viam de affastar do poder D. Tliereza e o seu favo-
rito, causa principal do descontentamento e dis-
córdias que lavravam dentro do nascente estado.
Se algumas inquietações podia trazer a D. The-
reza essa curta preparação da tempestade que a
havia de vencer, não eram ellas de natureza a
crear-lhe receios sérios, nem os factos que vinhara
á suppuração taes que ella os não podesse domi-
nar promptamente.
o infante Affoii- O infautc cra ainda menino; os que por elle tra-
go }ífnriniif>s. in <v . •! .1
balhavam nao encontravam amda um ponto de
apoio sufficiente; mas tudo se ia dispondo n'esse
sentido.
A exemplo do que no anno anterior se passara
com Affonso Raymundes, que em Compostella se
Arma..« cavai- amiára cavallciro, em dia de Pentecostes, conforme
loiro om Zamo- ■% • t tt i • a /*• tt
ia. era uso dos reis de Uespanha, assim Affonso Hen-
riques se armara também cavalleiro na cathedral
de Zamora ainda incorporada no condado portu-
guez, em 1125, cingindo o seu agigantado corpo
com a loriga, e vestindo as armas que tomara
de sobre o altar, consoante era devido á sua cate-
goria* e como affirmação da sua independência.
^ «Em iicLxiiT. Infans inelytus Alfonsus Henricus Comitís filias
actatis nnno xiii in ecclezia Zamorensi Cathedrali, ab aUari Salva-
toris ípsc sibi manu própria sumpsit militaria ai*ma, ut mos est Re-
^um : induit se Lorica, 8Ícut gigas, qui magnus erat corpore, siini-
]Í8 factos est Leoni in facinoribus suis, el sicut catulus Leonis tn-
giens in venatione». Chron. Goth. — Variante: — «habens etatis an-
nos fere quntordecim apud sedem Zamoreuscm, ab alta rio Santi Sal-
vatoris ipse sibi manu própria sumpsit militaria arma ab altarí} et
ibidem ante altari inductus est et accinctus mtlitaribus armis, aicat
moris est Regibus facere in die sancto Pentecostes. Induit vero se
loricam sicut Gygaa, qui magnus erat corpore et succinxit se arma
bellica sua; in preliis similis fa/;tus est leoni- in operibus suis, et
sicut catulus leonis rugens in venatione». — PorUig, Mon, — JSí-
rríp/. Vol. I, pag. 11.
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859
Devia orçar então pelos quinze annos, idade mí-
nima em que se podia realizar essa cerimonia im-
portante, que representava, n'e8ses tempos de
cavallaria, o verdadeiro inicio da vida, è, na si-
tuação especial em que se encontrava o infante,
queria dizer que elle se preparava para a grande
lucta, não só das armas, mas do direito contra sua
niSe e contra o seu valido, cuja situação na corte
altamente escandalisava todos. Acompanhado dos
seus ricos homens e barões, revestidos das suas
armas, em luzido e bellico cortejo, a nenhum
deu a honra de lhe impor as insignias, nem de
nenhum a podia receber. O tinir das armas com
que cingira a máscula estatura foi como um signa]
de guerra.
Não era uma situação nova n'es8es tempos, nem Disconu*..
nos que lhe precedeivxm ou succederam : luna rai-
nha ainda moça, com um filho menor que ha de vir
a ser o soberano, mas cujo advento ella procura
adiar, substituindo o seu poder pelo de um favorito
que toma o papel de chefe da nação.
Não é um caso sporadico na historia das rai-
nhas ; e as duas filhas de Ximena Muniones, uma
om Castella outra em Portugal, seguiihn a mesma
esteira da deshonestidade, e provocavam as mesmas
reacções na opinião.
Parece que vinlia de longe a conspiração contra con.piMçío.
o papel que no nascente estado e junto de D. The-
reza representava Fernando Peres de Trava, o
qual até se apresentava como seu marido * ; Hercu-
lano quer filiar n'esse movimento a prisão do me-
tropolita de Braga, D. Paio, em 1122. Voltava de Antecedentes.
Zamora o arcebispo D. Paio quando foi preso;
1 C/arta de fundaçAo do mosteiro de Monte-Hamo em 1124.
Ycpes Coron, Geu. de S. Ben. T. 7.'^ App. escrit. 34. Herculano:
Hisf, de PorLj tom. i, nota xiv.
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360
D. Tlicreza que em tanlos pontos tinha a sua vida
semelhante á da irmà, quiz ter também em seus
annnes imi alto prelado prisioneiio, por conspi-
rar c tiair. Foi necessária a intervenção do papa
e a ameaça de excommimhao para D. Thereza lhe
dar a liberdade mezes depois ^ Era D. Paio irmão
de Gonçalo Mendes o Lidador^ e, portanto, da tío-
bre familia dos Maias de Riba-Douro, cuja influen-
cia na enthronisaçao de Affonso Henriques e na
independência de Portugal ficou assignalada na his-
toria. Era natural que já então fosse suspeito de
parcialidade a favor do infimte.
MoriedoD. Ur Em uiarço de 1126 morria D. Urraca em Sal -
«k.Tffonlò Vil! dana, e Affonso VII, que desde 1122 «adquirira
verdadeira supremacia nos estados de sua niile»,
foi coroado em Leão; a sua tia, a condeesa e rainha
de Portugal, respeitara os pactos realisados por
sua mae, mas sentindo-se agora livre de todas as
peias, e sem o dever de* acceitar situações que
por elle nao haviam sido creadas, pensou em reha-
ver a integridade do império de seu pae, guardou,
porén), a realisaçao doesse intento para momento
opportuno; desde logo nao era possível, porque
tinha a combater dentro do reino rebeldias insof-
fridas, e, alem das fronteiras, as ambições do Kei
de Aragão, seu padrasto, que ainda tinha castellos
á sua voz.
r«H« com D. Veiu o rei a Zamora e ali formou um pacto de
amisade por um detemiinado periodo, — iisqve ml
desttnatuni tempus — , com D. Thereza e com o
conde Fernando Peres de Trava; assegurada a
tranquillidade na sua fronteira oriental, e vencidas
as difficuldades internas, o rei pensaria mais tarde
í BuUa íle junho do- 1122 enviada pelo Papa ao arcebispo (icl-
mivc».
Thercsa.
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3G1
na fronteira do occidente, onde, por emqiianto lhe
convinha a paz.
Ainda em vida de sua m^e Affonso Raymundes, prcpaiavaopara
com dezanove annos de idade, se armara cavalleirp
(1124), colhendo do altar mór da catliedral de
Compostella, por suas próprias niaos, as armas
com que iniciou a sua carreira militar, no propó-
sito talvez de as estreiar ainda esse anuo, em que
esteve enxinentc um conflicto entre os dois, tendo-se
reunido um concilio para regular os tcnnos eui
que se havia de asscnhu' a concórdia e ordenar a
justi(;a; a esse concilio, onde dominava a influen-
cia de Gelmires, ligado com o Papa Callixto II,
assistiram os bispos seus suífraganeos, de Orense,
Tuy, Coimbra, í^orto, Mondonedo e Ávila com
seus abbades, faltando por niotivo justificado os de
liraga e Astorga.
Com a morte da rainha póJe dizer-se que todo unifitavâo du
o reino se submetteu á auctoridade de Affonso VII,
comtudo algum tempo durou a resistência de al-
guns dos antigos partidários de D. Urraca, e a de
alguns castellos que permaneceram em posse de
aragoneses. Unificar e sujeitar nas suas màos todas
as forças do reino, foi o primeiro cuidado de quem
por três vezes já fora coroado Rei da Galliza, e
agora, cingindo também as coroas de Leão e Cas-
tella; reunia sob o seu sceptro o poderoso es-
tado de seu avô Affonso VI. A situação de Por-
tugal tinha também de ser resolvida para a inte-
gração d'esse estado; mas a pacificação interna c
a extirpação dos vestigios do dominio ou ingerên-
cia de aiagoneses na administração do reino eram
assumptos que mereciam preferencia em seus cui-
dados.
Entre os agitadores do reino estavam o antigo fa- o« roboidc
vorito de D. Urraca, Pedro Gonçalves de Lara e
seu irmão Rodrigo, que se apoderaram de Palencia.
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362
Tendo reduzido outros castellos de menor impor-
tância, o rei assaltou e tomou essa cidade*. Dois
annos depois renovamm-se as rebelliões e eram
repreniidos de novo pelo rei e por Gelmires a quem
fora dado o governo da Galliza.
Nogociaçõca de Entrc Affouso VII de Castella e Affonso I de
fc*ía*?A?»gíi! Aragão seu padrasto houve negociações demora-
das para a restituição dos castellos, mas foi tudo
baldado. Os dois soberanos mutuamente invadiram
Hottindadea. OS tcrritorios do adversário; o aragonez era o pri-
meiro a realizar a invasSo, por Rioja, pelo valle de
Tâmara, quatro léguas de Falência; o castelhano
entrou também pelas terras de Aragão e tomou
Castro-jeriz ; as duas fortes hostes encontraram-se
no valle de Tâmara.
vaniagnuí obiL Parccc quc nas hostilidades, ou n'um provável
sTuez^ *'*' combate, — do qual aliás nao rezam as chronicas,
que só se referem á hesitação do aragonez em ata-
car, o que nao é admissivel, e A traição do conde
de Lara, inimigo do rei castelhano, que indo na
dianteira, recusou o combate — , melhores vanta-
gens obteve o aragonez; porque tendo intervindo
com os seus bons officios alguns prelados e homens
importantes, tanto de um como do outro lado, se
assentaram as pazes, com a condição de ficar
D. Affonso de Aragão com o território comprehen-
dido entre a villa de Villorado e a cidade de Cala-
horra, ficando^ n'elle incorpoi:adas as províncias de
Guipiizcoa e Alava.
Pacto de Tama- Os cscriptores hcspanhocs querem attribuir este
pacto de Tâmara, ao desejo, por parte de AflFonso
de Castella, «de não faltar á promessa de ser amigo
do aragonez e de o ter no logar de seu pae»*; mas
nen) o aragonez merecia essas generosidades, pelos
* B. Viceto. Hútt. de QalUciaj tom. v, pag. 77.
2 D. Manuel Colmeiro. Reys Crietiaiios, cap. iii.
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363
seus antecedentes, nem é natural que acabasse pela
condescendência quem começara pela guerra e pela
invasão; o que leva, portanto, a crer que a situa-
ção das armas era melhor para o aragoiiez, cousa
que realmente nao seria para admirar, dadas as
suas altas qualidades de guerreiro, e ao seu «or-
gulho e confianza de conquistador avesado a las
lides y a las vietorias»*. Por isso o appellidaram
de Batalhador. Ha ainda a notar que não foram
pelo aragonez entregues n^essa occasiao as fortale-
zas que em Castelhi lhe obedeciam, mas sim dois
aunos depois, quando novamente invadiu este paiz,
cercando Moron, e generosamente accedeu ás pro-
postas de paz feitas pelo enteado.
D' este periodo em que as attençoes andavam d. There»» or-
distrahidas do que se passava dentro do condado mêíc ô*"Jôn-
portuguez se aproveitou D. Thereza para tratar da
organisação militar do seu estado, e para fortificar
a fronteira, erguendo castellos novos e presidiando
os da fronteira do Minho. Alem d'isso D. Tliereza
«tinha por si nao só os barões de Portugal, mas
também Fernando Peres, seu amante, e os caval-
leiros de Galliza que á sombra d'elle tinham vindo
residir em Portugal; não lhe faltavam, também,
homens de armas e riquezas para sustentar a
guerra; orgulhosa do seu poder, D. Thereza, que
durante o governo de D. Urraca evitara o decla-
rar-se de todo independente, constrangida, talvez,
agora pelas pretensões mais precisas de Âffonso VII,
recusava formalmente cumprir com as obrigações
nascidas da tenencia que, conforme o tratado de ,
1121 e attenta a origem primitiva dos domínios
de que era senhora, o rei leonês entendia que ella
exercitava»*.
* Lafucnte. Ilifit Gen. de Eu/)., Jiv. ii, cap. iv.
2 Herculano. HisL de Port., tom. i, liv. i.
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3()4
AfTon^oviipôc Serviu isto de pretexto ou de motivo para que
80 cm mçAu. ^g-Q^g^ yH, alliviado agora das preoccupações
pelo lado de Aragiío, procurasse liquidar a questão
de Portugal, Tinha conseguido dominar o movi-
mento insurreccional de CJalliza, onde até mandara
arrazar fortalezas, como a de Grallaiía (Grallieira)
e Raneta. Pesava-llie o estarem ainda sob o domí-
nio directo da condessa de Portugal os territórios
de Orense e Tuy e outros que haviam vindo do
pacto com sua mae; e mesmo quanto á situa<;ào
d'esse condado dentro do seu reino, necessário se
tornava esch\recel-a; as rasões que o haviam levado
a temporisar, a adiar, a procurar para isso as pa-
zes e o accordo, já nao subsistiam.
iiivfl.ic i»ortu- Com um forte exercito, reunido em Galliza, de
***'' que fazia parte o bispo Gelmires com todo o seu
poder, entrou pela primavera de 1127 nas comar-
cas de Tuy e Orense, chamou á sua directa, obe-
diência os castellos que n'ellas tinham voz por
D. Thereza; ali reforçou as suas tropas, e, entrando
em Portugal, conseguiu no fim de seis semanas de
hostilidades e violências de toda a natureza, que a
infanta reconhecesse a sua auctorídade suprema c
se declarasse sua vassalla. D. Affonso VII retirou
para Compostelfa; o condado portuguez fora nova-
mente reduzido aos seus limites para aquém do Mi-
nho, e serras dos Tras-os-Montes, tendo Leiria como
sentinella vigilante na incerta fronteira do sul.
Cerco deGuima- N'esta iuvasão se poz um apertado cerco a Gui-
marães, onde estava a Condessa e o filho; Hercu-
lano coUoca n'essa data o tocante episodio de Egas
Moniz.
lurervençâo de Era Egas Moniz um rico homem conceituado e
hgaaMouiz. pj.Q|jQ^ j^j^ ^^ infautc D. Affonso, amante da sua
terra, zeloso pelos interesses do que era seu pupillo
e de tudo que havia de constituir o seu futuro
dominio.
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365
As terras de Entre Douro e Minho tinham sido
assoladas; as calamidades, se se prolongassem, re-
presentariam a ruina do povo; um rigoroso assedio
cingia Guimarães n'um cinto de ferro e fogo; era
ella defendida, é certo, por quanto havia de nobre
e de esforçado nos dominios de D. Thereza e ali
tinham o principal papel os partidários mais acér-
rimos e valiosos de Affonso Henriques, os senhores
da Maia. Diante do invasor as discórdias que iam
já accesas entre mãe e filho, e os seus partidários
reciprocamente, tinham tido um momento de tré-
gua. Continuar o cerco era collocar todos n'uma
situação violenta. Prolongar essa situação, na me-
lhor das hypotheses, isto é, na de se lograr resis-
tir, seria uma ruína! O poder de Affonso Vil era
grande; a sua expedição não tinha por fim propria-
mente vexar e opprimir sua tia, com quem come-
çara o seu reinado por fixar um pacto de amisade
e de concórdia; o principal objectivo d'ella era
rehaver os castellos de alem-Douro e os mais com
que o condado portuguez se tinha engrandecido, e
affirmai' n'elle a sua soberania. Esses castellos esta-
vam senhoreados; a vassalagem de Portugal, que
tantas vezes se acceitara para outras tantas se des-
fazer, era moeda de pouco preço desde que se não
negociasse com ella de boa fé; ou então, — e seria
esse o caso de Egas Moniz, que na tradição nos
apparece como homem integro e dè boa intenção — ,
significaria para muitos uma homenagem devida
ao soberano que na sua coroa real, fundida de
muitas coroas, queria reivindicar toda a herança
que lhe fora legada por seu avô Affonso VI. E
quem sabe se o arcebispo Gelmires, que sempre se
mostrara affecto a D. Thereza, teria realmente
influido no animo de Affonso VII para acceitar a
paz, como já no tempo de D. Urraca contribuirá
para libertar Portugal dos horrores de uma inva-
ss
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3G6
sSo? Pelo menos gabam-se d' isso os panegyristas
do astuto prelado *. Também teria tido influencia
no caso o conde Fernando Peres, aconselhando
D. Thereza á obediência ao sobrinho, e seria esse
o motivo das boas graças em que passou a estar
com Affonso VII em nomedo qual o vemos depois
combatendo Portugal e o partido portuguez.
N'esta ordem de idéas, e no intuito principal de
aflfastar os terríveis males da guerra, teria Egas
Moniz pensado no meio de fazer levantar o cerco
de Guimarães.
Diriffeseacar- Dirigindo-se aos arraíacs de Affonso VII ali lhe
raiae* de Af- /> • . j ^' «^ J
fonsovii. fana ver a sem vantagem da continuação do asse-
dio. O castello estava bem provido de homens, de
armas e mantimentos; não era fácil empreza o do-
minal-o, em vista da resistência dos seus defenso-
res, constituidos pela flor da nobreza de Portugal
e pelos honrados burguezes vimaranenses, anima-
dos dos mais guerreiros sentimentos, como pelo
foral, que no anno seguinte lhes foi confirmado,
ficou exposto aos vindouros *.
Mas, admittindo mesmo que a cidade se ren-
desse, o que luciava com isso o rei? Os castellos
da região gallaica que elle pretendia chamar á sua
obediência, já não tinham voz pela condessa de
Portugal, e esse era, como vimos, o principal fim
politico da expedição. Zamora, onde dois annos an-
tes Afi^onso Henriques se armara cavalleiro (prova
de que estava ainda incorporada nos seus dominios),
seguira a mesma sorte, visto que não mais a en-
* « . . . eí ipee concorriam inter regem et reginam suo consilio atque
eolertia reformaint». Hist. Comp., liv. ii, cap. lxzxv, fl. i.
2 «Nos fecistis honorem et cahvni siijyer me, et jecisti mihi servi-
titim honvm et fidele ... et de illas hereditaies de illos hnrg^icses qui
mecinn sttstimtervnt male et pena in Vimaranes nunquam donentfos-
sadeiras.n Foral dado pelo infante D. Affonso Henriques. Õkal.maii
IIGG (27 abril 1128).
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368
reza, o pendão altivo em volta do qual se conti-
nuava a fazer a integração da alma portugueza.
Aflfonao Henri- Não estcvc, portanto, Aflfònso Henriques pelos
peiu o ajnate geuerosos ajustcs uo seu aio, e aproveitou o pri-
meiro ensejo para manifestar que não acceitavaa
soberania do primo.
Mas nâo consente o peito
Do moço illustre a outrem ser sujeito K
lyàhi a resolução de Egas Moniz de ir á corte
de Leão, humildemente trajado, descalços os pés,
onde mal iria já a espora de cavalleiro, e com um
baraço ao pescoço, em attitude de réu confesso,
em signal do castigo que merecia, e ao qual elle,
com toda a sua familia, se ia expontaneamente offe-
recer e entregar, confessando de joelhos o seu erro,
a sua fé traida, a sua esperança desfeita.
Vêl-o cá vae co'os filhos a entregar-se
A corda ao collo, nú de seda e panno^.
E com seus filhos e mulher se parte
A alevantar com elles a fiança ;
Descalços e despidos, de tal arte,
Que mais move a piedade que a vingança 3.
Era unicamente o appellar para as formalidades
da epocha, a fim de realisar a honra da sua palavra
e provar a lizura do seu acto e das suas intenções?
Era uma imitação do que poucos annos antes se
passara com o conde Pêro Ansures na corte de
Aragão, nas guerras de Afibnso I com D. Urraca
sua mulher?^ Fosse como fosse, acto era este de
^ Camões. Luziadas. Cant. iii.
* Idem. Cant. viii.
2 Idem. Cant. iii.
* «E foy quando elRey Dom Afibnso de Aragão fazia guerra em
Castella contra sua mulher a Eainha Dona Urraca, o Conde D. Pe-
ransures, não obstãte que avia feyto omenagens a el Rey de alguas
fortalezas, as entregou depoys á Kaynha. £ ainda que a acção pa-
recia justificada, por ser aquella Princesa Rainha proprietária, a
que seus vassalos devião obediência, cuydadoso depoys da fé que a
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370
prestigio e força real, estavam do lado de D. The-
reza, alem do seu valido (que dispunha de muitas
cidades e castellos, pois era cônsul ou conde em Por-
tugal e em Coimbra, alcaide mór de Santa Eulália
e Soure, como também alcaide mór em Galliza
do castello de Pharo), o seu irmão Bemiudo Peres
que governava em Vizeu, e que, começando, ao que
parece, por ter relações amorosas com D. Thereza *,
acabara por lhe casar com a filha D. Urraca ^e
muitos outros fidalgos gallegos, e também portu-
guezes. O maior numero d'estes, porém, era parti-
dário de D. Afibnso, e entre elles apparecem como
seus alUados, na carta de couto á diocese de Braga
de maio de 1128, que é ao mesmo tempo unia es-
pécie de pacto, o poderoso arcebispo d'aquella
cidade D. Paio Sueiro Mendes, o gordo (grossus).
seu irmão, Ermigio Moniz, senhor da terra de
Feira, que já na revolução do anno anterior se
manifestara contra D. Thereza e a favor do infante,
sendo o personagem mais influente ^ Sancho Nu-
nes, primeiro mando, ao que parece, de D. Sancha,
filha de D. Thereza e do conde D. Henrique*, e
Garcia Soares. N'esse pacto se compromette Af-
fonso Henriques a importantes doações e mercês
ao prelado bracharense — quando, ajudado por
^ Ilenri Schaeffer. Hist. de Port., epoc. I, liv. i, cap. ii.
2 «La condesa Dona Eva Perez de Trava fue hennaiia dcl
coude D. Feroan Perez de Trastuinara de G alicia, segundo marido
de la Keyna Dofia Teresa de Portugal, (sic) dei conde D. Bermudo
Perez de Trava, que caso con Dona Urraca, Infanta de Portugal,
hija de la misma Reyna Dona Teresa, y dei conde Don Enrique de
Borgona». Salazar y Castro. Ilist. de la Casa de Lara^ liv. u,
pag. 99.
3 A. Herculano. Hist. de Port, tom. i, nota xii.
4 D. Sancha parece que casou duas vezes. De Sancho Nunes dis
Herculano : «marido que era ou depois foi de D. Sancha, irmã do
infante»; é provável que fosse o primeiro marido, porque em 1145
fez D. Sancha e seu marido Fernão Mendes de Bragança, doação
rio seu castello de Langroiva á ordem do Templo. Vid. o doe* eo)
Viterbo. Elucidar io^ tom. ii, pag. 353.
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taneo.
372
lado era, como vimos também, da poderosa familia
dos senhores da Maia, partidários do infante.
Em outros documentos se encontram nomes de
muitos partidários decididos de AflFonso Henriques,
entre elles Egas Mendes, conde do districto de
Neyva, cujo castello, como o de Feira, de que era
senhor Ermigio Mendes, foi dos primeiros que se
declarou pelo infante. Guimarães, capital do estado,
seguira o mesmo partido.
Governo simui- Dcpois da rcvolução de 1127 apparece D. The-
reza ora congraçada com o filho, assignando juntos
os documentos officiaes, ora firmando-os simulta-
neamente, deixando ver que ella governava ao sul
do Douro, nas terras da antiga Lusitânia ou do
condado de Coimbra, e AflFonso Henriques sobre-
tudo ao norte doesse rio, no antigo condado por-
tugalense onde eram as terras e domínios dos seus
principaes partidários, os senhores da Maia.
Effeitosdainv». Essa rcbelião que já fortemente se manifestara
nos principios de 1 1 27, fora sustada pela invasão de
AflFonso VII de Castella, o que levou alguns escri-
ptores a suppor que o castelhano viera em auxilio
da tia, a oppor-se ás pretençoes do sobrinho con-
tra ella; mas, evidentemente, elle trabalhava era
seu próprio interesse, porquanto se contentou com
rehaver as terras da Galliza que sua mae cedera a
D. Thereza, com a sujeição d'esta á sua soberania,
e com o acto de submissão de Egas Moniz, pren-
dendo a acção futura de seu sobrinho. Nenhum
documento prova que, ao par d'estes factos, se
tivesse dado qualquer intervenção do rei nos negó-
cios internos do condado a favor da tia; alem de
que a pretenção de AflEbnso Henriques era idêntica
á que AflFonso VII sustentara contra sua mãe.
A rebeiiiio re- Lcvautado O ccrco de Guimarães, livres os por-
tuguezes da mvasão que bem se podia já chamar
estrangeira, porque o titulo de indignos forasteiros,
■ao.
crudeice.
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374
vencesse a mae ou o filho, ambos seus vassallos,
porquanto nao suspeitava que deixasse de ser
satisfeito o compromisso solemne de Egas Moniz.
Mesmo no seu foro intimo elle devia ser mais pelo
herdeiro do senhorio de um districto, que pugnava
pelos seus direitos, do que por quem lhes usurpava
j em ^proveito de estranhos.
Marcha íobre As tropas que vinham com Thereza juntaram-se
Uiitmarics. /• i i , ii
OS que loram das terras portuguezas que lhe eram
affectas, e marcharam sobre Guimarães; como se
fez essa juncção, principalmente das tropas da re-
gião ao sul do Douro, — que era natural tomassem
parte no conflicto e também na derrota, pois de
outro modo não se explicava que permanecessem
inertes, — nao o dizem os documentos. Como quando
seu marido combatia em Leão e ella surgia nos
arraiaes bellicosos a insuflar-lhe novas energias, ou
como quando dentro dos muros de Coimbra pes-
soalmente animava os que resistiam aos embates
dos almorávidas, eil-a agora á frente das hostes
colligadas de gallegos e portuguezes, que vinham
luctar pelo que ella reputava ser o seu direito e o
do seu amante.
Batalha de s. Saiu-lhc ao cncoutro Affonso Henriques com o
Mamede. • . • • i i i /^ ■ •«•
seu exercito, e nas proximidades de Uuimaraes,
nos campos de S. Mamede, se travou a memorável
batalha na qual se lançou a primeira pedra nos
fundamentos da monarchia portugueza.
Também é imposivel, por falta de informações,
dizer como teria sido esse encontro; devia, porém,
ter o typo dos que se travavam n'essa epocha,
entre besteiros, frecheiros e cayalleiros de armas,
de um e do outro lado, em embates violentos de
mesnadas ligeiras ou de pesados esquadrões, onde
a tempera das armas e o vigor dos braços eram os
factores principaes da victoria. De como seriam
n'este período da Edade Media em Portugal a or-
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376
coroar do melhor êxito as suas aspirações á justiça
e á liberdade ! Outra coisa seria.
Altitude de Af. Arrojaudo do seu estado os estrangeiros, e en-
que?. *""* cerrando no castello de Lanhoso sua mãe (segundo
reza a tradição, que os docuínentos aliás não con-
firmam, havendo talvez equivoco com a prisão an-
terior da condessa por ordem da irmã), ou limitan-
do-se a Fazel-a acompanhar na expulsão a sorte
d'aquelle por quem se inimisara com os seus e se
perdera, depois de ser feita prisioneira e posta em
liberdade pelo filho, D. Affonso deu-se por satis-
feito ; generoso passo que contrasta com a cruesa dos
costumes n' esses tempos, mas que mostra quanto
no animo do infante preponderava apenas a neces-
sidade de affirraar o seu direito, pois se conside-
rava o legitimo representante dos sentimentos e
aspirações dos senhores que dominavam na região
cujo senhorio elle herdara de seu pae.
Desappareee da Nuuca uiais SC rcgista uos auuaes da historia
íSir ' ^'portugueza, a partir doesta data, o nome A^ for-
mosíssima infanta, como em documentos oflBciaes a
chamava seu marido, o conde D. Henrique; mas se
pelo seu temperamento, pelos efieitos mesmos da
sua formosura, pela influencia dos costumes licen-
ciosos da epocha, a sua vida como mulher lhe acar-
retou a ella e ao seu estado desgostos e amarguras,
ao par de muitos gosos Íntimos que o vicio e a
licença também logram conceder, a verdade é que,
como chefe doesse estado, como representante das
aspirações que n'elle buscavam a independência e
a autonomia, como fundadora dos primeiros alicer-
ces do edificio de uma nacionalidade que se man-
tém de pé ha oito séculos, é D. Thereza credora da
consideração e apreço dos portuguezes.
AsMobr*. Producto perfeito do seu meio, tendo crystali-
sado em si maior somma dos elementos em sus-
pensão por ser maior a superficie em que, pela sua
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377
posição, esse meio actuava; mixto de grandes qua-
lidades e de grandes defeitos, mas entre os quaes,
como politica, sobrelevavam as primeiras; dotada
de uma grande energia de vontade e de um grande
talento de intriga, ella soubera ser, conforme lhe
convinha, um instrumento ora de cohesão ora de
dissolução. O nascente Portugal deveu-lhe não só a
afirmativa primeira da sua autonomia, mas o seu
engrandecimento territorial para o norte e nas-
cente, aspiração constante dos primeiros reis por-
tuguezes, que parecia querer integrar no territó-
rio do condado portugalense toda a região gallaica
do antigo império romano, ou todo o reino fundado
pelas armas suevas, e Tevar, por outro lado, até
perto de Toledo o seu dominio; deveu-lhe alem
d'Í8S0 o conter em respeito ao sul os mussulmanos
irriquietos.
Era D. Thereza uma mulher corajosa e guer-
reira, que pessoalmente assistiu a mais de um con-
flicto armado, prova de que, nem só as mulheres
germanas, nem só as mulheres árabes acompa-
nhavam os homens aos combates para lhes incu-
tir coragem e os fortalecer na lucta, mas também as
portuguezas souber^^m inscrever, desde o começo
da historia do paiz, o seu nome illustre nas laminas
de oiro que perpetuam a dedicação e a coragem,
como sendo dos esmaltes mais bellos da alma hu-
mana.
Ao par de muitos desgostos que lhe teriam acar-
retado as questões de ordem complexa em que se
agitou a sua existência, grandes consolos esta-
riam reservados para o seu coração de mulher e de
rainha. Como responsável dos destinos de um nas-
cente estado teve o orgulho de ver que fizera mais
pela affirmação dos seus direitos do que o próprio
seu marido, aliás campeão denodado do mesmo
ideal; como mulher foi amada, deveras amada,
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cuUno.
378
pelo menos pelos dois homens aos quaes ligara a
sua existência: o conde D. Henrique, que em ins-
trumentos públicos se comprasia em manifestar o
seu desvanecimento pela sua belleza, tendo sempre
provado o poder que ella n'elle exercia, e o conde
D. Fernando Peres, o qual, mesmo depois de ella
morta, e em documentos públicos também, deixou
aftirmado o seu culto pela memoria de quem tanto
o quizera engrandecer, e que por tanto o amar se
perdera.
Mas esse mesmo seu erro, que o amor porque
foi sincero absolve, bem serviu os destinos da na-
cionalidade portugueza, fazendo com que em volta
do infante 1). Henrique se congregassem os ele-
mentos que a haviam de revigorar, logo á nas-
cença.
opiniso do Her. Fallaudo dc D. Tliereza, diz com justiça Hercu-
lano: «a bastarda de Affonso VI era pela astúcia e
animo viril digna consorte do ousado e emprehen-
dedor borgonhez. A leoa defendeu o antro onde
não se ouvia já o rugido do seu fero senhor, com a
mesma energia e esforço de que elle dera repetidos
exemplos. Durante quinze annos luctoii para con-
servar intacta a independência da terra- que lhe
chamava rainha, e quando o filho lhe arrancou da
mao a herança paterna, só havia um anno que a
altiva dona curvara a cervís ante a fortuna de seu
sobrinho Affonso Eaimundes, o joven imperador
de LeSo e Castella. Era tarde. Portugal não devia
tornar a ser uma província leoneza» *.
Opinião de Nem todos os escriptores se coUocam n'este
ponto de vista de quem sabe destnnçar o bem do
mal, e transportar-se, para apreciar os homens
e os factos, ao meio a que elles pertencem; assim
* A. Herculano. O Boho, i.
HchaefTer.
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380
meza de caracter e astuciosa prudência. No intento
de desenvolver as forças do seu pequeno estado#e
de o separar inteiramente da monarchia leonexa,
foi invariável; porém, nas manifestações exteriores
doeste nobre pensamento, regulou-se cautelosa-
mente pelas circumstancias accidentaes da penín-
sula »*.
opiniio de Vi- No paiz vizinho um escriptor que se dedicou ao
estudo da historia da Galliza e que não podia dei-
xar de a relacionar n'esta epocha com a historia do
Portugal nascente, diz de D. Thereza: «Teem
dissertado largamente sobre o seu consorcio cora
Fernando Peres, que nada auctorisa a admittir
visto que este era casado com Sancha Gonzalez de
Lara; e emquanto ao valor histórico do seu go-
verno é completamente depreciado, quando aliás
nos quatorze annos da sua viuvez, os seus actos de-
monstram bem a tenacidade e dextreza com que
procurava desenvolver e realisar o pensamento da
independência de Portugal que o conde Henrique
lhe ligara. Cedendo á força das circumstancias,
nao duvidava reconhecer a supremacia da coroa de
Hespanha, para obter a paz, quando d'ella carecia,
salvo o recusar-se á obediência quando entendia
poder resistir. Associando-se habilmente aos ban-
dos politicos que despedaçavam a monarchia hes-
panhola, Thereza ia creando no meio d'ella, para
ella e para os seus, uma pátria. Apesar das inva-
sões de christãos e de mouros, e das devastações e
males causados por uns e outros nos territórios
dos seus estados, estes cresciam em população, em
riquezas e em força militar: viris ^ armis, afqiie
opihus potens ^. Pelas armas e pela politica augmen-
* Â Fundação da Monarchia Portuguesa. Narração anti-iberica,
por A. A. Teixeira de Vascoucellos, pag. 73. Lisboa.
2 Hisf. Cospost., liv. 11. cap. lxxxv.
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381
tou a extensão do seu senhorio de Portugal ao
oriente e ao norte, conservando ao sul a linha de
fronteiras que seu marido lhe deixara traçada» *•
São palavras de justiça.
A historia deve estudar os homens como o re- como se deve
sultado do seu meio; deve considerar os factos «ude iiutonca.
não como consequência unicamente da vontade, do
capricho dos homens, mas como productos do or-
ganismo individual actuado e modificado pelo or-
ganismo social, o qual, pela sua vez, recebe a ac-
ção modificadora do meio em que se desenvolve.
«Somos obrigados a conceber o homem histórico,
diz Lacombe, como o homem geral, aflfectado por
um conjuncto particular de ciroumstancias ou, se
querem, por um meio especial. . . ; os homens dos
diversos tempos vera submetter um mesmo fundo
de natureza ao império de meios diversos»^.
O homem, com a irreductibilidade dos seus ins-
tinctos, embora mais ou menos modificados nos
seus effeitos, e das suas paixões, embora mais ou
menos attenuadas nos seus impulsos, conserva-se
no fundo o mesmo atra vez do tempo e do espaço;
é uma verdade histórica incontestável, isto é, «uma
realidade que se apresenta em diversos tempos e
logares com uma connexão demonstrada pelas cau-
sas que a produziram». Evidentemente, nem no seu
conteúdo moral nem na sua parte formal o homem
de hoje é o mesmo que o homem do século xii.
No fundo, pouca differença se pôde encontrar, por
exemplo, quanto aos seus instinctos de ferocidade
e cruesa, entre o homem antigo e o allemão, o russo,
o francez, que na ultima intervenção das potencias
na China, se distrahiam, segundo os próprios de-
poimentos, a atirar aos chinezes indefezos nos cam-
í Viceto. Hist de la Gallicia, tom. v.
2 P. Lacombe. De VHisU comidtrée comme acience, cap. vii.
24
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pos, com o mesmo prazer com que atiravam aos
gansos e patos, ou a deitar-lhes abaixo as casas fa-
zendo-lhes cair as paredes em cima, por brinca-
deira, ou a destruir-lhes os telhados pai*a se arro-
jarem sobre a cabeça dos desgraçados, e que até
aos pobres cypaios do exercito inglez faziam espe-
ras, como a coelhos, para lhes atirar ás pernas, e
os despojar de sapatos ^ Entre estes civilisados de
agora e o homem medievo que se comprasia em
mutilar os seus semelhantes, em o maltratar e o
opprimir, pelo mesmo principio da inferioridade
social, é pequena realmente a differença. Mas, por
sobre esse fundo irreductivel, que enorme trans-
formação se tem produzido no modo de ser da hu-
manidade culta, pela influencia das circumstancias
que se vão modificando com o tempo?
Não se pôde julgar uma individualidade da
Edade Media com o critério dos nossos dias, em
que as idéas, os sentimentos, as relações sociaes,
o conteúdo moral, soffreram uma modificação pro-
funda. As opiniões, os gostos, os actos dos homens
dependem das condições do meio social em que se
criam e desenvolvem. A historia não moralisa;
narra e explica os phenomenos sociaes, tanto
quanto a explicação cabe no conhecimento das
causas, próximas ou remotas, que deram origem a
esses phenomenos, e no critério applicado para
julgar dos effeitos.
Para o historiador não ha homens bons ou maus;
ha epochas melhores ou peiores, eflPeitos sociaes
nocivos ou benéficos que actuaram na marcha da
civilisação, isto é, no encadeamento fatal dos senti-
mentos e das idéas atravez do tempo e do espaço.
Os homens que n'e8se meio preponderam, com-
* Bemie dea Eevues,
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383
quanto entrem em muito com o seu caracter pes-
soal, não são mais do que o producto d'esse meio,
e ao mesmo tempo os instrumentos pelos quaes
este actua, tendo começado por actuar n^esses ho-
mens e por 08 formar.
Para a historia do Portugal nascente D. Thereza syntbeso de pa-
representa uma grande energia moral onde conver- ^rf^t ^' ^**^'
giram, no sentido do progresso das idéas e dos sen-
timentos, os impulsos de liberdade, de independên-
cia, de altivo orgulho regional que caracterisam
desde o principio os homens nados e creados no
torrão que já se podia chamar portuguez; na his-
toria social do seu tempo é uma de tantas mulhe-
res que pela sua posição e pelo seu temperamento
representam a synthese da rudeza, da licença dos
costumes e da violência e energia dos sentimentos
da sua epocha.
No altivo pórtico da nacionalidade portugueza
a sua figura destaca-se n'um alto relevo.
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DOCUMENTOS
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Doouinento I
(Pag. 267)
Del Rey Ramiro domde desçendeo a geerafom dos boos e nobres O-
daliyos de Casteiia e Portagall e dalguuns feitos qae elie e os
qae delie descenderam fezeram.
Ouue huum rrey em Leom de gramdes feitos a que
chamarom rrey Ramiro o segundo, e o porque lhe cha-
marom segundo foy porque ouue hi outro rrey Ramiro
que foy anfelle : e outro ouue hi rrey Ramiro o terceiro.
Este rrey Ramiro o segumdo desçemdeo da linha dereita
delrrey dom Affomsso o catoUico que cobrou a terra a
mouros depois que foy perdida por rrey Rodrigo como sse
mostra no titullo III dos rreys gentiis de Pérsia e dos em-
peradores de Roma parrafo VIL Rey Ramiro o segumdo
ounyo fallar da fermusura e bomdades de huuma moura
e em como era d'alto samgue e irmãa d'Álboazer Albo-
çadam, filhos de dom Çadam Cada bisneto de rrey Aboali,
o que comquereo a terra no tempo de rrey Rodrigo. Este
Alboazare Alboçadam era senhor de toda a terra dês Gaya
atá a Samtarem, e ouue muitas batalhas com christSaos e
estremadamente com este rrey Ramiro^ e rrey Ramiro
fez com elle gramdes amizades por cobrar aquella moura
que elle muito amaua. E fez emfimta que o amaua muyto,
e mamdoulhe dizer queo queria veer por se aver de conhe-
cer com elle por as amisades seerem mais firmes : e Al-
boazer Alboçadam mandoulhe dizer que lhe prazia dello e
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que fosse a Gaya e hi se veria com el. E rrey Kamiro
foisse lá em três gallees com fidalgos e pediolhe aquella
moura que lha desse e fallaya christaa e casaria com ella:
e Alboazer Alboçadam lhe rrespomdeo, «tu teens molher
e filhos delia e és christãao, como podes tu casar duas
vezes ?A e ell lhe disse que uerdade era, mais que elle era
tanto seu parente da rrainha dona Aldora sa molher que
a samta egreja os parteria. E Alboazer Alboçadam jurou-
lhe por sa ley de Mafomede que lha nom daria por todo
o rreyno que elle avia, ca a tiinha esposada com rrey de
Marrocos. Este rrey Ramiro trazia huum grande astrol-
logo que auia nome Aaman, e per suas artes tiroua huuma
noite donde estaua e leuoua aas galees que hi estauam
aprestes : e emtrou rrey Ramiro com a moura em huuma
galee, e a esto chegou Alboazer Alboçadam e alli foy a
contemda gramde antre elles, e despereçerom hi dos de
rrey Ramiro XXII dos boons que hi leuaua e da outra
companha muyta. E el leuou a moura a Minhor, depois a
Leom e bautizoua e pôslhe nome Artiga que queria tanto
dizer naquell tempo castigada e emsinada e comprida de
todoUos beens. Alboazer Alboçadam têuesse por mal vil-
tado desto c pemsou em como poderia vimgar tall desom-
rra : e ouuio fallar em como a rrainha dona Aldora molher de
rrey Ramiro estaua em Minhor, postou sas náaos e outras
velías o melhor que pode e mais emcuberto, e foy aaquell
logar de Minhor e emtrou a villa e filhou a rrainha dona
Aldora e meteoa nas náaos cora donas e domzellas que hi
achou e da outra companha muita, e veosse ao castello
de Gaya que era naquelle tempo de gramdes edifícios e
de nobres paaços. A elrrey Ramiro contarem este feito, e
foy em tamanha tristeza que foi louco huuns doze dias:
e como cobrou seu entendimento mamdou por seu filho o
iíFamte dom Hordonho e por alguuns de seus vassallos que
emtemdeo que eram pêra gram feito, e meteosse com elles
em çimquo galees ca nom pode mais auer. El nom quis
leuar galiotes senom aquelles que emtemdeo que poderiam
rreger as galees, e mamdou aos fidallgos que rremassera
em logar dos galliotes : esto fez el porque as galees eram
poucas e porhirem mais dos fidallgos e as gallees hirem
mais apuradas pêra aquell mester por que hia. E el cubrio
as galees de pano verde e emtrou com ellas por sam
Johane de Furado que ora chamam sam Johane da Foz.
Aquelle logar de huuma parte e da outra era a rribeira
cuberta d'aruores, e as galees emcostouas sô os rramos
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389
delias, e porque eram cubertas de pano verde nom pare-
ciam. £1 deçeo de noite á terra com todollos seus e fallou
com ho iffamte que ase deitassem a ssô as aruores o mais
emcubertamente que o fazer podesse e per nenhuma guisa
nom S86 abalassem atáa que ouuissem a aoz do seu corno,
e ouuindoo que lhe acorressem a gram pressa. El vis-
tíosse em panos de tacanho e sua espada e seu lorigom e
o corno sso ssy, e foisse sóo deitar a huuma fonte que
estaua sô o castello de Gaya: e esto fazia rrey Ramiro
por veer a rrainha sa molher pêra aver comsselho com
ella em como poderia mais compridamente aver dereyto
d'Alboazar Alboçadam e de seus filhos e de toda sa com-
panha, ca tiinha que pelo consselho delia cobraria todo
ca cometemdo este feito em outra maneyra que poderia
escapar Alboazer Alboçadam e seus filhos. E porque elle
era de gram coraçam puinha em esta guisa seu feito em
gram vemtuira: mas as cousas que som hordenadas de
Deus vêem aquello que a elle praz e nom assy como os
homeens peemsam. Aconteçeo assy que Alboazar Alboça-
dam fora correr monte comtra AlafoSes, e huuma sergente
que avia nome Perona naturall de Framça que leuarom
com a rainha seruia anfela leuamtousse pela manhãa assy
como avia de custume de lhe hir pofagua pêra as mãaos
aaquella fonte achou hi jazer rrey Ramiro e nom no co-
nheçeo : e elle pediolhe per arauia da agua por Deus ca
ese nom podia dalli leuamtar, e ella deulha per huum açe-
ter, e elle meteo huum camafeo na boca, e aquell camafeu
avia partido com sa molher a rrainha permeatade, e elle
deusse a beuer e deytou o camafeu no açeter, e a ser-
gente foisse e deu a agua aa rrainha. E ella. vio o camafeo
e conheçeo logo, e a rrainha preguntou quem achara no
caminho, e ella rrespomdeo que nom achara nemguem, e
ella lhe disse que mentia e que lho nom negasse e que
lhe faria bem e mercêe : e a sergente lhe disse que achara
hi huum mouro doemte e lazerado e lhe pedira da agua
que benesse por Deus e que lha dera: e a rrainha lhe
disse que lhe fosse por elle e o trouuesse emcubertamente.
E a sergente foy lá e disselhe «homem pobre a rrainha
minha senhora vos mamda chamar, e esto he per vosso
bem ca ella mamdará pensar de vós:» e rrey Ramiro
rrespoudeo sô ssy aassi o mande Deusi». Foisse com ella
e entraram pella porta da camará, e conheçeo a rrainha
e disse «rrey Ramiro que te adusse aqui?0 e elle lhe rres-
pomdeo «o vosso amor» e ella lhe disse «veeste morto:»
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elle lhe disso a pequena marauílha pois o faço por vosso
amor» e ella respomdeo «nom me as tu amor pois daqui
leuaste Artiga que mais preças que mim, maia vayte ora
pêra essa trascamara e escusar meey destas donas e dom-
zellas e fairmey logo pêra ti». Á camará era d^abouedae
como rrey Ramiro foy dentro fechou ella a porta com
huum gram cadeado. E elle jazendo na camará chegou
Alboazer Alboçadam e foysse pêra a ssa camará, e a rrai-
nha lhe disse «se tu aqui tiuesses rrey Ramiro que lhe
farias?» o mouro respomdeo «o que elle faria a mym, ma-
talo com gramdes tormentos:» e rrey Ramiro ouuia tudo:
e a rrainha disse «pois senhor aprestes o teens ca aqui
estáa em esta trascamara fechado^ e ora te podes delle
vimgar aa tua vontade.» E elrrey Ramiro emtemdeo que
era emganado per sa molher e que já dalli nom podia
escapar senon per arte alguuma : e maginou que era tempo
de sse ajudar de seu saber, e disse a gram alta voz, cAl-
boazer Alboçadam sabe que eu te errey mall, mostrandote
amizade leuey da ta casa ta irmãa que nom era da minha
ley: eu me confessey este peccado a meu abade, e elle
me deu em pemdemça que me veesse meter em teu poder
o mais vilmente que podesse, e se me tu matar quisesses
que te pedisse que como eu fezera tam gram peccado ante
a ta pessoa e ante os teus em filhar ta irmfta mostrandote
boo amor, que bem assy me desses morto em praça ver-
gonhosa : e por quamto o peccado que eu fiz foy em gram-
des terras soado que bem assy a minha morte fosse soada
por huum corno e mostrada a todos os teus. £ ora te
peço, pois de morrer ei, que faças chamar teus filhos to-
dos e filhas e teus parentes e as gentes desta villa e me
faças hir a este curral que he de grande ouuida e me
ponhas em logar alto e mo leixes tanjer meu corno que
trago pêra esto a tanto atáa que saya a alma do corpo,
e em esto filharás vimgança de mym, e teus filhos e pa-
rentes averam prazer e a minha alma será salua : esto me
nom deues de negar por saluamento de minha alma, ca
sabes que per ta ley deues saluar se poderes as almas de
todas as leys.» Esto dizia el por fazer viir alli todos seus
filhos e parentes por se vimgar delles, ca em outra guisa
nom os poderia achar em huum, e porque o curral era
alto de muros e nom avia mais que huuma porta per hu
os seus aviam d'emtrar. Alboazer Alboçadam pemssou no
que lhe pedia e filhou delle piedade e disse contra a
rrainha, «este homem rrepemdido he de seu peccado, mais
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391
cy eu errado a cUe que elle a mjm, gram torto faria em
o matar pois se pooem em meu poder.» A rraiuha rres-
pomdeolhe aAIboazer Almoçadam, fraco de coraçom! eu
sey quem he rrejr Ramiro, e sey de certo se o saluas de
morte que lhe nom podes escapar que a nom premdas
delle, ca elle he arteyroso e vingador assy como tu sabes :
e nom ouuiste tu dizer como elle tirou os olhos a dom
Hordonho seu irmSao que era moor ca el de dias por o
deserdar do rreyno? e nom te acordas quamtas lides
ouueste com elle e te vemçeo e te matou e catinou muitos
boos? e já te esqueçeo a força que te fez a ta irmãa, e
em como eu era sa molher me trouueste que he a moor
desomrra que os christãaos podem aver? Nom és pêra
viuer nem pêra nada se te nom vimgas : e sse o tu fazes
por tua alma por aqui a saluas pois he homem d'outra ley
e he em contrayro da lua, e tu dálhe a morte que te
pede pois já vem consselhado de seu abade, ca gram
peccado farias se lha partisses.! Alboazer Alboçadam
olhou o dizer da rrainha e disse em seu coraçom cde máa
ventura he ho homem que sse fia per nenhuuma molher:
esta he sa molher lidima e tem iffantes e iífamtas delle e
quer sa morte desomrrada ! eu nom ei porque delia íii,
eu alomgalaey de mim.» E pemssou em no que lhe dizia
a rrainha em como rrey Ramiro era arteyroso e vimgador
e rreçeousse delle se o nom matasse e mandou chamar
todoUos que eram naquelle logar, e disse a rrey Ramiro
<tu veeste aqui e fezeste gram loucura ca nos teus paaços
poderás filhar esta peemdemça: e porque sei sé me tu
tenesses em teu poder que nom escaparia aa morte, eu
querote comprir o que me pedes por saluamento de tua
aíma.» Mamdou tirar da camará e leuouo ao curral e
poello sobre huum gram padrom que hi estaua, e mamdou
que tamgesse seu como a tanto atáa que lhe sahisse o
fôlego. E elrrey Ramiro lhe pedio que fezesse hi estar a
rrainha e as donas e domzellas e todos seus filhos e seus
parentes e çidadaâos naquell currall : e Alboazer Alboça-
dam fezeo assy. E rrey Ramiro tangeo seu como a todo
seu poder pêra o ouuirem os seus: e o iffamte dom Or-
denho seu filho quamdo ouuio o como acorreolhe com
seus vassallos, e meteromsse pella porta do curral : e rrey
Ramiro deçeosse do padram domde estaua e veo comtra
o iffamte e disselhe, cmeu filho vossa madre nom moyra
nem as donas e domzellas que com ella veerom, e guar-
dadea de cajom ca outra morte merece.» Alli tirou a
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392
espada da baynha e deu com ella Alboazer Alboçadam
per cima da cabeça que o femdeo atáa os peitos. Alli mor-
reram quatro filhos e três filhas d' Alboazer Alboçadam e
todos os mouros e mouras que estauam no currall, e nom
ficou em essa villa de Gaya pedra com pedra que todo
nom fosse em terra: e filhou rrey Ramiro sa molher com
sas donas e domzellas e quamto aver achou e meteo nas
gallees. E depois que esto ouue acabado chamou o iffamte
seu filho e os seus fidallgos e contoulhes todo como ILe
aveera com a rrainha sa molher, e el que lhe dera a vida
por fazer delia mais crua justiça na sa terra. Esto ouue-
rom todos por estranho de tamanha maldade de molher,
e ao iíFamte dom Ordonho sayrom as lagremas pellos
olhos e disse comtra seu padre, «senhor a mjm nom cabe
de fallar em esto porque he minha madre senam tanto
que oulhees por vossa homrra.» Emtrarom emtom nas
gallees e chegarem aa Foz d'Ancora e amarrarem sas
gallees por folgarem porque aviam muito trabalhado
aquelles dias. Alli foram dizer a elrrey que a rrainha siia
chorando, e elrrey disse «vaamola veer:» foy lá e pregum-
toulhe porque choraua, e ella rrespomdeo, «porque ma-
taste aquelle mouro que era melhor que ti.» E o iffamte
disse contra seu padre, «esto he demo, que querees delle
que pode ser que vos fugirá?» e elrrey mandoua emtom
amarrar a huuma àióo e lamçalla no mar, e dês aqnelle
tempo lhe chamarem Foz d^Ancora. E por este peccado
que disse o iffamte dom Ordonho comtra sa madre disse-
rem despois as gentes que por esso fora deserdado dos
poboos de Castella: este deserdamento se mostra mais
compridamente no titullo III.'' dos rreys gentiis e godos
parrafo VIL Rey Ramiro foysse a Leom e fez sas cortes
muy rricas e faílou com os seus de ssa terra e mostrou-
Ihes as maldades da rrainha Alda sa molher, e que elle
avia por bem de casar com dona Artiga que era d'alto
linhagem : e elles todos a huuma voz a louuarom e ho
ouuerom por bem, porque dissera por ella o gramde
estroUogo Aman que ela era pedra preciosa antre as mo-
Iheres que naquelle tempo avia : e ainda disse mais que
tanto avia seer boa chriatâa que Deus per sua honrra lhe
daria geeraçom de homeens boos e de gramdes feitos e
avemturados em bem. E bem parece que Aman disse
verdade ca ella foy de boa vida, e fez o raoesteiro de sam
Juliam e outros ospitaaes muitos: e os que delia deçem-
derom forom muito compridos do que o gramde astrolego
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393
disse qae foy Aman. Este Ãman por sa arte dezia muy
compridamente as cousas que aviam de viir. Este rrey
ouue huum filho em dona Artiga que chamarem iSamte
dom Aboazer Ramirez: este chamarom por sobrenome
çide Aboazar porque naquel tempo fez muitas lides com
mouros, e tirouos de Sam Eomãao e de Crasto d^Aueoso
e de Crasto de Gomdomar e de Todea e de todo d'Amtre
Doyro e Minho e d^Aalem dos Montes comtra Bragamça
e passouos aalem Doyro a Lamego a Sam Martinho de
Mouros e foyos tirar de comtra Coymbra: e fez outra
filha que chamarom dona Artiga Ramirez. — Este Boazer
Ramirez casou com dona Elena Godiiz filha de dom Go-
dinho das Esturas. Ella com seu marido fumdarom o
moesteiro de sam Nícoláao a que ora chamam samto Tisso
de rriba d^Aue, e guardauomno nas fazendas dom Guter
Tellez e dom Sauarigo Erit e dom Traicosem de Torqui-
des: estes eram seus vassallos e senhores de boos caua-
leiros. Este Alboazer Ramirez fez huum filho em esta
sa molher que chamarom Trastameyro Aboazer, e outro
Ermeiro Aboazer: este Trastameiro Aboazer foi casado
com dona Eomeldola Gomçalluez irmãa do conde dom
Fernam Gonçalluez filhos do comde dom Gomçallo Nuniz
que foy filho de dom Nuno Rosoyra assy como se mostra
no titullo IIII.^ dos juizes que fezerom os castellaãos
donde veerom os rreys de Castella parrafo primo, e fez
em ella dom Gomçallo Trastamirez da Maya, e dona Or-
lamda Trastamirez. Este dom Trastameiro Aboazar casou
com dona Dordia Assorez irmâa de dom Sarrazinho Oso-
rez, e fez em ella dom Fernam Trastamirez, e dona
Ermesemda Trastamirez. — Este dom Gomçallo Trasta-
mirez de Maya foi casado com dona Miçia Rodriguez
filha de dom Ruuy Vermuiz, avôo do dom Diego Laimdez
padre de dom Ruuy Diaz çide como se mostra no titullo
Vni.*^ deste Ruuy Diaz parrafo IIII.**, e fez em ella dom
Meem Gomçalluez da Maya: este dom Gomçallo Trasta-
mirez foy outra vez casado com dona Husoo Soarez filha
de dom Sesnam Diaz, e fez em ella huuma filha que cha-
marem dona Ermesemda Gonçalluez. Este dom Meem
Gomçalluez da Maya foi casado com dona Leonguida Soarez
que chamarom em sobrenome a Tainha, e foy filha de
dom Soeiro Geeudez da Várzea como se mostra no titullo
XLn de dom Goido Araldcz parrafo primeiro, e fez em
ella dom Soeiro Memdez o boo da Maya, e Gomçallo
Meemdez o lidador, e dona Ousoana Meemdez. Estes
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394
todos se chamarom da Maya porque se ganhou por os
seus avóos e aviamna por sua: e a Maya chamauasse
naquel tempo dês Doyro atáa Lima.»
Liv. de Linhagens do Conde D. Pedro, PoRTUG. Momem.
SCRPTORES.
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Dooumento II
(Pag. 308)
Pacto entre os Condes D. Raymnndo e D. Henrique
138. Raymundi Galletiae, et Henrici Fortugalie Comi-
tum Hugoni Abbati Cluniacensi Domino atque Reveren-
dissimo Cluniacensi Abbati Hugoni, omnique beati Fetri
Congregationi Raymundus Comes, ejus que filius, et Hen-
ricus Comes, ejus famíliaris, cum dilectione salutem in
Christo. Sciatis, carisssime Pater, quod postquam vestrum
vidimus Legatum, pro Dei omnipotentis, atque Beati Petri
Apostoli timore, vestraque dignitatis reverentia, quod no-
bis mandastis, in manu Domini Dalmatí Gevert fecimus.
In nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti. Pignns
integrae dilectionis, quo conjuncti sunt in amore Raymun-
dus Comes, Comesque Henricus, et hoc juramento.
Ego quidem Henricus, absque ulla divortii faJsitate, tibi
Comiti Raymundo membrorum tuorum sanitatem, tuae vi-
tae integram dilectionem, tuique carceris invitam mihi
occursionem juro. Juro etiam, quod post obitnm Regis AI-
defonsi tibi omni modo contra onmem hominem atque mu-
lierem bano totam terram Regis Aldephonsi defendere
fideliter, ut Domino singulari, atque adquirere praeparatus
occurram. Juro etiam, si thesaurum Toleti prius te ha-
buero, duas partes tibi dabo, et tertiam mihi retinebo.
Amen. Et ego Comes Raymundus tibi Comiti H enrico tuo-
rum membrorum sanitarem, tuaeque vitae integram dile-
ctionem, tui que carceris invitam occursionem juro. Juro
etiam, quod post mortem Regis Aldephonsi me tibi datu-
rum Toletum, terram que totam subjacentem ei, totam
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396
que terram, quam obtines modo a me concessam, habeas
tali pacto; ut sis inde meus homo, et de me eam habeas
Domino; et postquam illas, tibi dedero, demittas míhi
omnes terras de Leon, et de Castella, et si aliquis mihi
vel tibi obsistere voluerit, et injuriam nobis fecerit, guer-
ram simul in eum vel unusquisque per se ineamus, usque
quo terram illam mihi, vel tibi pacifice demittat, et postea
tibi eam praebeam. Juro etiam si thesaurum Toleti prius
te habuerO; tertiam partem tibi dabo, et duas remanentes
mihi servabo.
Fiducia quam Comes Eaymundus facit in
manu Domini Dalmatii Gevet.
Si ego Comes Raymundus non possum tibi Comiti Hen-
rico dare Toletum, ut promlsi, dabo tibi Gallaeciam tali
pacto, ut tu adjuves mihi acquirere totam terram de Leon,
et de Castella: es postquam inde Dominus pacifico fuero,
dabo tibi Gallaeciam, ut postquam eam tibi dedero, de-
mittas mihi terras de Leon, et de Castella. Igitur Deo
jttbente, sic quoque Sancta Dei Ecclesia piis orationibus
ínterveniat. Amen.
Foi publicado pela primeira vez por D'Achery, Speci-
legium; e depois por Aguirre, Conditos de Espaha, t. v,
em 1755; e por João Pedro Ribeiro, Dissertações Chro-
nologicas, t. iii, p. i, 1813.
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Documento ni
(Pag. 310)
CAPITULO XXI
De las cosas que sncedieron despues de Ia naerte
dei Rey D. Alonso entre el Gonde Enrique, y el Rey de AragoD
Sobre todo es de saber, que el Rey D. Alonso de noble
memoria, mientra que él viviese de una manceba, pêro
bien noble, había habido una hija llamada Teresa, la qual
él habia casado con un Conde, Uamado Enrique, que vé-
nia de sangre Real de Francia; el qual en quanto el Rey
D. Alonso vevia, noblemente domo á los MoroS; guer-
reando contra ellos; por lo qual el dicho Rey le dió con
8u hija en casamiento á Coimbra, é á la Província de Por-
tugal, que son fronteras de Moros, en las quales con el
exercício batalloso, muy noblemente engrandescia su Ca-
balleria; pêro poços dias antes que el Rey íicíese fin de
vivir, no se por qué saiSa, ó discórdia se partió airado de
él, é porque aquesto era ansi; no estuvo presente quando
el Rey queria morir, é disponia de Ia sucesion dei Reyno
este Conde non era presente; por Io qual por zelo dei
Reyno movido, traspasó los Montes Perineos por haber
ayuda de los Franceses, con los quales guarnecido, é es-
coltado, digo esforzado, por fnerza tuvíese el Reyno de
Espafla. £ como la âaqueza humanai sea suje ta á vários,
é diversos acaecimientos, acaescióie una desdicha, que fué
preso, é detenído en prision; pêro Dios hubíéndole com-
pasion, Io saco. En el tiempo que el Rey de Aragon fuera
desechado, é alanzado de la Reyna, retomábase, é porque
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398
él pudiese sin peligro pasar por el Reyno de Aragon, dán-
dole su fé, prometiéndole, que él en imo con él, con todas
sus fuerzas contra la Reyna, guerrearia con esta condi-
cion, que todo aquello, que dei Reyno de la Reyna ganase,
fuese partido por la metad entre ambos. E asi allegada
gran hueste, ibanse para Sepúlveda; lo qual como oyese
el noble Conde, llamado Gomez, que en aquella sazon mo-
raba en Burgos con la Reyna, con poços en el campo de
Espafia fué contra ellos. E por quanto sin consejo con po-
ços acometió, grande, é diíicile cosa, fuertemente peleando
murió en la batalla. Ia qual vitoria acabada viniéronse para
Sepúlveda. E asi como morasen los nobles, que eran con
la Reyna, enviaron Embaxadores ai Conde Enrique, qae
le dixesen, que injustamente él facia contra la Reyna, é
los nobles suyos, apartándose de ellos, é llegándose ai
tirano su enemigo. Mas que le rogaron, que luego se par-
tiesen dei Rey de Âragon, é á ellos se traspasase, que
ellos acabarian con la Reyna, que con él partiese dei
Reyno con suerte fraternal, y que esto habia de hacer de
buena voluntad, recordándose de la amistad antigua, é
compaSia de ellos, é que él seria Capitan de ellos, y Prín-
cipe dei Exército. Las quales cosas oidas el Conde Enri-
que, faabido consejo con los suyos, casi como quien va á
ver sus heredades, partióse dei Rey, y habiendo su fabla
con el poderoso Feman Garcia, vlnose á un Castillo lla-
mado Monzon, onde la Reyna entonces estaba, é el sobre-
dicho pacto confirmo, lo qual como fuese manifestado ai
Rey, partióse de Sepúlveda, é fuese à mas andar ai Cas-
tillo fuerte llamado PeSafiel, é los hombres, que moraban
allende el rio de Duero, è son llamados Pardos, en aquel
tiempo seguian ai Rey de Aragon ; pêro la Reyna, é el
Conde Enrique allegada mucha gente, hombres de pié,
onde á caballo, cercaron el Castillo de Penafiel. E por
quanto la natura le fortifico, é de ligero no se podia tomar
el exército de la gente de armas, toda la gente que estaba
ai redor á fierro, y á fuego destruyó, é toda la sustancia
robô. El bien lo merecia, por quanto los moradores, des-
preciado el Sefiorio natural, allegáronse ai tirano, é roba-
dor. En esto estando, Doila Teresa, muger dei Conde En-
rique, fija dei Rey D. Alonso, que habia quedado en
Coimbra, vinose para él, é despues de poços dias comenzó
á incitar ai marido, diciéndole : primero habia de partir el
Reyno, segun que habia quedado, é después debria echar
ai Rey. Decia aun mas: gran enga&o parece por honor é
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Reyno de otro trabajar vos con los vaestros, é Budar por
alcanzar ai destruidor; é entre estas cosas, como es cos-
tumbre de las lengnas lisonjeras, la muger dei Conde era
ya Ilamada de los suyos Reyna, lo qual ojendo la Reyna,
mal lo sabia, mayormente como se viese desamparada dei
solaz varonil, é á su hermana veria con el ayuntamiento
de varon sobresalir. E como á la division dei Reyno fuese
apremiada, llamó ocultamente un consejero dei Rey, que
habia nombre Castano, fabló con él en puridad; é asi quita-
ron la cerca, é se despartieron, é á Palencia se vinieron ;
é dados ai de la una é de la otra parte nobles, é pruden-
tes varones, comenzaron á partir el Reyno for igual suer-
te; en la qual division entre todas las otras cosas so la
suerte dei Conde cayó Zamora, que es Ciudad mucho
abastada, é eso mismo el Castillo dei nombre dei rio 11a-
mado Ceya, el qual luego . fué entregado en mano dei
Conde. E estas cosas acabadas, establecieron, é ordena-
ron que la Reyna con sua hermana Teresa se fuesen para
Leon, é el Conde se fuese á tomar á Zamora con los Ca-
balleros de Ia Reyna, á los quales ella mando secretamente
que no diesen la Ciudad ai Conde ; é la Reyna ya habia
mandado á los de Palencia, que viniendo el Rey de Ara-
gon, que le abriesen las puertas, ca ya habia enviado por
él á Fernan Garcia; é todo aquesto se facia ocultamente,
é la Reyna veniase á la Villa de Sant Fagun, é semejan-
temente mando á los Burgeses, que abríesen ai Rey las
puertas ; ca ya los Burgeses habian quitado el poderio dei
Abad, los Porteros, y puertas de la Villa, de mancra, que
si el Abad, ó algun Monge queria entrar, ó salir, por de-
baxo de Ia cadena habia de pasar, como un labrador. Otrosi
cortaban madera dei Monte para facer, y alzar las Torres,
sin licencia dei Abad, ni aunque no fuese sobre ello deman-
dado, ni sin facérselo saber. E la Reyna fuese luego para
Leon dexada su hermana en Sant Fagun. E catad, que
un dia el Abad, y los Monges, no sabiendolo, el-Rey entro
en Ia Villa, é mando á los suyos, que persiguiesen á la mu-
ger de Enrique, la qual, oyendo su venida, habia ya fuido,
y ansi no la pudieron comprehender.
Hist, dei Real Monasterio de Sahagun, por el P. M. Fr,
Komualdo Escalona. Madrid, mdcclxxxii.
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Documento IV
(Pag. 367)
Sepulchro de Egas Moniz
Este venerando monumento sepulchral existe ainda, muito
deteriorado e maltratado, no mosteiro de Paço de Sousa ;
nelie estSe representados, esculpidos em pedra, os episó-
dios da celebre jt>mada de Egas Moniz á corte de Toledo,
a sua morte, o seu enterro. Em consequência de varias
deslocações do sitio onde primeiramente fôra oollocado,
as suas pedras acham-se fora do local que deviam occupar
para a representaç&o das scenas que figuram ; uma d'ellas
mesmo está invertida, e confundidas com ellas as pedras
do monumento dos filhos do honrado rico-homem português.
A figura que representa Egas Moniz a cavallo está muti-
lada, faltando-lhe a cabeça, acima da barba, existindo o
relevo da corda ao pecoço.
O académico António de Almeida publicou nas Memorioê
da Academia Real das Sciencias, tomo xi, a descripção dos
monumentos que encontrou no Diatario de Paço de Sousa,
de fr. António da Soledade, cai*torario do convento. Diz
o seguinte : (cNa testa do nascente estava esculpida de me^o
relego hum cavallo, e nelle montado hum homem com armas
brancas, e a cabeça descoberta: Na primeira pedra da
frente estava esculpido hum homem a pé com huma lança
ou dardo ao hombro, em cabello, com armas brancas e
sayote, e botins aíé ao meio da perna em postura de ir
caminhando. Atraz deste homem estava esculpido na mesma
pedra D. Egas Moniz, montado em hum cavallo, este com
hum feitio de gualdrapa e bem ajaezado. D. Egas com as
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402
pernas nuas, e vestido com uma roupa singella^ que imita
camiza : faltando-lhe ametade do corpo*do peito para sima,
que o quebrarão (e diz a BenedictiDa que estava com as
cordas ao pescoço quando existia no cprporal). -
a Unida a esta pedra se seguia a terceira, na qual está
também esculpido o seu enterro; dous homens pegando
hum pelos pez e outro pela cabeça de D. Egas Moniz, e
metendo-o em hum tumulo : pela parte de traz desta está
huma mulher na perspectiva de quem se lamenta. Logo
adiante do tumulo hum abbade em huma cadeira revestido
com capa, mitra, e báculo, e hum livro na mSo.
«Na testa do Poente está esculpida huma mulher com a
mão direita sustentando o rosto, e com a esquerda pe-
gando no cotobello da direita, em forma de a'dmiraçXo laa-
timoza ; no braço esquerdo lhe está pegando a mSo de huma
pessoa ; o corpo desta não apparece, e entende que o cor-
tarão, ou quebrarão.
«Sobre estas pedras estava a tampa, ou cúpula do mo-
numento, fazendo lhe também trez faces ; ao pé das pedras
tem duas faixas, huma mais abaixo, outra por simn, a
tampa ou cúpula acaba em feitio mais estreito^ e bem la-
vrada. Na primeira faixa está o Epitaphio escripto de le-
tra gótica occupando todo o comprimento da cúpula. Na se-
gunda faixa tem gravada a éra em que falesceo, eserípta
em letra destes nossos tempos e posta ás avessas ....
vêm-se só os dous pontos últimos . . . , e quando mudarão a
pedra quebrarão os ditos dous pontos».
O epitaphio diz:
IIlC KEQUIESCAT F{arnu)hVS DEI EgAS JIoNIZ
vir inclitus
Era millesima centésima lxxxiiii
Corresponde ao anno de Christo 1146.
Publicaram desenhos deste venerando monumento o aca-
démico António de Almeida na sua Memoria Polemica ( 183 1 ),
o Panorama (1837), os Quadros Históricos, de Castilho
(1838), o Árchivo Pittoresco (1859), a Revista Arckeolo-
gica (1890).
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índice
íntroducçSo: p»k-
iDÍiueiicia dos Árabes na milicia portugueza ^
L — O que devemos aos árabes 1 T)
II. — Organisaçâo militar 77
O condado portuguez :
I. — Um episodio da Reconquista 201
II. — O condado de Portugal 243
ÍII. — O conde D. Henrique, seu governo 281
IV. — O governo de D. ITiereza. 333
Documentos 380
niustrações
Estampas
I. — latagan modeino, 1218 da Hégira (Da colIecçÂo do
Dr. Teixeira de Aragão) 138
II. — Capacete árabe. (Da collecção de Sua Majestade
El-Rei) 142
III. — Almiger Regis (Da miniatura do Livro dos Testa-
mentos ou Privilégios que se conserva na cathedral
de Oviedo, e representa AíFonso, o Casto, de Cas-
tella) 249
IV. — Cintra, o Castello dos Mouros (Do Livro das fortor
lezas de Duarte das Armas) 307
Figuras
1.» — Alfange 13G
2.*— Cimitarra 137
3.* — Espada e bainha 138
4.» — Lança com bandeirola 139
5.» — Lança para incendiar 140
6.« — Capsula de nafta 141
7.« — Gomia 141
8.« — Azagraia 142
9.' — Quebade (arco) 143
Digitizeri-by
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404
Pag.
IO." — Ceáme ou nivel (setta) IH
li.- — Aljava 144
12.*— Besta 145
13.- — Capacete 145
14.*— Morrifto 146
15.« — Capacete 146
16.« — Morriâo 147
17.« — Magfar 147
18.*— Zardia 147
19.- — Couraça. 148
20.« — Couraça 148
2l.*— Musca 148
22.- — Botute 148
23.- — Algalota 149
24.» — Darga 149
25.-— Darga 15(»
2G.« — Darga 150
27." — Soldado de infanteria 151
28.* — Sella 15:»
29.«— Acicate 152
30.- — Efitribo liVJ
31.- — Cabeçada 153
32.* — Estribo e acicate (século iii) 154
33.» — Estribo 155
34.._Chirimia 155
35.» — Chirimia 155
3G.« — Atambor 156
37.«— Atabale 156
38.* — Árabes lançando substancias incendiarias 156
39.«— Flechas de fogo 157
40.* — Maça de fogo 157
41.* — Carcaz de settas de nafta 157
42.* — Bandeira 158
43.* — Bandeira 159
44.« — Signa 160
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lElrrata»
Ondo Be lô :
Gassam
lemen
Cairum
de Espagne (nota)
Cairum
phanatismo
Èemsaide
doB nossos Algarves
Almakari
Bemalaki
almoravidas
Alotacem
Molamide
AbulValid
Kosiri
Sahibacalá
Mokulam
Muçabem
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Cazwini
Ben Batuta
Mabunad Abadalim
Abul Caieme
mustaçaf
A arte de mudejar (cota).
Abú Alaquim
Bemadi
Xemeadim
Dhiffa
Bemazil
Bemazil
Bemazil
Acirafe
Massa (cota)
Avincera
AUemamnm (cota)
Documento A (nota)
Bolonha
Leia se : Pag.
Gaçam 1(5
Temem 16
Cairuám 25
d*Espagne 29
Cairuám 35
fanatismo 36
Bem Said 39
do noeso Algarve 39-40
Almacari 47
Benalaqui 48
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Mocatam 62
Muça Bem 62
Al-Sagani 62
Cazuini 66
Bem Batuta 67
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Abul Caceme 70
almotacé 73
A arte mudejar 73
Abú Alaquem 84
Benadi 96
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diafa 114
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Benazil 121
Benazil 126
Açarafe 138
Maça 157
Avicena 175
Almamum 223
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Borgonha 271
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